Todos nós sabemos da qualidade dos irmãos Salles em termos de cinema. Walter Salles Jr. é um nome de excelência em termos de enredo e João Moreira Salles se especializou mais na arte do documentário. É o irmão mais novo, João, que lançou, há algum tempo, mais uma de suas obras-primas, o excelente documentário “No Intenso Agora”. Mesclando um quê jornalístico com uma memória afetiva, o cineasta monta todo um filme especial, numa colcha de retalhos de fragmentos de uns filmes caseiros, outros nem tanto.
O escopo principal do filme está centrado em vários movimentos sociais da década de 60: a Revolução Cultural Chinesa de Mao, a Primavera de Praga, o maio de 1968 parisiense, os movimentos de protesto contra a ditadura militar brasileira, também em 1968. O documentarista analisa as imagens produzidas naquele período, seja por cineastas, seja por amadores, seja por movimentos de trabalhadores. Infelizmente, a disponibilidade de material que sobreviveu ao tempo e à censura dita o peso de cada um desses movimentos no filme. Como a França teoricamente é o país mais rico e democrático dos registrados aqui, o movimento de maio de 1968 em Paris ganha maior destaque no filme, justamente porque foi o mais ricamente documentado. Já a Revolução Cultural de Mao ganha um viés mais caseiro, em filmes particulares da mãe de Salles, sendo talvez a parte mais intimista de todo o filme, não sem abandonar um ponto de vista mais jornalístico. Por se tratar, talvez, de um dos filmes de mais curta duração, as imagens dele recorrentemente aparecem ao longo da película, sendo estas as que mais se impregnam em nossa memória. É notável perceber como essas imagens são relidas pelo texto de Salles, a cada nova aparição, dando um tom de ineditismo ao já dito no materialismo das imagens.
Notáveis são os filmes da Primavera de Praga. Mesmo que os cineastas desses fragmentos tenham tido uma certa liberdade de mostrar o avanço soviético em seu início, o ambiente opressor soa mais pronunciado que nos filmes dos demais movimentos. Filmagens escondidas de dentro de apartamentos ou de telas de televisão no interior de salas escuras, onde ocorre a posse de elementos “oficiais” do governo pró-soviético, dão um tom de clandestinidade ao registro.
Só é um tanto lamentável que a manifestação brasileira tenha tido tão pouco espaço no filme, e ainda assim para servir de contraponto a um caso de suicídio de um manifestante em Praga. Os relatos brasileiros mereciam um espaço um pouco maior. Mas, cabe aqui a dúvida: será que eles são tão ínfimos por escolha do diretor ou porque a repressão em terras brasileiras foi tanta que tornou os registros ínfimos em sua essência? Foi uma questão de escolha, seletividade, recorte, ou foi uma questão de imposição da própria precariedade do material produzido durante violenta repressão?
De qualquer forma, “No Intenso Agora” é um grande documentário, pois ele consegue fazer com magnificência três coisas básicas: um relato familiar profundamente pessoal e afetivo; consegue registrar de forma um tanto jornalística todo um ambiente de luta pela liberdade inerente àquela época, que se manifestava de formas diferentes em lugares diferentes; e fazia toda uma leitura das imagens, analisando-as e comparando-as com outras imagens de outros contextos. Essas três características não se manifestavam de forma compartimentada e estanque, mas sim interligadas e relacionando-se mutuamente, o que dá excelência e grandeza a esse bom documentário, cujo ato de assisti-lo se torna assim um programa imperdível. Filme essencial para amantes de Cinema, de História, e de uma trama contada com o coração.