Uma excelente co-produção Espanha/Estados Unidos. “O Silêncio dos Outros” é um documentário que foi produzido por Pedro Almodóvar e fala de cicatrizes. Ou melhor, de verdadeiras feridas abertas que doem e sangram até hoje na Espanha. E por que elas não se fecham? Por causa de uma palavra que é muito conhecida de nós, brasileiros, e que também mantém muitas feriadas abertas por aqui: a anistia. Vamos precisar de spoilers para poder analisar esse documentário.
Todos nós sabemos que o fascismo foi algo abominável e que provocou severas ditaduras na Europa. Na Itália, o fascismo durou cerca de duas décadas. Na Alemanha, o nazismo durou doze anos. Agora, imagine um regime fascista que tenha durado mais de trinta anos? Isso aconteceu na Península Ibérica. O salazarismo português durou quarenta e um anos e o franquismo espanhol trinta e oito anos, o que levou a tudo aquilo que podemos esperar de regimes muito autoritários. No caso espanhol, optou-se, após o fim do regime, em votar-se uma lei de anistia para simplesmente se colocar uma pedra sobre o assunto e se enterrar para sempre o passado. Esse tema virou um tabu na Espanha e não é nem ensinado nas escolas, completamente silenciado e apagado da memória. Mas as vítimas do regime permanecem lutando para manter vivas as memórias de seus entes queridos e, ainda, acionar a justiça contra torturadores e assassinos ainda vivos. O documentário mostra justamente a saga dessas vítimas do franquismo por justiça. Existem vários casos dentre essas pessoas: o torturado que quer que seu torturador seja julgado (eles moram na mesma rua, praticamente um em frente ao outro); a filha, já em idade avançada, que quer apenas ser enterrada com a mãe, que foi morta pelos falangistas franquistas e provavelmente se encontra sepultada numa vala coletiva sem identificação à beira da estrada que passa pelo vilarejo onde vivia; um igual caso de uma senhora em idade avançada que quer ser enterrada com o pai.
Neste caso em específico, temos uma constatação macabra do que foi o franquismo. Há vários cemitérios na Espanha com túmulos ricamente adornados de franquistas e, na mesma necrópole, uma área fechada ao público onde estão as valas coletivas de executados pelo franquismo sem identificação (só há lápides, colocadas provavelmente pelas famílias dos executados, com a indicação da vala coletiva). Em algumas dessas valas coletivas, marcas de tiros ainda podem ser vistas nos muros que ficavam atrás dos executados, numa testemunha gritante de um genocídio institucionalizado. Houve, também, um imoral sequestro de bebês de filhos de opositores (e, posteriormente, até de famílias mais pobres) que eram entregues para simpatizantes do regime, um fenômeno semelhante ao que aconteceu durante a ditadura militar argentina. O detalhe é que, no caso argentino, estima-se que cerca de quinhentos bebês tenham sido sequestrados de seus pais; como a ditadura franquista, por sua vez, durou bem mais tempo, essa estimativa no caso espanhol sobe para milhares ou até dezenas de milhares de bebês.
Como os algozes franquistas estão protegidos pela lei de anistia na Espanha, as vítimas do franquismo decidiram abrir o processo em outro país, mais especificamente a Argentina, onde os militares acusados de atrocidades em sua ditadura foram julgados e punidos. Mas, por se tratar de um processo em outro país, o caminho é muito tortuoso e difícil, sem falar que a própria justiça espanhola coloca muitos empecilhos no caso, até porque muitos franquistas simplesmente permaneceram em postos do governo depois da transição democrática. Até o fechamento do documentário, a luta das vítimas ainda continuava, embora tenham acontecido pequenas vitórias como o reconhecimento do corpo do pai daquela senhora que queria ser enterrada com ele. Mas ainda há muito ódio pairando na Espanha. Um dos poucos monumentos às vítimas do franquismo, por exemplo, apareceu com marcas de bala no corpo de uma das estátuas. O escultor do monumento disse que agora sua obra estava completa.
Assim, “o Silêncio dos Outros” é um documentário fundamental, para se ver, ter e guardar, onde o cinema cumpre a sua função de denúncia de injustiças. Só é doloroso saber que em nosso país há casos semelhantes, igualmente silenciados. i