E estreou o tão esperado “Blade Runner 2049”. A ousadia em dar uma sequência a esse filme antológico da História do Cinema criou uma espécie de ideia geral de que a coisa não daria certo e estaria fadada ao fracasso. Essa é a maldição que os remakes e as sequências são obrigadas a passar: elas têm que ser, no mínimo tão contundentes quanto o filme original e o clima de descrédito é quem dita as regras iniciais, ou seja, o filme já começa condenado a largar atrás nessa insólita corrida de convencimento de público e crítica. Ainda mais com um filme do quilate de “Blade Runner”.
E qual foi o resultado? Essa película quilométrica, de cerca de duas horas e quarenta minutos, surpreendeu. Hampton Fancher e Michel Green, os roteiristas, e o diretor Denis Villeneuve conseguiram pegar o espírito da coisa e fizeram uma continuação à altura, tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista narrativo. Mas, mais importante que isso, o filme tinha um clima de “Blade Runner” muito pronunciado, impactando o espectador como poucas vezes se vê hoje em dia. Para que a gente possa falar um pouquinho dessa boa continuação, os spoilers serão inevitáveis.
Vemos aqui a história de K. (interpretado por Ryan Gosling), um androide que faz o mesmo papel que Deckard (interpretado por Harrison Ford) fazia: matar androides descontrolados. Mas, como assim? Depois do problema que os androides da Tyrell Corporation provocaram, a empresa acabou falindo, mas o espólio da empresa acabou sendo recuperado por outro megaempresário, Niander Wallace (interpretado por Jared Leto). Foram construídos novos androides obedientes aos humanos, mas os resquícios da linha anterior de androides permaneciam. Ao eliminar um deles numa fazenda, K. percebeu que havia um corpo enterrado por lá e que se tratava de uma androide fêmea, que tinha dado a luz!!! Ou seja, os replicantes conseguiram se reproduzir, algo que era incessantemente procurado por Wallace. Por uma coincidência de datas na sepultura da replicante e nos implantes de memória de K., ele passou a supor que era o tal filho perdido, embora tivesse nascido uma garota também que morreu em seguida. K., então, irá iniciar toda uma investigação para procurar o paradeiro do filho desaparecido, quem era a mãe e se o pai ainda estava vivo (o leitor mais atento já deve ter descoberto quem é esse pai e assa mãe).
O filme tem vários elementos interessantes. O principal deles é justamente a capacidade dos replicantes se reproduzirem. Ou seja, eles subiram um degrau no seu estágio de desenvolvimento e viraram a fonte de cobiça não somente de K. como também de Wallace. O mais curioso foi perceber como tal processo de reprodução ocorreu inteiramente ao acaso, sendo uma criação da natureza, ao invés de uma criação do homem, que corre atrás dela para estudá-la e procurar gerá-la artificialmente em laboratório. Esse era, pelo menos, o objetivo de Wallace, curiosamente um pesquisador cego que luta contra as limitações de sua pesquisa e de seus próprios sentidos. Por outro lado, a busca de K. já se revela em busca de identidade e de um passado perdido que pode aproximá-lo dos humanos, algo que o androide busca incessantemente, embora ele namore uma bela mulher virtual, Joi (interpretada pela lindíssima atriz cubana Ana de Armas) que também procura se tornar mais humana, o que é um sério problema, pois não há como se conseguir o prazer do toque. A introdução desses elementos novos já mostra como a agora franquia conseguiu ir além.
Mas foi dito acima que todo o clima de “Blade Runner” está lá. Os efeitos especiais conseguiram deixar todo o ambiente ainda mais soturno, onde a poluição e a chuva ácida davam o ar de sua (des)graça. É interessante notar que a Los Angeles de 2049 não é mais aquela metrópole homogênea que foi retratada no filme de 1982. Agora temos a cidade representada como uma espécie de enorme favela, mas há também fazendas, lixões e áreas descampadas, tudo com direitos a claros e escuros viscerais que lembravam menos o cinema “noir” (como o “Blade Runner” original lembrava) e muito mais um cinema expressionista, pelo forte contraste e pelo pessimismo latente impresso nas paisagens e imagens em geral. A coisa de se usar uma iluminação associada a um grande tanque d’água no escritório de Wallace deu um lindo efeito que potencializou o claro/escuro e aumentou o clima soturno da coisa. Ainda, dentro da estética vista em “Blade Runner 2049”, houve uma escolha muito feliz de não redesenhar a estética original. Assim, se por um lado tirou-se as japonesas dos telões de outrora e colocou-se imagens de sensacionais mulheres nuas holográficas (a tal namoradinha virtual de K.), por outro lado os anúncios da Atari e da Pan Am ainda estão lá, assim como a propaganda de uma escola de balé da União Soviética. Esse “Fan Service” ajudou em muito na aceitação do filme por parte dos fãs mais antigos de raiz (pelo menos no meu caso; e não devemos nos esquecer de que a versão de 1982 se passa no ano de 2019). Aliado a isso, não podemos nos esquecer de que algumas tomadas nesse novo filme faziam menção direta a tomadas do filme de 1982. O close do globo ocular está lá, assim como uma prostituta que lembra muito a Pris de Daryl Hannah. O convívio entre o velho e o novo também aparece vívido nessa nova versão. Assim, a modernidade dos patrocínios holográficos virtuais convive com os interiores antigos de casas, seja no apartamento de K., ou na cozinha da fazenda.
E os atores? A escolha de Ryan Gosling para protagonista foi boa, segundo as más línguas, pois ele faria muito bem o papel de um robô. Mas, brincadeiras à parte, sua interpretação não comprometeu, apesar de muito plana (quando ele deu uma explosão emocional, a coisa destoou um pouco do conjunto da obra). Ford também foi bem, embora fique o estigma de que um ex-protagonista já não possa fazer muito por causa da idade avançada. Foi bom rever Robin Wright, no papel da tenente Joshi, uma policial que conseguia ser uma chefe bem dura mas compreensiva com o subordinado K. Agora, na minha modesta opinião, quem deu um show de interpretação foi Jared Leto. A forma como ele conduziu seu personagem Wallace, com falas bem contidas e mansas, enquanto cometia as maiores barbaridades, foi de dar medo. É impressionante como a serenidade aliada ao sadismo produz um forte impacto. E Leto trouxe isso muito bem. Seu rosto angelical se encaixa perfeitamente bem nesses papéis mais psicóticos. E o ator parece ter plena consciência disso.
É claro que todo filme tem seus problemas. Na minha modesta opinião, foram dois aqui. O primeiro foi a sua longa duração, que deixou a coisa muito maçante em alguns momentos. Um filme mais curto poderia ter contado a história com mais desenvoltura. O outro problema foi no teste que K. precisava fazer para provar a sua fidelidade de androide aos humanos. Ficar repetindo termos incessantemente não pareceu provar qualquer fidelidade aos criadores ou manter características supostamente humanas. Na versão antiga, a gente entendia quando o teste mostrava quando o androide era pego. Aqui, foi uma espécie de devaneio em que a gente não entendia como o androide era aprovado ou não, o que foi uma pena, pois essa parte no filme original era muito marcante e aqui não foi tão bem trabalhada assim. Pareceu algo jogado somente para a gente se lembrar de que havia testes na versão de 1982.
Assim, “Blade Runner 2049” é um feliz caso de continuação que deu certo. Se o filme não é perfeito em alguns pontos (como todo filme não o é), pode-se dizer que a película acertou em muitos pontos, mantendo o clima do filme original e ampliando a questão estética e narrativa. Novos elementos foram adicionados sem se esquecer do espírito do original. E essas coisas casaram muito bem. Se você é um grande fã de “Blade Runner”, esse é um programa obrigatório. E esse é o tipo do filme que eu vou comprar o DVD depois, até para poder fazer um estudo comparativo mais profundo. Não deixe de ver.