Dentro da retrospectiva de Fritz Lang que a Batata Espacial está organizando, vamos retornar a 1919 e falar do filme “As Aranhas” (“Die Spinnen”), que é dividido em duas partes: “O Lago Dourado” e “O Barco de Diamantes”. Esses são os filmes mais antigos dirigidos por Lang que ainda existem, pois “Halbblut” (1919) e “Der Herr, Der Liebe” (1919), são considerados perdidos. Vamos, primeiro, falar de “O Lago Dourado”, deixando “O Barco dos Diamantes” para outra ocasião. Lembrando sempre que os spoilers de cento e um anos estão liberados.
Qual é o plot do filme? Em São Francisco, Kay Hoog (interpretado por Carl de Vogt) encontrou, enquanto estava em seu iate no mar, uma garrafa com uma mensagem dentro. A mensagem falava de um tesouro do povo Inca, algo que atrai Kay. Ele comunica aos seus pares que vai viajar para o Peru, pois ele iria participar de uma competição. Ao comunicar que vai atrás de um tesouro, ele desperta a atenção de Lio Sha (interpretada por Ressel Orla), que é a líder de uma organização criminosa chamada “As Aranhas”. Ela manda seus capangas invadirem a casa de Hoog para roubar a mensagem que estava na garrafa e organiza a viagem para o Peru. Hoog também viaja para lá e consegue recuperar a mensagem na garrafa. Hoog e Sha chegam ao Peru e o primeiro se apaixona por Naela (interpretada por Lil Dagover), uma espécie de sacerdotisa do Sol, que era obrigada por seu povo a estar em rituais de sacrifícios. A moça pede para Hoog fugir, pois os incas não poupam os brancos. Naela mostra a região onde estão os tesouros incas, que possuem velas que não podem ser acesas, pois estão amaldiçoadas. Os incas aprisionam Lio Sha, que será oferecida em sacrifício. Mas a quadrilha das Aranhas ataca os incas, provocando grande confusão. Eles encontram o ouro e acendem as velas amaldiçoadas para iluminação, despertando a maldição e levando a uma grande tragédia, onde o ouro é arrastado para o fundo do mar com muitos capangas, sobrando apenas Liu Sha e mais outro capanga. De volta a São Francisco, Hoog tem uma vida feliz com Naela. Liu Sha o procura, dizendo que está apaixonada, mas Hoog diz que vive bem com Naela. Como represália, as Aranhas matam Naela, deixando uma aranha em cima de seu corpo como marca de que foram responsáveis pelo crime. Hoog se agarra ao corpo morto de sua amada, jurando vingança.
Esse filme chama a atenção para uma das características de Lang já mencionadas aqui: a sua paixão por culturas fora da Europa. O diretor, em sua juventude, fez viagens pela Ásia e vemos as chamadas culturas “exóticas” marcando presença em seus filmes, seja na fase alemã, seja na fase americana. Aqui é feita toda uma construção em cima da cultura inca que, à despeito de algumas imprecisões históricas e geográficas (a principal riqueza inca era o ouro, ao invés da prata, os sacrifícios ao Sol eram mais característica da cultura asteca e das demais culturas pré-colombianas do México e os tesouros incas acabarem soterrados no mar para uma cultura que vivia nos Andes), muito impressionou com a construção arquitetônica dos templos, de motivos pré-colombianos bem pronunciados. Se houve um cuidado em se mostrar uma suposta cultura inca, ainda assim podemos perceber um quê imperialista, com europeus indo à busca de tesouros de culturas “primitivas”. A nativa Naela inclusive pede para que o herói branco e europeu Hoog se proteja dos incas, além de ser contra a cultura de sacrifício da qual a própria Naela é sacerdotisa. Não podemos nos esquecer que esse é um filme de aventura, baseado em romances juvenis do gênero, que seria construído em quatro episódios, mas onde somente dois episódios foram produzidos.
Outra coisa que chama a atenção é a vilã do filme. Lio Sha, além de seu nome de clara origem asiática, ainda é a chefe de uma organização criminosa, que se veste com roupas masculinas e lida com gente da pior espécie, ela mesma sendo uma pessoa sem nenhum caráter. É interessante ver Lang colocando uma mulher num personagem que, muito provavelmente, seria interpretado por um homem em 1919. Lio Sha talvez tenha sido o personagem mais carismático da trama, até mais do que o protagonista Kay Hoog. Ao contratar capangas mexicanos para a missão e ver a luta de Hoog com tais capangas, sentimos uma presença de Western, gênero com o qual Lang teria um contato mais íntimo em sua fase americana décadas depois.
Dessa forma, “As Aranhas, Parte 1, O Lago Dourado”, é um curioso filme de Lang feito nos primórdios de sua carreira. Destinado a ser um filme de entretenimento e aventura, aparece aqui todo um cuidado (ainda que pouco acurado) de retratar uma cultura considerada exótica pelos europeus, mesmo que a aventura insira um quê imperialista no filme. A grande virtude aqui é o exotismo e a complexidade da personagem Lio Sha, uma mulher moderna líder de uma organização criminosa, que marca seus crimes sempre com a presença de uma aranha. Não deixem de ver abaixo o filme na íntegra, legendado em inglês.