Por Carlos Lohse
Nunca pude muito ir ao teatro, apesar de gostar muito. O maior problema que nos impede a acompanhar essa manifestação cultural em nosso país é o preço. A entrada para uma peça nunca é barata e resta-nos procurar os lugares onde há promoções mais em conta, como os centros culturais bancados pelo governo. Não é à toa que tais lugares sempre estão cheios de gente e precisamos marcar com uma certa antecedência. Esses são problemas que acabam afastando um pouco o grande público do teatro. Por isso, quando pinta uma oportunidade de assistir a uma peça de forma rápida e acessível, não podemos dormir no ponto e deixar passar. Foi exatamente o que aconteceu comigo há uns dias atrás, quando descobri que a Escola Estadual de Teatro Martins Penna, no centro do Rio, lá pertinho do Campo de Santana, estava exibindo gratuitamente a peça “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare, como uma espécie de Trabalho de Conclusão de Curso de uma das quatro turmas da Escola. Essa escola de teatro, que funciona num prédio tombado de 1835, onde nasceu o Barão do Rio Branco, é a mais antiga da América Latina (foi fundada em 1908 por Coelho Neto, durante a administração do então prefeito Souza Aguiar) e revelou talentos como Procópio Ferreira, Tereza Raquel e Denise Fraga. Com todo esse background que a Escola tem, acabei indo lá dar uma conferida.
Bom, do que se trata a peça de Shakespeare? Temos aqui um judeu que é desprezado pelos cristãos da cidade de Veneza, mas que se torna credor de um deles, e ficou acordado que, caso o cristão não pagasse a dívida, o judeu teria o direito de lhe arrancar uma libra de carne. Pois bem, a dívida acaba não sendo paga e o judeu vai exigir na justiça o tal pedacinho de carne do corpo do cristão. Mas os meandros e interpretações da justiça cristã invertem completamente o jogo, arruinando o judeu. Devemos nos lembrar de que Shakespeare, sendo um autor renascentista, era um crítico do Antigo Regime e das tradições medievais cristãs, como ficou aqui bem assinalado o preconceito que os cristãos tinham contra o judeu e todo um clima de animosidade envolvido. Paralela a essa trama principal, existiam pequenas histórias de pares amorosos que buscavam se unir, a despeito das rígidas convenções sociais da época.
Apesar de ser uma peça escrita há séculos, os alunos da Escola de Teatro Martins Penna, dirigidos por Marcos Henrique Rego, deram uma leitura moderna para o espetáculo, com direito a alegres números musicais, muito humor, uma animada interação com o público, onde o destino de uma das personagens é debatido pelas atrizes, que param de atuar e iniciam uma conversa onde pedem, inclusive, a opinião do próprio público, e muitas críticas para lá de oportunas com relação ao nosso momento político atual. Cabe dizer aqui que a Escola, por ser estadual, sofre enormemente com a falta de recursos e os atores, mais a equipe da Escola, fizeram um esforço hercúleo para conseguir promover a execução da peça, chegando até a arrecadar algumas contribuições do público, sendo passando caixinhas durante a peça ou vendendo doces, salgadinhos e refrigerantes. Tive a oportunidade de assistir à peça duas vezes, sendo que uma delas no dia do encerramento da temporada, quando o clima de comoção entre os atores era muito forte, com vários deles brotando muitas lágrimas dos olhos. Definitivamente é algo muito triste ver uma Escola desse naipe, com uma equipe tão competente, profissional e, principalmente, com muito amor naquilo que faz, passar por tamanhas dificuldades. A turma que encenou “O Mercador de Veneza” conseguiu concluir o seu curso. Mas há ainda outras turmas que precisam concluir o curso e sofrem com a crise econômica e a situação caótica do governo estadual. Greves e ocupações, inclusive, tiveram que ser feitas para chamar a atenção para a situação calamitosa da Escola.
Para falar mais algumas palavras sobre o elenco, cabe fazer aqui alguns destaques. Em primeiro lugar, para o ator Eduardo Fernandes, que interpretou Shylock, o judeu. Sua atuação foi marcante e muito vigorosa, lembrando muito Al Pacino, que interpretou o mesmo personagem para a versão dessa peça no cinema. Fernandes conseguiu colocar com perfeição toda a mágoa e o ressentimento de seu personagem, por ele fazer parte de um setor marginalizado pelos cristãos da época, sendo o artista que mais causou impacto e mais impressionou. Outro destaque é a ótima atriz Michelle Rocha, que fez Nerissa, a criada da personagem Pórcia. Ela também muito impressionou por seu forte viés cômico, despertando muitas gargalhadas do público. Com seu grande talento e carisma, seus momentos de atuação controlavam totalmente o ritmo da peça, sendo responsável, em grande parte, pela roupagem mais moderna ao qual foi proposta essa versão de Shakespeare, ainda mais porque sua presença no palco ocorreu em boa parte do espetáculo. Ainda, falemos de Jamal D’Izéte, que interpretou vários personagens, o que lhe deu a chance de mostrar sua versatilidade. Jamal fez desde um reflexo feminino no espelho, cheio de trejeitos efeminados que despertaram muitas risadas, indo até o juiz do julgamento da peça, quando interpretou um papel altamente sisudo e austero, sendo eficiente em todas as matizes de personagens que fez. Isabelle Nassar é outro caso de versatilidade, pois, apesar de fazer apenas uma personagem, Pórcia, a principal personagem feminina, ela teve momentos cômicos inesquecíveis com Michelle Rocha, fazendo caras e bocas que nada tinham a ver com o estereótipo da mocinha donzela. E, de quebra, fez, também com Michelle Rocha, um papel masculino com muita eficácia, sendo essa a principal dupla da noite. Esses foram alguns dos nomes que se destacaram no elenco, que ainda contou com a sobriedade de Daniel Vargas, a leveza de Vinicius Coelho, a doce e forte presença de Kiara Luz, o grande talento musical de Mário Meireles, a beleza e olhar carismático de Maia Camelo, a versatilidade de Fernanda Oliveira e muitos outros atores que elevam o nome da Escola Martins Penna a um patamar muito digno, apesar de açoitada violentamente por esses dias de crise.
Assim, apesar de todo o momento negativo, foi muito gratificante assistir ao “Mercador de Veneza” na Escola de Teatro Martins Penna, pois deu gosto de ver toda uma geração de novos e talentosíssimos atores desabrochando. Torço muito para que todos eles atinjam o estrelato num futuro próximo. Poucas vezes a gente pode presenciar tanto amor empregado naquilo que se faz. E que a Escola Martins Penna consiga sobreviver a esse momento de turbulência e volte a voar em brancas nuvens para continuar revelando talentos tão grandiosos quanto pudemos ver em sua adaptação de “O Mercador de Veneza”. Que haja a formação de mais turmas.