Batata Movies – Neville D’Almeida, Cronista Da Beleza E Do Caos. A Via Crucis De Um Transgressor.

Cartaz do Filme

Um bom documentário do crítico Mario Abbade. “Neville D’Almeida, Cronista da Beleza e do Caos” fala da trajetória do polêmico cineasta, rotulado por muitos como imoral e pornográfico, que não abriu mão de sua liberdade criativa num período muito turbulento, que foi a ditadura militar, mas que podemos dizer que também foi perseguido até em dias considerados democráticos.

Um transgressor perseguido por tudo e por todos…

É um documentário feito de uma forma bem convencional, com imagens de arquivo, trechos de filmes de Neville e muitas entrevistas. Podemos ver lá todo um ressentimento, bem justificado diga-se de passagem, do diretor, que foi muito perseguido pela censura (a audiência onde se estabelece a proibição do filme “Rio Babilônia” é emblemática e revoltante), mas também pelo boicote que sofreu em dias de democracia, onde seus projetos não conseguiam captar recursos. O forte apelo sexual de seus filmes eram vistos com um preconceito profundo pelos setores mais conservadores.

“Dama do Lotação”, seu grande sucesso…

Mas o documentário, com muita propriedade, consegue mostrar que o conteúdo sexual dos filmes de Neville não era algo chulo ou de baixo nível. Se pegarmos o seu grande sucesso, que foi “Dama do Lotação”, estrelado por Sônia Braga, inspirado na obra de Nelson Rodrigues, vemos uma mulher que lida de forma bem livre com sua sexualidade, não se prendendo às convenções impostas pela sociedade altamente conservadora da época às mulheres. A personagem de Sônia Braga nesse filme é um claro exemplo de empoderamento feminino, décadas antes da cunhagem do termo. Mulher essa que era sim atormentada pelas convenções sociais da época, tentando resolver sua compulsão sexual em sessões de análise, e caindo em desespero ao final do filme. Com essa breve sinopse de “Dama do Lotação”, dá para perceber que esse não é um simples filme de sacanagem, como alguns detratores de Neville rotulam.

Documentário com muitos depoimentos, como o de Regina Casé, que participou de “Os Sete Gatinhos”…

Por incrível que possa parecer, Neville só fez duas adaptações de Nelson Rodrigues (sei lá, na minha cabeça, sempre pareceu que o diretor fez mais adaptações de Rodrigues para o cinema). A outra foi “Os Sete Gatinhos”, onde a sensualidade dividiu espaço com uma componente psicológica visceral, numa diversidade de personagens femininas. Aliás, esse é um adjetivo que cai bem na obra de Neville: seus filmes podem ser bem viscerais, não somente no sexo explícito sincero (mas não apelativo), mas também em sequências que podemos classificar como altamente escatológicas, com personagens em decadência mergulhando em poças de lama e esgoto, nem um pouquinho cenográficas. Assim, seu cinema tem algo de psicológico e agressivo, com o objetivo de tirar o espectador de sua zona de conforto. Um cinema feito com muita coragem, sem a intenção de agradar, mas de se dizer o que se sente, sem rodeios ou meias palavras. É claro que, num país com mentalidade tão autoritária e conservadora, um diretor cinematográfico desse naipe é severamente perseguido, pois ele incomoda, vai contra o estabelecido e o inquestionado, tornando-se um perigo para o sistema. E Abbade consegue mostrar em cores vivas como e por que Neville incomodava tanto, dando voz a um artista a quem sempre quiseram calar.

Momento precioso do documentário: Sônia Braga entrevistando Neville e Nelson Rodrigues e falando sobre “Dama do Lotação”…

Dessa forma “Neville D’Almeida, Cronista Da Beleza e do Caos” é um documentário obrigatório para aqueles que estudam o cinema brasileiro e querem entender a dinâmica de funcionamento das ideias desse artista transgressor numa sociedade tão autoritária e conservadora como a brasileira. Um documentário que dá voz a um artista compulsoriamente silenciado desde sempre. Um documentário imperdível e fundamental.