Ainda dentro das análises dos filmes do Festival do Rio 2018, falemos hoje de uma grande joia. Tanto que ela ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes este ano. “Três Faces” é do meu diretor de cinema predileto, Jafar Panahi. Peço ao leitor mais um pouco de paciência com meus relatos pessoais. Sempre fui um amante do cinema iraniano, desde que vi “O Balão Branco”, do mesmo Panahi. As semelhanças com o neorrealismo italiano, onde gente do povo era utilizada como elenco numa Itália arrasada pelo pós-Segunda Guerra Mundial sempre chamaram muito a minha atenção.
E ai, teve uma época em que muitos filmes iranianos passavam por aqui. Entretanto, algumas pessoas começaram a cornetar contra esse tipo de cinema, dizendo que era chato, sem graça, etc. E aí, os filmes iranianos saíram de nossas telonas. Mas continuaram ganhando muitos prêmios por aí, inclusive o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Mesmo assim, os filmes continuaram a não ser exibidos por aqui. E agora, que mais um filme iraniano volta aos holofotes por ganhar um prêmio na Europa, temos a oportunidade de assistir a uma película persa novamente.
O plot do filme é simples, tornando-se complexo gradativamente. Panahi e uma conceituada atriz iraniana, Behnaz Jafari (eles interpretam a si mesmos) fazem uma viagem para a região das montanhas, pois uma moça, Marziyeh (interpretando ela mesma) mandou um vídeo para o celular da atriz onde ela está desesperada, pois a família não quer que ela vá para Teerã estudar no Conservatório de Arte Dramática para se tornar atriz. A menina termina o vídeo colocando uma corda no pescoço e a imagem tremendo, como se ela tivesse se suicidado. Behnaz ficou desesperada e foi com Panahi para as montanhas, largando as gravações de seu programa na TV. A partir daí, o diretor e a atriz irão fazer uma busca pelo paradeiro de Marziyeh, interagindo com os habitantes das montanhas e com a cultura local, altamente tradicional e com toda uma peculiaridade própria, altamente conservadora.
Como a legendagem do filme estava na própria película, existe uma chance do filme entrar em circuito por aqui (até pelo seu prêmio de roteiro em Cannes) e não darei maiores spoilers. Mas dá para falar de algumas coisas. Esse é mais um filme de diálogo ora maniqueísta, ora culturalista, entre tradição e modernidade, onde a primeira faz as vezes de vilã. Se bem que a película consegue, volta e meia, relativizar um pouco as coisas de forma muito sutil. Os povos das montanhas, vilas e vales são de outra etnia, a ponto de falar turco ao invés de persa. Marziyeh é mal vista pela população local, assim como uma antiga atriz que foi banida daquela sociedade e vive isolada. Embora numa primeira impressão fique parecendo algo bem retrógrado e machista (não dá para pensar diferente) perseguir a moça por querer seguir a carreira artística, o diretor também tenta analisar a cosmogonia local ao dar fala a um habitante idoso da região onde ele diz que Marziyeh não se enquadra à realidade local, pois não cumpre uma função específica em seu povoado. Todos têm uma função específica (plantar, cuidar de animais, etc.), o que é de importância vital para a própria sobrevivência do povoado, mas Marziyeh não quer se enquadrar nisso. Ela quer atuar e estudar, algo que não tem objetivo prático naquela sociedade mais tradicional. Mesmo com essa relativização sutil, ficou bem clara a leitura de Panahi: as pessoas da cidade grande, dentro do arcabouço da modernidade, teriam uma mente mais “aberta” com relação à questão da liberdade para a mulher atuar no campo artístico, onde, por outro lado, no campo isso seria impossível, com outra etnia mais conservadora e até um tanto estrangeira. Mesmo assim, a modernidade invade a tradição, pois o programa de tv de Behnaz é apreciado pelos moradores locais e eles até a perguntam o que acontecerá nos próximos capítulos da novela.
No mais, é tudo aquilo que vemos no bom filme iraniano. Um ritmo lento, lindas paisagens, diálogos entre grupos culturais diferentes que levam a interessantes reflexões e, como sempre, uma espécie de grito velado por mais liberdade para o país, que ainda tem muitas restrições típicas daquelas de países com regimes teocráticos.
Assim, “Três Faces” é mais um bom filme do Festival do Rio 2018. Três faces. Três atrizes. A banida do passado, a consagrada do presente, a que busca um espaço no futuro. Todas elas dialogando (ou não) com uma comunidade tradicional. E, dessa peculiar interação, podemos tirar muitas reflexões. Essa película vale a pena estar em circuito por aqui futuramente. Vamos torcer.