Uma campanha contra uma ditadura no Chile em tempos remotos…
Mês: novembro 2019
Batata Movies – A Vida Invisível. Irmãs À Frente De Seu Tempo.
E temos o filme brasileiro escolhido para concorrer aos finalistas de Melhor Oscar Estrangeiro para o próximo ano. “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, fala da condição feminina numa sociedade machista e tradicional de meados da década de 50. Um filme de duas irmãs à frente de seu tempo, cada uma a seu modo, que precisam enfrentar todas as pressões de um mundo dominado pelos homens. Para podermos falar sobre o filme, precisamos lançar mão de spoilers.
As irmãs em questão são Eurídice (interpretada por Carol Duarte) e Guida (interpretada por Julia Stockler). A primeira é mais recatada e tem o objetivo de ser uma pianista de carreira internacional. Já Guida é mais impulsiva e namora um marinheiro grego. As irmãs são carne e unha, mas um evento vai separá-las pelo resto da vida: Guida sai escondida de casa para se encontrar com seu namorado e decide fugir com ele para a Europa para se casar. Enquanto isso, Eurídice acaba aceitando um casamento praticamente arranjado, tendo uma vida sexual que é um verdadeiro pesadelo. Um belo dia, Guida volta ao Brasil sem seu marinheiro grego, mas grávida de um filho dele. Ao chegar a casa de seus pais, é expulso pelo pai, um padeiro português de mentalidade altamente conservadora, não sem antes escutar dos pais que Guida está na Europa, com uma promissora carreira de pianista. A partir daí, vemos as vidas paralelas dessas irmãs que nunca se encontram, onde a única coisa em comum entre as duas é o fato delas assumirem uma postura altamente transgressora frente ao tradicionalismo de uma sociedade brasileira da década de 50.
É um filme tocante, pois dá um dó desgraçado ver as duas jovens irmãs, cheias de sonhos e esperanças no futuro, serem massacradas pela vida real e por toda uma sociedade que coloca a mulher numa posição totalmente subalterna perante o homem. Eurídice lutava contra isso ferozmente agarrando-se às suas aulas de piano e na prova para entrar no conservatório, enquanto que Guida lutava pela sobrevivência, criando uma nova família cheia de crianças na condição de mãe solteira, numa época em que nem havia divórcio. O mais curioso é que, mesmo que as irmãs não se encontrassem, as duas escreveram cartas uma para a outra que nunca chegavam, sendo que somente Eurídice recebeu as cartas de Guida já em idade altamente avançada, onde Eurídice é interpretada por Fernanda Montenegro em rápida e curta aparição. Apesar da grande dama estar em cena ao final do filme, essa sem dúvida é uma película de Carol Duarte e Julia Stockler. Se Julia Stockler e sua Guida parecem, num primeiro momento, mais carismáticas, à medida que a vida conjugal de Eurídice se desvela, o carisma dela também se revela em toda a sua plenitude, sobretudo na explosão paroxista da personagem ao descobrir que o destino de sua irmã foi escondido pelo pai, tirando-lhe o direito de se encontrar com ela, a irmã que ama tanto. Ou seja, nem o direito de duas irmãs que são carne e unha se reencontrarem a sociedade machista e patriarcal assegurou, já que uma delas violou as convenções tradicionais e acabou sendo apagada da família por “vergonha”. Tal omissão será demais para Eurídice, onde sua vida irá desmoronar numa psicose maníaco depressiva. Seu sonho de viver de música no conservatório depois de ser aprovada em primeiro lugar no concurso irá por água abaixo quando, num acesso de fúria, Eurídice queima seu piano e suas próprias mãos (sim, o filme tem fortes toques de trágico em alguns momentos). Com essas duas irmãs marcadas por toda uma opressão e uma vida sofrida onde os sonhos caem como peças de dominó, fica bem evidente o trabalho difícil que essas jovens atrizes tiveram pela frente, conduzindo com muita maestria suas personagens.
Após a exibição da película (a assisti em pré-estreia no Odeon), o diretor Karim Aïnouz, Julia Stockler, Carol Duarte e Barbara Santos apareceram em carne e osso na sala e responderam perguntas do público, sempre ressaltando a reflexão do filme sobre como o Universo feminino é tratado por uma cultura machista não somente nos anos 50 do século XX como até hoje. Ou seja, há, ainda, muito conservadorismo e machismo por aí e temos que ficar de olho nesses tempos altamente sombrios.
Dessa forma, “A Vida Invisível” é um bom filme brasileiro que trata de questões muito contemporâneas, ainda que essa seja uma película de época. Um machismo e conservadorismo latente que é enfrentado por duas irmãs à frente de seu tempo, com cada uma delas fazendo essa empreitada à seu jeito. Vale a pena dar uma conferida.
Batata Movies – Estaremos Sempre Juntos. Amigos Para Sempre, Mas Aos Trancos E Barrancos.
Guillaume Canet está de volta assinando o roteiro e a direção do bom “Estaremos Sempre Juntos”. Continuação do filme “Até a Eternidade”, de 2010, a película conta com um grande elenco: François Cluzet, Marion Cotillard, Gilles Lellouche, Laurent Lafitte, entre outros. Para podermos falar desse filme, vamos precisar de spoilers.
O plot é simples. Max (interpretado por Cluzet) está em sua casa, acertando a venda da mesma com um corretor de imóveis. Outrora um rico homem de negócios, Max faliu, perdeu a esposa, restaurante, hotel e, agora, precisa vender a casa. Só que seus amigos invadem a casa para fazer uma festa de aniversario surpresa pelos seus 60 anos. Max tem algumas rusgas com esse grupo de amigos e o reencontro é constrangedor. Mas Max vai esfriando a cabeça e aceita o grupo. Seu amigo Eric (interpretado por Lellouche) sugere ficar numa casa alugada à beira mar, ao invés da casa de Max onde os amigos se encontravam. É que a ex-esposa de Max aparecerá em dois dias e ele não quer vê-la. Max pede a Eric que seja dito aos amigos que foi Max que alugou a casa à beira mar. Assim, os amigos se reúnem, onde eles recordam os bons tempos do passado, mas também aparam muitas arestas, provocando tremendas saias justas.
O filme tem uma história muito cativante e prende a atenção do espectador do início ao fim. Um destaque todo especial para François Cluzet, cujo personagem Max, por ser extremamente sensível, rouba a cena. Apesar de todo o destaque do personagem-protagonista, os demais atores do filme também tiveram atuações magníficas, com um destaque especial para pequenos núcleos de personagens que tinham que acertar as diferenças do passado. O mais interessante no filme é que esse grupo estava inicialmente numa espécie de litígio com Max, mas buscou a reconciliação com o mesmo. É claro que isso já provocou um terreno um tanto tenso logo no início do filme que, gradativamente, foi se tornando mais leve, até todos chegarem num entendimento e na volta da amizade. Entretanto, uma ou outra declaração mal colocada de um ou outro personagem levava a situações constrangedoras e saias justas que poderiam, a qualquer momento, estragar o clima entre todos novamente. Tal situação poderia levar a um contexto um tanto tragicômico, como a ridícula tentativa de suicídio de Max, seguida por uma crise de choro comovente do protagonista, despertando rápidos sentimentos contraditórios no espectador.
Por ser um filme que destaca as relações humanas e a amizade entre personagens bem construídos, é praticamente obvia a opção pelo happy end, onde Max decide anular a venda da casa, espaço onde os amigos se encontravam no passado e termina com ele indo atrás dos amigos para reuni-los novamente, agora em seu lar.
Dessa forma, “Estaremos Sempre Juntos” confirma a grande versatilidade de Guillaume Canet, que consegue ser um bom ator, mas também diretor e roteirista. E ainda há a vantagem de que os filmes em que ele tem o controle da produção são cravejados de grandes atores franceses, o que é um atrativo a mais e ajuda a cimentar o bom roteiro escrito. É uma película comovente e um programa imperdível.
Batata Movies – Adam. O Toque Como Instrumento De Transgressão.
Um filme que é o representante de Marrocos na disputa ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Adam” é uma película de transgressão, uma película que vai contra o tradicional e atenta para o problema da posição da mulher na sociedade marroquina, onde não há muito espaço para suas liberdades e vontades. Para podermos analisar o filme aqui, vamos precisar de spoilers.
O plot é relativamente simples. Samia (interpretada por Nisrim Erradi) é uma jovem grávida que perambula pelas ruas atrás de emprego. Ela acaba parando na casa de uma viúva, Abla (interpretada por Luna Azabal) e sua filhinha, Warda (interpretada por Douae Belkhaouda). Abla é muito dura com Samia à princípio, mas a doçura de Warda para com a forasteira amolece o coração de Abla, e Samia permanece na casa. Aos poucos, a jovem grávida vai se encaixando ao dia-a-dia da família e acaba se tornando parte dela. O problema é que sua gravidez foi fora das convenções familiares da sociedade em que vive e ela vai precisar dar o bebê assim que ele nascer para que ela possa retornar à sua vila e poder viver dentro de seus hábitos culturais. Abla, por sua vez, se opõe a essa atitude tão radical de Samia.
Esse é um filme altamente feminino e, principalmente, muito transgressor. Ele é um grito inconformado contra a posição da mulher nas sociedades muçulmanas. Temos duas personagens femininas muito fortes aqui. Abla é uma mulher que perdeu o marido e nem teve tempo de se despedir dele, pois seu corpo precisava ser enterrado antes do horário da oração. Ela chega a reclamar que não existe espaço para a mulher na morte. Ao que Samia, a outra personagem forte, retruca dizendo que não há qualquer espaço para a mulher nessa sociedade. Samia se atreveu a ter um relacionamento fora dos casamentos arranjados e precisa se desfazer do seu filho para que toda a intolerância da sociedade não recaia sobre ele, numa atitude corajosa de preservar sua prole.
Como se não bastasse esse tom de denúncia sobre a situação das mulheres no filme, tivemos também algo poderoso e que podemos dizer que foi o cerne da transgressão nessa película. E o que seria? O simples ato de um toque. Sabemos que isso pode ser eivado com alguns tabus negativos na sociedade muçulmana, e vemos no filme as mulheres protagonistas se tocando física e carinhosamente. Vemos Warda tocando a barriga de Samia e sentindo o bebê; vemos Samia segurando com força e rispidez uma Abla que quer desligar a música que lembra o marido morto (é a sequência mais forte do filme, onde há um misto de leve agressividade e muita sensualidade, onde Samia faz com que Abla volte a dançar depois de longos anos de luto); e a cena, extremamente sensual, de Samia ensinando Abla a bater a massa, um dos momentos mais lindos do filme. Um filme onde mulheres se tocam e se relacionam, com pouco espaço para os homens. O único personagem masculino de destaque é Slimani (interpretado por Aziz Hattab), perdidamente apaixonado por Abla e praticamente subjugado pelo empoderamento da viúva em toda a sua plenitude. Podemos dizer que foi um filme extremamente corajoso e sem medo de ser rotulado de forma negativa pelos mais conservadores, muito pelo contrário. Sentimos uma intenção explicita de transgredir e agredir, com toda uma sensualidade explicita entre mulheres que se tocam.
O desfecho, como não podia deixar de ser, chuta o happy end para escanteio. Samia vai embora da casa de Abla e não temos certeza se ela dará o seu filho antes de voltar para sua aldeia natal, ou vai encarar a sociedade e seus preconceitos. O desfecho fica a gosto de quem assiste. Mas uma coisa é certa: qualquer que seja a sua decisão, ela será feita com perdas. Daí a certeza de que o happy end é impossível.
Assim, “Adam” é um grande postulante aos finalistas a Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, e creio que, se não houver interesses de ordem comercial (o que quase sempre acontece no Oscar), esse filme poderia também ser cotado como um dos favoritos ao prêmio. Um filme sobre mulheres que criticam abertamente o machismo presente na sociedade muçulmana e ainda transgridem com o toque cheio de afeto feminino. Um grande presente para o espectador e um filme que não pode deixar de ser visto por sua coragem. Vale a pena dar uma conferida.
Batata Movies – Papicha. Luta Inglória Contra A Tirania.
Uma co-produção Argélia/França/Bélgica perturbadora. “Papicha” é mais um filme sobre mulheres. Mais um filme da luta feminina por espaço numa opressão machista com a explosiva combinação da religião. Um filme que revolta. Um filme baseado numa história real, o que aumenta ainda mais a indignação. Para podermos analisar essa película, vamos precisar de spoilers.
O plot se passa na Argélia de 1990, quando grupos islâmicos radicais começam a tomar conta de um país que era acostumado a viver com uma liberdade ocidentalizada. Nedjma “Papicha” (interpretada por Lyna Khoudri) é uma moça que estuda francês na Universidade e gosta muito de desenhar roupas, ou seja, seu sonho é ser estilista. Nedjma tem uma vida feliz com suas amigas, a maioria delas com um jeito de vida liberal e ocidentalizado. Mas, à medida que os grupos islâmicos que vão tomando conta do país aumentam sua área de atuação, a repressão contra as mulheres vai se tornando cada vez mais insuportável, ao ponto de a irmã de Papicha, que sempre a encorajou a ser estilista, ser assassinada por uma mulher radical. A reação de Papicha é organizar um desfile de moda, fazendo hijabs (os véus que cobrem as mulheres de cima a baixo, impostos pelos radicais) com um corte moderno mais agressivo. Mas a moça irá passar por muitos empecilhos para garantir sua empreitada.
A diretora e roteirista Mounia Meddour consegue fazer um trabalho magnífico, pois ficamos profundamente indignados com a violência e a opressão que uma interpretação ultrarradical da religião pode proporcionar contra um grupo de jovens moças que somente aspiram a ter uma vida feliz. Meddour faz questão de mostrar que o machismo latente e violento não é algo somente atribuído aos varões, mas também a mulheres de uma vertente mais tradicionalista perseguem as moças que querem organizar o desfile. O clímax da história é extremamente chocante e traumatizante, dando ao espectador uma sensação de profunda impotência e desesperança, restando ao final simplesmente juntar os cacos e retomar a vida como se pode num ambiente hostil, opressor e muito violento. Não podemos deixar de falar aqui da atriz Lyna Khoudri, que fez uma Papicha adorável mas também muito forte, onde seus gritos explosivos eram uma manifestação voraz e paroxista de todo o seu sofrimento e indignação com a forma como as mulheres eram tratadas em seu país. Era algo que doía profundamente no espectador e a gente imediatamente compra a personagem.
Dessa forma, “Papicha” é mais um daqueles filmes fundamentais, que sempre devem ser lembrados e jamais devem ser esquecidos. Mais um filme onde o cinema cumpre sua função social de denúncia das muitas injustiças que perambulam pelo mundo. Um filme que nos torna mais humanos ao compartilhar a dor de mulheres que vivem num país tão distante e oprimido. Um programa imperdível e um filme para ver, ter e guardar.
Batata Movies – A Camareira. Uma Questão Social Abordada De Forma Morna.
O México apresenta o seu representante ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “A Camareira”, de Lila Avilés, é mais um filme que aborda a questão social de um segmento menos favorecido, só que tem o problema de fazer isso de uma forma um tanto morna, não decolando em emoção. Para a gente poder analisar melhor o filme aqui, serão usados spoilers.
Vemos aqui a trajetória de Eve (interpretada por Gabriela Cartol), uma jovem camareira de um apart hotel que tem uma rotina de emprego muito extensa, limpando e arrumando os quartos de hotel, sendo que, às vezes, ela passa por situações inusitadas tais como cuidar da criança pequena de uma hospede argentina, levar brindes em grande quantidade para um hóspede e ser cortejada pelo limpador de janelas. Ela tem um filho pequeno que quase não vê, pois dorme no emprego, e tem como objetivo estudar e conseguir limpar e arrumar os quartos de luxo do 42º andar, o que vai lhe proporcionar um salário maior. Apesar de tanta dedicação, Eve não tem o seu trabalho reconhecido, não conseguindo o trabalho no 42º andar, o que a deixa muito chateada, com a moça saindo do hotel ao final da película, onde fica implícito se a moça deixou o emprego ou simplesmente se dirigiu para casa para rever o filho depois de tanto tempo fora.
Como a película opta por mostrar o cotidiano da camareira, o que deu um ritmo muito lento ao filme, ficou parecendo que as questões de cunho social não foram devidamente exploradas, sendo mencionadas de forma um tanto rápida e sem profundidade, o que foi uma pena. Pela falta de ritmo, tem-se a impressão de que esse filme dificilmente ficará entre os finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em contraponto a toda a celebração em cima de “Roma” ano passado. E devemos nos lembrar de que, tanto em “Roma” quanto em “A Camareira” a questão social de uma empregada proletária foi abordada, sendo que em “Roma” houve um pouco mais de profundidade, se compararmos com “A Camareira”.
Assim, apesar da boa intenção de se denunciar um problema de ordem social, o ritmo extremamente lento de “A Camareira”, associado a uma rotina que acabou ficando entediante, tornou o filme muito cansativo, o que foi uma pena.
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