A Escola Estadual de Teatro Martins Penna apresenta a sua nova turma de formandos. Ainda vítima da violenta crise econômica e moral que assola o Estado, a Escola enfrenta com muita coragem as dificuldades do cotidiano e consegue se manter em funcionamento.E agora apresenta a peça “A Fábrica dos Cem Mil”, livremente inspirada na peça “A Fábrica de Robôs”, de Karél Tchapék. Uma história que é um convite à reflexão sobre o que a raça humana faz consigo própria e quais os rumos que ela dá para si mesma para tempos futuros.
Mas, no que consiste essa ficção científica de tons sociais? Temos aqui uma fábrica de robôs cujo objetivo é produzir a maior quantidade possível de seres artificiais. Isso é feito com a meta de livrar o ser humano da escravidão do trabalho. Entretanto, a visão otimista de futuro não se concretizará e o que vamos ter são tempos vindouros altamente distópicos onde, além do óbvio caso do desemprego, também teremos uma raça humana que se inutilizou totalmente, pois passou a depender da força de trabalho dos robôs para tudo. Tal situação adversa levou a contextos de guerra entre os humanos e os robôs. E os cientistas da fábrica, ao invés de pararem com a produção para estancarem toda a violência e caos, pensavam somente em produzir ainda mais robôs em outras circunstâncias que poderiam (ou não) amenizar toda a crise.
A peça levanta questões muito interessantes. Em primeiro lugar, a monstruosidade do ser humano quando ele brinca de ser Deus e cria novas vidas (podemos ver isso quando ele cria geneticamente novas raças de animais por aí), sem dar importância a todas as implicações morais e éticas disso. Tal situação se manifesta no início da peça, onde robôs totalmente angustiados e descontrolados agem como loucos por vários e vários minutos, já ditando toda a agonicidade envolvida na história. O conflito na mente dos robôs de encontrarem a si mesmos num choque contra a sua individualidade dá o tom desse desespero com explosões de paroxismo. Tudo isso provoca um forte sensação de desconforto no espectador. Outra questão a ser levantada é a da crítica à tecnologia e ciência. Num ambiente distópicoo onde o ser humano é antiético e imoral, o mito do cientista louco vem com força total. Mas se a visão caricata do homem de ciências desiquilibrado poderia, num primeiro momento, provocar risos, num segundo momento ela corrobora o desespero mostrado no início da peça, principalmente na figura da mulher que é aprisionada por dez anos na fábrica, inclusive em laços matrimoniais com um dos cientistas, e que sofre com o cotidiano insano da produção dos seres artificiais. Ou seja, apesar do alívio cômico de alguns personagens, o tom de toda a narrativa é altamente sombrio e dramático. Toda essa falta de moral e de ética não fica impune e os humanos e robôs acabam entrando em guerra, com os primeiros ficando realmente ameaçados de extinção. Mesmo assim, o homem não aprende e mantém sua linha insana de produção de mais e mais robôs, somente piorando o problema À despeito de todo um pessimismo envolvido na peça, o final feliz não foi abolido, já que um último (e único) gesto de sensatez salvou o dia. Mas sem mais spoilers por aqui.
A montagem da peça foi extremamente criativa, algo que muito se manifesta quando se tem poucos recursos. O palco foi ornamentado com espelhos e molduras de quadros, num ambiente perfeito para expressar as crises de identidade dos robôs. Foi usada uma trilha sonora futurista, onde o grupo alemão Kraftwerk deu o tom, com batidas um tanto tensas em alguns momentos. O mais curioso é que algumas dessas músicas de tom futurista já têm cerca de quarenta anos.
Um detalhe muito interessante foi a troca, durante a peça, de personagens pelos atores. A tal mulher aprisionada na fábrica foi inicialmente interpretada por uma atriz, mas depois foi interpretada por um dos atores, que passou batom em pleno palco e usou uma espécie de crachá improvisado com o nome da personagem. Isso exigiu a atenção do espectador.
Assim, “A Fábrica dos Cem Mil” é mais outra peça de qualidade que a Escola Estadual de Teatro Martins Penna exibiu para o público, como parte do trabalho de conclusão de curso de sua turma mais recente. Uma peça distópica, crítica da tecnologia e altamente reflexiva. Um drama psicológico com fortes tons de paroxismo. E a certeza de que essa Escola merece ter todas as condições de funcionamento por parte do poder público, pois é uma grande fábrica não de robôs, mas sim de talentos.