Uma co-produção Tunísia, França, Bélgica e Emirados Árabes estreou em nossas telonas. “Assim Que Abro Meus Olhos”, uma produção de 2015 dirigida por Leyla Bouzid, é um grande filme sobre a perda da inocência, liberdade e repressão. Um filme que consegue te deslumbrar e, ao mesmo tempo, chocar. Um filme que exerce a função social do cinema de denúncia em toda a sua plenitude.
Vemos aqui a história da jovem Farah (interpretada pela fofíssima Baya Medhaffer), uma menininha tunisiana muito sapeca que leva uma vida regada à muita liberdade. Ela namora intensamente, perde sua virgindade, faz parte de uma banda que canta desde músicas mais tradicionais até um rock pesado, cujas letras são uma reflexão com relação à situação autoritária pela qual seu país passa. Seu sonho é ser cantora e fazer musicologia na faculdade. Mas ela também passou pelos exames para medicina, algo que dá mais futuro que a música, ideia geral essa seja na Tunísia, seja por aqui. A moça tem muitos conflitos com a mãe, que reprova sua vida boêmia e musical e, ao mesmo tempo, quer que ela faça medicina, para ter um futuro mais garantido. Seu pai é obrigado a trabalhar longe de casa e somente conseguirá uma transferência se ele se filiar ao partido do governo, que exerce uma ditadura com mão de ferro, algo que ele rechaça completamente. Outro problema é que a polícia está de olho no grupo de jovens que faz música de contestação, e eles podem ser presos a qualquer momento.
Nem é preciso dizer que tal filme é um produto cultural da já não tão recente Primavera Árabe, quando vários países questionaram seus regimes autoritários, cujo exemplo mais dramático ainda é a guerra civil da Síria. O filme empolga muito pelas belas músicas e letras do grupo de jovens que tem muito a dizer de seu país. Mas os ranços do governo ditatorial estão sempre próximos, ameaçando o grupo de pós-adolescentes e retirando-os paulatinamente de um estilo de vida mais sonhador e utópico, mergulhando-os nas amarguras do mundo real. Amarguras que os pais de Farah já conhecem de longa data e cuja juventude foi também de muita contestação. O mais interessante foi perceber como a mãe, pautada nas tradições da cultura árabe e muçulmana, inicialmente age de forma repressora com a filha, algo que nada adianta, mas com o passar do tempo, o autoritarismo do Estado inverte completamente o papel da mãe que se torna compreensiva e acolhedora com a moça. O personagem do pai também é muito curioso, pois sua natureza pacata vai contra a representação do homem no filme, que é a do ser machista e opressor. O pai, em virtude de seu passado libertário, é muito compreensivo, mas não sem saber ser firme nas horas certas, talvez para que o personagem não caísse no ridículo perante o próprio público. Ou seja, o homem nesse tipo de sociedade pode até ser doce e compreensivo, mas não muito.
Outro detalhe que chama a atenção é que, apesar de ser um filme feito numa sociedade muçulmana e extremamente machista, não vemos mulheres com burkas e a influência da cultura ocidental, com jovens se vestindo como roqueiros e cenas de nudez, é muito presente. Isso ajuda a mostrar que os países islâmicos não possuem uma cultura uniforme, imposta de cima para baixo pela religião. Se há países onde o fundamentalismo é mais presente em várias áreas, ao mesmo tempo, existem países com um grau de secularização um pouco maior, onde a religião nem sempre dita totalmente o dia-a-dia das pessoas.
Assim, “Assim Que Abro Meus Olhos” é um daqueles excelentes filmes que cumprem a função social de denúncia do cinema. Um filme que fala de liberdade e autoritarismo. Mas, sobretudo, um filme que fala da perda da inocência. Programa imperdível! E não deixe de ver o trailer abaixo.