Vamos hoje recordar mais uma memorável sessão do Cineclube Sci Fi, realizada no Planetário da Gávea, desta vez com o filme “O Segredo do Abismo”. Realizada em 1989, essa película mostrou uma história um tanto desconexa e sem propósito quando da sua exibição ocorrida já no século passado. A versão apresentada no Planetário foi uma edição do diretor e roteirista James Cameron, onde a coisa teve um pouco mais de sentido. Vamos falar agora um pouco dessa nova história.
O filme começa com um acidente onde um submarino nuclear americano naufragou após um enorme objeto não identificado subaquático cruzar o seu caminho. Para fazer o resgate, foram contratados trabalhadores de uma empresa de prospecção de petróleo, especializados em trabalhar em águas profundas, já que o submarino naufragou numa fossa abissal. A equipe era liderada por Virgil (interpretado pelo sempre eficiente Ed Harris) e foi contratada, pois o salvamento se fazia urgente em virtude do fato de que ogivas nucleares estavam no submarino e a equipe de Virgil era a mais próxima ao local do acidente. Mas esse salvamento não se faria de forma tranquila. Vários militares seals participariam da missão e queriam total controle das ações. Ainda, a esposa de Virgil, Lindsey (interpretada por Mary Elisabeth Mastrantonio) chegou para tumultuar o ambiente em virtude de querelas pessoais e profissionais (Lindsey estava se separando de Virgil e ainda não se conformaria com uma situação mal resolvida com a equipe do marido).
Assim, a missão adquiriu contornos de muita tensão. Para piorar, o líder dos seals respirou oxigênio puro de forma excessiva nos procedimentos de mergulho a grandes profundidades e “pirou na batatinha”, querendo assumir o controle da missão a qualquer custo. E tudo isso acontecendo no meio de um conflito entre Estados Unidos e União Soviética, já que o naufrágio do submarino americano despertou uma série de suspeitas de um ataque soviético. Logo, a equipe de salvamento tinha que correr contra o tempo para evitar uma Terceira Guerra Mundial! Ufa! Você pode até me perguntar: será que foi possível resolver tantos problemas num filme só? Por incrível que pareça, sim! Mas numa versão estendida de três horas! Porque ainda tem os ETs subaquáticos, lembra? A situação enrolou ainda mais com um acidente que deixou a equipe isolada debaixo d’água e com o estoque de oxigênio limitado. Nesse ínterim, houve o contato imediato de terceiro grau, quando a equipe soube da existência da espécie alienígena que a contactava com volumes d’água que sondavam os humanos e até tomavam a forma deles, num dos poucos usos da computação gráfica da película.
Assim, resolvido o imbróglio com os seals, Virgil decidiu encarar a fossa abissal com uma roupa de mergulho cheia de um líquido rico em oxigênio, onde nosso protagonista “respirava” tal líquido e podia encarar melhor a enorme pressão da água a grandes profundidades. Lá, praticamente inconsciente, foi salvo pelos alienígenas que o colocaram numa espécie de bolha de ar com uma grande tela virtual que exibia programas de tv da Terra. Com essas imagens, os extraterrestres argumentavam que a raça humana era muito agressiva e devia ser destruída. Por controlarem a água, os alienígenas formariam enormes ondas que destruiriam a cidade. Mas eles desistiram, pois captaram uma mensagem de Virgil a Lindsey, que dizia que a amava, pois enquanto ele descia a fossa, abissal, Virgil percebeu que não conseguiria retornar e morreria ali.
Assim, mandou a mensagem de amor e despedida à esposa, que os alienígenas captaram e, de forma muito piegas, perceberam que a humanidade ainda tinha salvação e desistiram de destruí-la. O filme termina com a grande “nave espacial” alienígena que estava submersa chegando à tona, trazendo um monte de navios afundados com ela, a equipe toda salva e Virgil e Lindsey dando um beijo apaixonado sobre o OVNI subaquático. Que fofo!
Apesar dessa pieguice mais ao final, esse “corte do diretor” James Cameron de três horas de duração deu mais substância à história pois, na versão original, toda a parte “guerra fria” do filme não existia, assim como as enormes e ameaçadoras ondas que iriam destruir as cidades. Na versão original, não se tinha uma ideia exata do papel dos ETs, o que ficou mais claro na versão estendida, onde também ficou notória a mensagem pacifista de Cameron e o alerta que ele fazia à humanidade da preservação de nosso planeta, que estamos destruindo o lugar que moramos, etc., exatamente a mensagem que ele quis passar em “Avatar” muitos anos depois.
Curiosa também era a forma dos alienígenas, que pareciam enormes águas vivas fluorescentes. Sabemos que, a grandes profundidades existem alguns seres vivos que emitem luz própria para atrair seres vivos que servem de alimento, embora nas profundezas abissais praticamente não haja vida. Dadas essas formas marinhas dos ETs, ficou a impressão de que essa espécie alienígena já habitava o fundo do mar há muito tempo e, pela teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, já teria assumido aquelas formas mais vistas em seres marinhos.
Assim, pode-se dizer que essa versão estendida de “O Segredo do Abismo” é muito mais interessante que a versão original, pois acrescentou mais elementos à trama e deu uma mensagem à história, tornando-a motivo de reflexão. Mais uma boa escolha do público para o Cineclube Sci Fi.
Após a exibição do filme, tivemos duas rápidas palestras de Naelton Araújo, astrônomo do Planetário da Gávea, mestre em educação, gestão e difusão em Ciências e que mantém o blog pessoal Céu Urbano, e Rafael Pinotti, M.Sc. em Físico-Química pela UFRJ, onde se graduou em Engenharia Química. Trabalha desde 1990 na Petrobrás como Engenheiro de Processamento. Naelton Araújo lembrou de alguns detalhes do “making of” do filme, como o fato dos atores terem precisado fazer um curso de mergulho para fazer as gravações e das más recordações em rodar o filme em condições altamente adversas, feitas num tanque de um antigo reator nuclear, com uma água com muito cloro para evitar doenças. Naelton ainda lembrou que o tal “fluído respirável” já existe, mas ainda não é utilizado para mergulhos de humanos. Um dos membros da equipe de Virgil tinha um ratinho branco de estimação e ele foi, de fato, submetido ao tal líquido, apesar de a cena ter sido editada. A menção a tal líquido apareceu em outros filmes mais recentes como “Oblivion”.
Naelton ainda lembrou que o filme ganhou o Oscar de melhores efeitos especiais em 1990. Já Rafael Pinotti tratou mais da parte científica do filme. Ele lembrou, por exemplo, que as plataformas de prospecção de petróleo a grandes profundidades não são tripuladas, como o filme fantasiosamente mostrava. Pinotti ainda enfatizou que há regiões com petróleo disponível, mas que ainda não foram exploradas principalmente por causa de seu difícil acesso, como o Mar do Ártico, que tem um quarto das reservas distantes de petróleo. Foi ainda lembrado do barateamento do preço do petróleo na época, provocado, sobretudo, pelos Estados Unidos, que inundou o mercado com óleo retirado do solo e, enquanto o petróleo estiver barato, pouco investimento será aplicado na tecnologia de prospecção.
Com relação à situação do filme de ETs vivendo debaixo d’água, Pinotti lançou um questionamento: a tecnologia pressupõe uma manipulação de objetos, algo mais difícil de fazer na profundidade. Assim, seria pouco provável que houvesse uma vida inteligente tecnológica debaixo d’água, embora haja bons exemplos de vida inteligente subaquática como os cetáceos e os polvos. Pinotti também lembrou da pouca quantidade de água existente no planeta, com oceanos de profundidade média de três quilômetros. A pouca quantidade de água é vista também em outros planetas do sistema solar. E nos planetas extrassolares? O primeiro desses planetas foi detectado na década de 1990. Hoje, com a melhoria dos instrumentos de observação, há mais de dois mil planetas extrassolares detectados. E aí descobrimos que nosso sistema solar não é típico, pois foram descobertos planetas semelhantes a Júpiter mais próximos das estrelas dos sistemas. As teorias sobre o sistema solar diziam que os planetas mais próximos ao Sol (Vênus, Terra, Marte, por exemplo) tinham uma atmosfera com espessura bem menor que os planetas mais afastados do Sol (Júpiter, Saturno, Urano, Netuno, por exemplo). A observação de planetas extrassolares a princípio desmente tal teoria. Há também nos planetas extrassolares as chamadas “Super Terras”, onde há muitos planetas maiores em massa que a Terra e menores que Urano e Netuno.
Há uma proporcionalidade entre a quantidade de rocha do planeta e a quantidade de água. Como a água e a rocha crescem com o volume em quilômetros cúbicos e ocupam uma área em quilômetros quadrados, há uma especulação de que os oceanos de água em Super Terras possam ter centenas de quilômetros de profundidade. Perguntado pelo público se os cometas da nuvem de Oort que circunda o sistema solar podem ter contribuído para a formação da água do planeta (cometas são compostos de gelo e poeira), tanto Naelton quanto Rafael foram categóricos em afirmar que existem poucas evidências observacionais disso e não se pode esquecer que os asteroides também trouxeram água, o que também tem poucas evidências observacionais. Assim, os palestrantes acreditam que parte da água tenha vindo dos cometas, parte tenha vindo dos asteroides e parte tenha vindo das próprias rochas de nosso planeta, sem uma preponderância mais específica.
A palestra ainda tocou em assuntos como quais são as visões que os humanos têm dos ETs (medo, esperança e curiosidade), onde o medo suscita mais questões. Falou-se, também, do pessimismo em se encontrar inteligência extraterrestre, pois em cinquenta anos de observação de rádio, não houve qualquer evidência encontrada e o fato de que o filme pode ter sido inspirado num conto de H. G. Wells, “O Abismo”, que também tratava da exploração de fossas submarinas.
Como podemos ver, mais uma edição do Cineclube Sci Fi que trouxe bons frutos. Uma versão estendida de “O Segredo do Abismo” que tornou a história mais coesa, boas palestras de pesquisadores renomados e o bate papo agradável. Vale muito a pena recordar tais palestras.