Durante a Ditadura Militar, ficou conhecido o fato da encenação de algumas peças teatrais com o objetivo de agredir o público para que ele começasse a se manifestar e sair da letargia com relação aos anos difíceis daquele regime. Isso foi falado em “1968, O Ano Que Não Terminou”, de Zuenir Ventura. Pois é. Essa foi a impressão que eu tive quando assisti a peça “Game Over, Ou Não Tá Fácil Pra Ninguém”, de mais uma turma de formandos da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna. Talvez essa tenha sido a peça mais agressiva que eu assisti na Escola. Também pudera. Isso é um sinal dos tempos altamente agressivos pelos quais temos passado e onde a Terceira Lei de Newton (a da ação e reação) acaba se aplicando com muita vontade.
Agora, uma coisa precisa ficar bem clara. Se a peça foi agressiva com o público, isso não significa que ela tenha agredido propriamente o público. A abordagem foi incisiva, mas não desrespeitosa. A peça foi dividida em várias pequenas histórias e situações em que se analisa a conjuntura social, econômica e política atual, que passa por momentos muito difíceis. E a forma impactante com que isso é feito tem uma intenção: tirar o espectador da zona de conforto e, com a sua participação na peça, estimulá-lo à reflexão, como no momento em que as atrizes da peça convidam todas as espectadoras a queimar numa churrasqueira acesa alguns pênis de cartolina que simbolizam o machismo e preconceitos masculinos. E cada espectadora tinha liberdade para queimar o preconceito ou a repressão que quisesse: ser a única mulher do setor da empresa em que trabalha e ser tratada como um objeto de desejo por causa disso, repúdio à violência doméstica, dizer o que a mulher deve fazer ou vestir, etc., etc. A experiência foi tão catártica e libertadora que algumas espectadoras queimaram mais de um pênis, pois tinham muito o que dizer e repudiar.
Obviamente, a peça tinha algumas críticas bem pontuais à atual conjuntura política, que produz um farto material de factoides por segundo, o que provavelmente obrigou-se a introduzir falas de última hora. Houve, também, um hilário momento em que uma atriz vestida de barata se dirigiu de forma bem agressiva à plateia, reclamando da crueldade dos humanos.
As pessoas circulavam pelo palco para participar da peça enquanto um andaime, às vezes em alta velocidade, circulava. É claro que as pessoas foram previamente avisadas do andaime, mas mesmo assim o pessoal teve que dar uma corridinha em alguns momentos, até porque os atores, num momento da peça, jogavam estalinhos e bexigas cheias d’água no palco, confirmando a interação agressiva da peça.
Houve, ainda, alguns momentos um tanto claustrofóbicos, onde pessoas desesperadas corriam em meio ao palco escuro, iluminando o público com lanternas, numa metáfora da angústia provocada por regimes repressivos. Nessas horas, víamos verdadeiras explosões de paroxismo por parte dos atores.
Dessa forma, “Game Over, Ou Não Tá Fácil Pra Ninguém” cumpre bem a sua proposta que é denunciar os tempos sombrios pelos quais passamos, tirando o espectador de sua letargia, passividade e zona de conforto. Uma peça agressiva sem agredir e altamente interativa, fazendo um convite à reflexão. Uma peça que exprime bem todo um zeitgeist de forma intensa e até bem-humorada. Mais um pontaço dos alunos da Escola Estadual de Teatro Martins Penna. Veja o vídeo abaixo onde os alunos tentavam arrecadar fundos para a peça.