É impressionante a recursividade de Nelson Rodrigues na cultura brasileira, um indício de que sua obra é atemporal. E ele está de volta mais uma vez, agora sob a tutela de Murilo Benício, que escreve e dirige uma nova versão para “O Beijo no Asfalto”. E o que essa nova tentativa de descortinar Rodrigues nos traz? Ela tem o grande mérito de ser uma espécie de “história comentada” pelos próprios atores que interpretam a peça.
O plot é perturbador e tem tudo que identificamos em Rodrigues. Um atropelamento,uma vítima masculina moribunda (ou já morta?), um homem que beija essa vítima,num ato de compaixão, nada mais. O problema é que isso é visto por seu sogro e por um repórter sensacionalista que pretende transformar essa história num grande escândalo para salvar a pele de um amigo policial que estava mal na fita e que vai conduzir as fantasiosas investigações. A partir daí, o homem que beijou o atropelado tem sua vida devassada pelos jornais em virtude do conservadorismo da época, sendo até incriminado por um possível assassinato. Isto provoca um efeito dominó que detona várias subtramas que vão do amor físico de um pai para com sua filha até a paixão entre cunhado e cunhada (mais rodriguiano impossível), levando a um desfecho trágico.
Como o filme é uma espécie de “história comentada”? Vemos isso logo em seu início,quando temos uma mesa com vários atores debatendo sobre a peça e lendo seus papéis. Dentre eles estão figuras muito conhecidas como Lázaro Ramos, Otávio Müller, Débora Falabella, Stênio Garcia e Fernanda Montenegro. É delicioso ver tantos atores conceituados analisando os próprios personagens, assim como o contexto histórico e social onde a peça foi forjada. Isso difere em muito da minha visão dos filmes de Nelson Rodrigues lá da década de 70 dirigidos por figuras como Neville D’Almeida, onde havia uma pegada mais direcionada ao erotismo e à sensualidade (embora uma neurose dos personagens já estivesse marcada). Mas o filme não ficava preso somente a essa análise. Logo, os personagens estariam em estúdio e locações contando a história da peça, embora isso fosse feito de uma forma sempre mesclada com o making of. Assim, poderíamos, numa cena, ver os atores atuando para, instantes depois a gente ve ra filmagem por outro ângulo de câmara, onde aparecia Walter Carvalho filmando os atores, ou uma casa abandonada se transformar num palco com uma plateia assistindo. Isso sem falar que a película é em preto e branco, que sempre favorece mais os contrastes da imagem do que o colorido e é bem mais artístico e estético. Nesses pontos, o filme foi bem interessante e original. Só não é totalmente inovador, pois a gente já viu uma produção nesse estilo em outros carnavais.
O filme ainda suscita mais questões. Ele é assustadoramente atual no que tange à crítica de Rodrigues ao conservadorismo da sociedade. A homofobia enorme que aparece na película, ao ponto de criminalizar uma atitude solidária, ainda se faz bem presente na nossa sociedade de hoje, sessenta anos depois. Isso é notado pelos atores que interpretam o filme. Montenegro inclusive aponta para o fato de que a sociedade que protagoniza a história é do subúrbio (e não da Zona Sul) de sessenta anos atrás e que terá esses traços mais conservadores e tradicionais. Fico eu me perguntando aqui se esse conservadorismo é uma característica mais inerente a sociedade de subúrbio ou ela também se manifestaria na sociedade de Zona Sul da época.
Outra coisa que chama a atenção é a crítica ao jornal “Última Hora”, que publicava as reportagens que defenestravam o beijo. Fala-se por aí de que Nelson Rodrigues,mesmo sendo um crítico ácido da sociedade tradicional, era um homem de direita e que seu filho, que participava da guerrilha contra a ditadura e estava preso, só teria sobrevivido por um pedido de Rodrigues a Médici, seu amigo. Confesso que não chequei essas informações mas essa história já foi contada por aí. Assim, se ela for verídica, é sintomático perceber a crítica ao jornal “Última Hora”, do Samuel Wainer, considerado um jornal getulista e de esquerda, em oposição à “Tribuna da Imprensa”, de Carlos Lacerda, um jornal notoriamente de direita e de oposição ferrenha a Vargas.
Assim,“O Beijo no Asfalto” é mais um bom filme brasileiro que merece a atenção do público, onde Murilo Benício fez um ótimo trabalho, escrevendo e dirigindo uma obra que pretende ser, simultaneamente, artística e didática, dando um grande resultado. Um programa obrigatório para os cinéfilos e amantes da obra de Nelson Rodrigues. Para ver, ter e guardar.