Um interessante produção chilena passou em nossas telonas. “Cachorros”, filme escrito e dirigido por Marcela Said, mais uma vez visita o período sombrio da ditadura chilena de Augusto Pinochet. Só que, dessa vez, a coisa é feita de uma forma, digamos, estranha, como se todos esses crimes fossem relativizados, ou até se fizesse uma troça com tudo isso. Mas, será que foi isso mesmo?
A película tem como protagonista Mariana (interpretada por Antonia Zelgers), uma mulher de espírito livre e que leva a vida meio que na flauta. Ela toma aulas de equitação com Juan (interpretado por Alfredo Castro), um ex-militar do exército que participou da repressão em tempos pretéritos e está em vias de ser julgado. Logo, logo, o passado de Juan virá à tona e algumas pessoas (dentre elas, o próprio marido de Mariana), não verão mais com bons olhos nossa protagonista continuar a ter aulas com uma pessoa com muitas mortes nas costas. Só que Mariana não dá muita bola para isso e continua seu relacionamento com Juan. À medida que o passado é revirado, Mariana descobre que seu próprio pai esteve envolvido com o exército na época. E assim, o filme vai se desenvolvendo, com Mariana tendo um comportamento um tanto quanto errático, ora parecendo se preocupar com o passado, ora não dando a mínima para tudo o que ocorreu e mantendo seu relacionamento com o ex-militar acusado.
Alguns críticos argumentam que esse comportamento errático de Mariana é a grande atração de um filme que prima pelo não explicado e pelo excesso de pontas soltas, tendo uma natureza um tanto quanto fragmentada. O filme, por ter tal característica, teria recebido uma série de prêmios no exterior. Entretanto, me parece aqui que essa personagem é mais alienada do que qualquer outra coisa, fugindo do lugar comum de se condenar a ditadura e suas atrocidades em favor de primar pela liberdade de se relacionar com qualquer homem e não seguir ordens de ninguém (além do militar, ela também se aproxima do policial que investiga o caso, sendo rechaçada categoricamente por este). Tal mistura não me pareceu algo pertinente a se fazer, pois a moça pode, ao mesmo tempo, ser livre e rechaçar os crimes cometidos pela ditadura. Seu relacionamento com o militar, mesmo sabendo que ele teve participação em atrocidades do passado foi, no mínimo, muito esquisito. Mais esquisito ainda foi Juan reclamar que não foram somente as vítimas da ditadura que sofreram perdas. Não podemos nos esquecer que as perdas em ambos os lados foram única e exclusivamente consequência da ditadura, pois sem ela, o movimento guerrilheiro não existiria. Por outro lado, Mariana tem uma postura mais crítica com a participação do pai, o que somente aumenta a dose de inusitado e de contradição da personagem. Ou seja, Mariana não tem qualquer coerência em suas ações. Se isso é uma virtude a ponto do filme receber vários prêmios internacionais eu confesso que não sei. Mas que a coisa ficou muito confusa, ah isso ficou. Pelo menos, o destino dos cachorros parece que condena as atitudes de Mariana ao longo do filme. Mas se isso aconteceu ou não, eu deixo para o espectador.
Assim, “Cachorros” pode ser visto como um filme perturbador, pois sai do lugar comum da crítica às atrocidades da ditadura e parece relativizar o discurso da barbárie, algo que é totalmente impossível de se relativizar. Eu sugiro que o nobre leitor assista ao filme e tente quebrar a cabeça ao fazer a sua leitura.