O cinema brasileiro conseguiu no fim do ano passado gestar uma grande obra. Uma verdadeira obra prima. Também pudera. “Rasga Coração” é baseado em obra homônima de Oduvaldo Vianna Filho, dirigido e adaptado por Jorge Furtado. Um filme que fala de conflito entre gerações, mas também um filme que mostra como em nosso país passado e presente podem ter a mesma cara.
O plot se volta em torno de Manguari (interpretado na sua maturidade por Marco Ricca), um funcionário público que faz relatórios para a Secretaria de Educação sobre as escolas públicas. Ele tem um casamento tradicional com Nena (interpretada por Drica Moraes) e tem um filho adolescente, Luca (interpretado por Chay Suede). Essa é uma típica família da Zona Sul carioca, com uma vida razoavelmente estável, mas com apertos financeiros aqui e ali. Manguari tem um passado de militância no movimento estudantil nos anos mais pesados da ditadura militar (nesse momento, Manguari será interpretado por João Pedro Zappa). E até hoje tem uma mentalidade na busca por justiça social. Entretanto, as necessidades da vida acabaram mergulhando Manguari num modo de ser mais comedido e burguês. Já o filho Luca, inspirado pela educação do pai, até se engaja politicamente (a sua escola tradicional proibiu algumas peças de vestuário, levando a questão de gênero de uma forma preconceituosa como parâmetro), mas tem outras visões de mundo que causam estranheza ao pai mais liberal e à mãe mais conservadora. Esse vai ser o ponto de partida para uma relação entre pai e filho com idas e vindas, calmarias e turbulências.
O que faz esse filme ser grandioso? Em primeiro lugar, o personagem protagonista, Manguari é focado em dois momentos no tempo: em sua fase madura, onde ele é um austero pai de família, mas ainda com as convicções do passado, e nos seus tempos de adolescência e movimento estudantil, onde ele terá sérios conflitos com o pai, que tem uma cabeça muito conservadora. O filme faz um jogo com esses dois recortes cronológicos, provocando um verdadeiro diálogo entre eles e buscando rupturas e permanências, sendo que isso foi feito de forma orgânica e magistral, sinal de que tivemos uma excelente montagem. A coisa é colocada no ponto de vista bem pictórico, principalmente quando o diretor quer marcar as permanências do passado no presente, colocando coladas as imagens dos tempos pretéritos com as dos tempos atuais para atestar a continuidade do racismo ou do comportamento do pai que expulsa o filho de casa tanto no passado quanto no presente. Mas o filme busca também por rupturas. Se o pai, por exemplo, tinha outras visões de mundo na luta pela justiça social, onde ele quer que as pessoas que pensam diferente de você tenham acesso à tua voz para estabelecer um diálogo e não ficar todo mundo isolado em suas bolhas (nada mais atual), o filho, por sua vez, não concorda com essa forma mais “diplomática” e prefere a ação direta. O filme também mostra as contradições dos indivíduos: o pai quer justiça social mas está num confortável modo de vida burguês; o filho critica o conformismo do pai, mas também fica largadão em seu quarto, tendo tudo na mão, também com um modo de vida burguês. A mãe, de pensamento conservador, acha que o pai tem um comportamento demasiadamente liberal com o filho e quer que uma atitude seja tomada. E aí, quando a atitude é tomada pelo pai e o circo pega fogo, a mãe quer colocar panos quentes. Ou seja. nenhum personagem é totalmente plano, aparecendo contradições que fazem parte da vida de qualquer ser humano.
Mais uma coisa chama a atenção: esse filme poderia cair facilmente no estereótipo de uma relação totalmente conflituosa entre pai e filho. É isso que o trailer aparenta. Entretanto, o roteiro do filme escapa disso e vemos momentos de bom entendimento e até de ternura e harmonia entre pai e filho, seja no passado, seja no presente. Isso tornou o filme muito mais delicioso, produzindo meandros que tornaram a história bem mais interessante.
Com tantas qualidades, a gente precisa falar do elenco. Essa também é aquela película que nos leva ao cinema para ver os atores. E como esse elenco estava bom! Marco Ricca estava simplesmente impecável, transitando com eficiência entre o inconformismo e o conformismo, entre o liberalismo e o conservadorismo, entre a agressividade e a ternura. Drica Moraes teve um papel um pouco mais plano, com raros momentos de complexidade e contradição, mas ela imprimia um carisma a sua personagem tão notável que conseguia roubar a ação. Chay Suede, ao interpretar um adolescente (que já é visto como “chato” pela sociedade), não deixou seu papel cair num lugar comum e marcou pela boa alternância entre a rebeldia e a ternura para com o seu pai. Agora, um ator que muito surpreendeu foi o jovem George Sauma, que interpretou Bundinha, um amigo de adolescência de Manguari, que era um porra louca total e fazia todas as suas loucuras, sendo o alívio cômico do filme. O detalhe é que Sauma não ficou apenas nisso e teve ótimos momentos dramáticos com Zappa, o que mostrou toda a versatilidade do ator que a gente está acostumado a fazer papéis mais humorísticos no “Zorra” na TV. Essa película foi uma excelente oportunidade para ele destilar mais seu talento para o público. E Sauma a agarrou com unhas e dentes.
Dessa forma, “Rasga Coração” é um filme simplesmente imperdível. Uma joia de nosso cinema. Um filme que poderia cair em estereótipos e clichês, mas conseguiu driblar tudo isso com bastante maestria. Um filme que pode ser pessoal, mas que também pode dizer um pouco mais das rupturas e permanências em nossa sociedade. Ou seja, um filme fundamental. Um filme essencial. Para ver, ter e guardar.