Uma co-produção Argentina/Brasil/Espanha passou em nossas telonas. “Zama”, de Lucrecia Martel, é uma história fictícia sobre uma realidade bem antiga: a da América Latina em dias coloniais. Um filme que é permeado de uma certa fidedignidade histórica, embora ele incomode um pouco em alguns momentos.
Vemos aqui a trajetória de Don Diego de Zama (interpretado por Daniel Giménez Cacho), um oficial da Coroa Espanhola dotado de certo prestígio, mas lotado num rincão de fim de mundo, ali para os lados da Argentina e Uruguai. O homem busca uma transferência para um grande centro, mas esbarra em alguns obstáculos, como um filho ilegítimo com uma índia e o fato de ter, entre seus protegidos, um escritor de um livro considerado proibido. Desesperado, Zama busca uma atitude drástica: ele sai em caça a um bandido local, Vicuña Porto (interpretado pelo nosso Matheus Nachtergaele), com o objetivo de buscar um prestígio derradeiro. Mas nem sempre o que se planeja é o que acontece por fim.
Esse filme tem dois elementos que chamam a atenção. Em primeiro lugar, é uma película que aponta para o cotidiano colonial, onde costumes europeus se mesclam com a cultura local. Vemos toda a coisa de se ser um funcionário público colonial dentro de uma retórica de Antigo Regime, onde havia uma concentração excessiva de poder na figura da autoridade pública. A prática do clientelismo (troca de favores) também era muito presente, onde Zama, na esperança de obter o tão almejado cargo num grande centro, fazia tudo o que o governador exigia. Mas Zama também estava inserido numa realidade colonial local que o tornava vulnerável, sobretudo no já citado relacionamento com uma índia, cujo filho ilegítimo era um estorvo para ele. Sua atitude voyeur de espreitar mulheres nuas no banho de rio era também uma espécie de fraqueza que a realidade local o submetia, embora sua reação fosse exemplar numa retórica de Antigo Regime. Ao fugir do flagrante de sua espreita ao banho feminino, Zama é perseguido por uma das mulheres nuas que quer lhe tirar satisfações. Nesse momento, o funcionário público afirma a sua autoridade e dá um tapa no rosto da mulher, lembrando muito bem quem é que manda ali.
O segundo elemento da película que salta aos olhos é a impressão de alguns estereótipos que temos sobre aqueles tempos pretéritos. Se o filme traz uma certa fidedignidade histórica ao analisar a figura de Zama como um funcionário público inserido na lógica de Antigo Regime de seu tempo, o filme também parece carregar nas tintas com relação à rótulos. No nosso senso comum, os dias coloniais parecem ser “piores” que os nossos. E o filme reza um pouco por essa cartilha. Tudo parece decadente, miserável. Há, por exemplo, um prostíbulo com negros e animais usados para práticas sexuais, como se tudo fosse altamente normal e corriqueiro. Confesso que nunca tive em mãos um estudo histórico sobre tal tema, mas o filme (que é baseado numa história de ficção, devemos nos lembrar) parece forçar excessivamente essa visão decadente e depravada. Outra coisa que incomoda um pouco é a forte decadência de Zama naquela sociedade, cuja mobilidade social era algo mais raro de ocorrer do que hoje. Sua queda foi muito acentuada e violenta, sendo esse mais um caso onde parece se carregar nas tintas.
E os atores? Daniel Giménez Cacho deu muita elegância ao personagem de Zama. Se o filme pode ter exagerado em alguns momentos, a atuação de Cacho foi bem contida e calculada, o que deu elegância e, por que não usando um trocadilho, “nobreza” ao personagem. Já Nachtergaele arrasou como sempre. Aparecendo mais na parte final da película, a caçada a Vicuña Porto, parte essa a mais interessante, nosso ator conseguiu transpirar uma crueldade atroz, confirmando a tese de que, dentro de uma visão maniqueísta, se havia algum “vilão” naquela região, esses eram os portugueses e brasileiros, que queriam de alguma forma se intrometer no fluxo de prata peruana para a Europa. Sim, meus amigos, os argentinos estão cobertos de razão à nosso respeito nesse ponto.
Assim, “Zama” é um filme que consegue ser contraditório. Se por um lado traz uma certa fidedignidade histórica, por outro parece também carregar nas tintas sobre o passado colonial latino-americano. Somente essa curiosidade já merece a atenção do espectador. No mais, temos a oportunidade de presenciarmos dois talentos na atuação: Daniel Giménez Cacho e Matheus Nachtergaele. Vale a pena dar uma conferida.