O Cine Joia de Copacabana promoveu, no mês de agosto, uma exibição gratuita do filme “Mangue Bangue”, com a presença de seu diretor, Neville D’Almeida. Considerado o cineasta mais interditado, boicotado e censurado do país, Neville, ao fazer “Mangue Bangue”, já tinha sofrido com a censura da ditadura militar e tomou uma decisão drástica: fez um filme do jeito que quis e não o submeteu à censura, levando-o para fora do país de forma clandestina para ser finalizado por lá. Nas idas e vindas da vida, o filme acabou no MoMA de Nova York, e ficou por lá muitos anos esquecido, até ser finalmente resgatado. Essa exibição recente promovida pelo Cine Joia tem um quê histórico, pois foi a primeira vez que o filme, produzido no início da década de 70, teve uma exibição pública no Rio de Janeiro.
E o que podemos falar desse filme? Neville, em suas próprias palavras, definiu o cinema como a arte da hipocrisia, onde visões de ordem mais moral, artística e estética ditam as regras. O cineasta, então, procurou fazer um filme mais ligado à realidade nua e crua cotidiana, vista com repulsa por parâmetros mais moralistas e autoritários. Assim, Neville retrata em seu filme a pobreza, a nudez, o consumo de drogas, a luta pela sobrevivência, a decadência humana, mas não com a intenção de agredir o espectador e sim naturalizar e humanizar a realidade cotidiana. O diretor tem a feliz escolha de fazer um filme mudo, onde a linguagem se ampara quase que totalmente na materialidade das imagens, sendo que não temos uma narrativa tradicional de uma história coesa com início, meio e fim, mas sim a explanação de várias situações e ideias, onde as associações entre as imagens dão as cartas.
Temos, por exemplo, cenas de consumo de drogas intercaladas com uma rinha de galos, esta última vista como uma alegoria da luta pela sobrevivência, ou a cena de uma mãe amamentando o filho. É impossível não se lembrar da repercussão, muito atual, e vista como negativa por parte de algumas mentes mais conservadoras, sobre as mães que amamentam seus filhos publicamente. Assim, essas imagens que são alegorias de ideias se aproximam muito, por exemplo de um Mário Peixoto, tal como vimos em sua obra “Limite”. Outro detalhe interessante foi a escolha da trilha sonora, com direito a suaves chorinhos ou até um Beethoven, usados, segundo o diretor, para humanizar imagens muito alvejadas por preconceitos impostos por visões mais conservadoras. Assim, a trilha sonora consegue a façanha de tornar idílicas as imagens de um grupo de travestis mergulhados na miséria, por exemplo.
O único arremedo mais coeso de narrativa estava na história de decadência de um personagem interpretado por Paulo Villaça. Corretor na Bolsa de Valores, ele começa a se sentir mal dentro do pregão (uma alegoria da venalidade do sistema capitalista) e sai de lá, expelindo pela boca jatos e jatos de vômito, terminando por se jogar na rua e numa poça de lama e esgoto, que nada tinha de cenográfica. Na rua, encontra a personagem interpretada por Maria Gladys, que rouba para sobreviver e se droga para ainda viver. É nesse momento que o sorriso volta à Villaça, como se o estilo de vida mais simples (e, por que não, prosaico?) dos menos favorecidos mostrasse a existência de um outro mundo diferente do que ele conhecia.
A jornada do personagem de Villaça prosseguiu até o estado mais anímico possível onde, com a ajuda dos dedos, ele sentia o cheiro de sua cavidade anal e genitália (nas palavras do próprio Neville, no documentário de Mario Abbade, “Quem nunca enfiou o dedo no cu e cheirou?”), terminando por vermos o personagem defecando no mato, se limpando no rio e sumindo no interior da floresta. Ou seja, o humano reprimido pelas convenções do capitalismo e do moralismo conservador se liberta, em todo o seu processo de decadência, tornando-se instinto puro.
Para quem ainda considera Neville, de uma forma bem reducionista, imoral, indecente e asqueroso, “Mangue Bangue” mostra justamente o contrário lá nas entrelinhas. Neville é visceral, sem hipocrisia, podendo ser até agressivo aos mais sensíveis. Mas ele humaniza os excluídos, naturaliza o que é rechaçado pelo conservadorismo moralista, mostrando tudo o que o cinema mais tradicional não tem coragem de mostrar. Sistematicamente atacado e silenciado, Neville não abaixou a cabeça e continuou acreditando em sua arte e visão de mundo. Um cineasta cruelmente relegado ao esquecimento pelo establishment. Esperemos que tal injustiça histórica seja corrigida no futuro e ainda em vida.