Um curioso filme passa em nossas telonas. “1945” é uma produção húngara que aborda indiretamente a já batida temática da Segunda Guerra Mundial (confesso que já perdi a conta da quantidade de filmes que trabalham esse assunto). E por que indiretamente? Porque vemos aqui as consequências do conflito no imediato pós-guerra, onde algumas tensões ainda davam as cartas.
Do que trata a história do filme? Estamos no já citado ano de 1945, numa pequena vila do interior da Hungria. A vida de seus habitantes transcorre normalmente. A impressão que se tem é a de que os horrores da guerra passaram bem distantes de lá. Até que, um dia, dois judeus chegam ao povoado. Importunados rapidamente por soldados soviéticos ainda na estação de trem, os judeus começam a andar pela região. Essa simples presença causa alvoroço em toda a população local, pois os habitantes aproveitaram a frágil situação dos judeus na guerra para lhes usurparem todos os seus bens. Agora, a presença desses “forasteiros” parece uma espécie de acerto de contas. O que vemos daí em diante é a população de uma vilazinha inteira batendo as cabeças numa espécie de mea culpa para alguns e um show de mesquinharia para outros.
A primeira coisa que grita aos olhos nesse filme é a questão do colaboracionismo, onde alguns países europeus, com sua carga de antissemitismo, colaboraram com os ocupantes nazistas na perseguição aos judeus. Esse é um tema muito controverso e uma coleção de feridas abertas que se tornam um assunto tabu na Europa provavelmente até hoje, o que já torna essa película muito digna e corajosa de tocar uma temática tão delicada.
O filme também chama a atenção para outro ponto: o questionamento à noção de psicologia de massas, onde todo um grupo de pessoas, seja de um povoado, seja de uma cidade, ou até de um país, agiria de uma jeito praticamente uniforme sob determinada situação. Essa teoria foi usada por alguns pensadores do passado (no caso do cinema, o primeiro nome que me vem à mente é o de Siegfried Kracauer, da Escola de Frankfurt, com o seu conhecido livro “De Caligari a Hitler, Uma História Psicológica do Cinema Alemão”). Mas hoje em dia, a psicologia de massas parece um termo um tanto ultrapassado. Isso porque a mente humana é um fenômeno extremamente complexo e parece não ser muito responsável englobar algo tão dinâmico num comportamento tão padronizado. O próprio caso da vila mostra uma diversidade de reações sob a igual pressão da presença dos judeus. Havia os moradores mesquinhos, que queriam garantir a posse dos seus bens a todo custo; havia o caso do morador que se atormentava com o sentimento de culpa e buscava refúgio na bebida; havia o caso do jovem que simplesmente queria se desvencilhar daquilo tudo e deixar a vila, em busca de um recomeço num centro mais cosmopolita, seja na própria Hungria ou até em outro país. Ou seja, diferentes reações para uma mesma pressão psicológica, fazendo cair por terra a retórica da psicologia de massas.
O filme, apesar de suscitar boas discussões, tem, entretanto, um problema. Não pareceu haver uma boa apresentação dos personagens. Era necessária uma atenção do espectador acima do usual para compreender as funções de cada uma das pessoas que apareciam na película. Talvez isso tenha acontecido em virtude do grande distanciamento cultural entre nós e os húngaros, tornando o filme de mais difícil compreensão. Ou, simplesmente, não era a intenção do diretor trabalhar mais profundamente os personagens, embora ele tivesse o cuidado de realçar suas pequenas matizes.
Assim, se “1945” nem sempre seja um filme de fácil digestão, ele ainda é um programa recomendável, pois sempre podemos ver como quem “tem culpa no cartório” reage aos infernos que surgem dentro de suas próprias cabeças. Isso faz o filme se transformar num pequeno estudo da condição humana, tornando a película num programa obrigatório, o que vale a pena o preço do ingresso.