Um filme argentino perturbador. “O Anjo” fala da história real de um bandido que sacudiu a Argentina em 1971, em plena ditadura militar. Vamos, mais uma vez, lançar mão dos spoilers aqui.
Carlos (interpretado por Lorenzo Ferro) era um jovem rapaz de classe média que estava fora de todas as convenções do que seria um larápio: era bonito, com uma base familiar considerada sólida, estudava numa escola conceituada. Mas Carlos tinha outras “qualidades”. A principal delas era ser um perigoso psicopata que não tinha qualquer limite e via na ousadia do roubo seu modo de vida, onde ele amava a liberdade de transgredir tudo o que visse à sua frente. O problema é que ele exagerava, e muito, em seus delitos, justamente com o intuito de desafiar seus limites pessoais.
E não tinha qualquer pudor em matar. Carlos irá ter um companheiro de crimes, o colega de escola Ramón (interpretado por Chino Darín), cuja família não era muito chegada a atividades mais lícitas. Aqui, podemos destacar as atuações de Daniel Fanego, o pai, e Mercedes Morán, a mãe, mais oferecida e sensual do que nunca. Chamou muito a atenção essa família criminosa e amoral, onde Carlos se encaixa como uma luva, mas que também causa problemas por suas atitudes exageradas no seu novo ofício.
Outro detalhe que chama muito a atenção era o caráter andrógino de Carlos. Ele chegava a flertar com Ramón e rolava até um ciuminho, o que, para um psicopata, pode levar a uma situação fatal. Essa sexualidade aflorada aparecia nos roubos de joalherias, onde Carlos usava brincos se chamando de Marilyn Monroe e até de Evita. É claro que isso teve uma enorme repercussão da mídia da época, onde a ditadura militar estava a todo vapor, e provocou um clima enorme de curiosidade, dando a Carlos uma dimensão mítica no imaginário da época.
Mais uma curiosidade do filme: Carlos desafiava, como vimos acima, os estereótipos do bandido da época. Num momento do filme, até vemos sua face sendo medida, pois no pensamento da época, era possível “identificar” quem tinha propensão para o crime através das medições das dimensões do rosto, ou seja, as dimensões do rosto de uma pessoa negra seriam as mais propícias para quem tem propensão ao crime. Na verdade, essa técnica de “medição” era algo também feito no Brasil no início do século passado.
É curioso notar como a ditadura argentina, em plena década de 70 do século XX, ainda usava uma técnica corriqueira nas primeiras décadas do século XX. Aliás, ainda fica mais uma curiosidade: de como os jovens amigos, parceiros de crime, estavam alheios ao autoritarismo da polícia na época e que só têm um contato mais aprofundado com todo o contexto político da época quando começam a ser perseguidos pelas forças do estado por seus crimes, revelando uma faceta da violência da época.
E os atores? Lorenzo Ferro consegue convencer ao fazer um papel extremamente difícil, pois ele desperta sentimentos altamente conflitantes. Seu personagem tem um leve cinismo, é uma espécie de filho de comportamento bom sereno, mas pode ser também um assassino bem frio e repugnante. É realmente um personagem muito complexo que exige muito do ator. E, dada a juventude de Ferro, seu trabalho é muito marcante. Já Chino Darín pareceu ter um papel um pouco mais fácil, pois ele se portava muito mais de forma delinquente, com pouquíssimas nuances. É de se notar como ele estava mais parecido com seu pai, Ricardo Darín, provavelmente por seu corte de cabelo nessa película. Outra atriz que merece destaque é Cecilia Roth (sua presença aqui muito provavelmente teve a mão dos irmãos Almodóvar, que estão entre os nomes da produção dessa película), no papel da mãe de Carlos, que era extremamente complacente com o filho, convencendo bastante e sendo uma ótima aquisição ao elenco.
Dessa forma, “O Anjo” é um intrigante filme argentino que trata de uma história real que chega às beiras da repugnância pela maldade e comportamento fútil de seu protagonista. Um filme que mostra uma ótima atuação de um jovem ator como Lorenzo Ferro, que teve a difícil missão de interpretar um personagem bem complexo, onde um ar angelical e feminino anda de mãos dadas com uma psicopatia doentia. Um filme de grandes atores como Chino Darín, Mercedes Moran e Cecilia Roth. E mais um filme que mostra os assombros de uma ditadura militar. Vale a pena dar uma conferida.