A arte cinematográfica é relativamente nova. Surgida oficialmente em 1895, com os irmãos Lumière, logo ela se expandiu pelo mundo, ainda carente de uma linguagem. Essa carência foi pouco a pouco desaparecendo graças aos experimentos de diretores como o americano David Wark Griffith, que estabeleceu uma linguagem cinematográfica que explorava mais a materialidade visual do cinema mudo, que ainda necessitava de uma quantidade muito grande de intertítulos para poder explicar a história, e o russo Serguei Eisenstein, que e considerado um dos fundadores da montagem em cinema. Enquanto isso, no nosso longínquo Brasil, o cinema dava também seus primeiros passos. Ainda em seus primórdios, era natural que os próprios donos das salas de cinema fizessem filmes para exibirem em suas salas. Mas em 1911, o mercado nacional foi invadido por produções estrangeiras. Vários foram os fatores: a crise econômica no exterior, provocada por tensões sociais e movimentos grevistas, forçou os produtores de filmes a buscarem o mercado externo; Francisco Serrador, espanhol e empresário, compra grande parte das salas de exibição do Rio de Janeiro e de São Paulo, criando um “trust” e abre caminho para a exibição de filmes estrangeiros, em detrimento da produção nacional, feita pelos próprios exibidores; a revolução griffthiana em 1908 nos Estados Unidos, começa a transformar o cinema em meio de expressão, começa a desenvolver a linguagem própria do cinema. O cinema também se desenvolvia como meio de expressão na Europa. A concorrência entre a indústria cinematográfica (com um novo cinema) e a produção artesanal e primitiva foi desleal e os filmes brasileiros sumiram das telas até 1923. Durante esse período, o que garantiu a sobrevivência do cinema do Brasil foram os documentários, ou filmes de cavação, e um ou outro filme de enredo tal como “Exemplo Regenerador” (1919). Enquanto isso, o cinema desenvolvia-se com o “Nascimento de Uma Nação” (1912), “Intolerância” (1915), os filmes de Charles Chaplin, Mary Pickford e mais uma série de realizadores americanos, sem falar nos esboços do cinema soviético, com Eisenstein e alemão, cujo filme “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919) foi o marco inicial do expressionismo.
Logo, os filmes brasileiros, sufocados por um mercado ocupado pelos filmes estrangeiros, permanecem primitivos e pré-griffthianos.Em 1923, quando Griffith está em declínio e Chaplin realiza “Casamento ou Luxo?”, os primeiros sinais de renascimento da atividade cinematográfica brasileira aparecem. A interiorização das linhas de distribuição americanas despertam o interesse nos filmes. Agora, além da cidade grande, o interior também via o cinema. Surge o “fã” e a vontade de fazer filmes. É a época dos ciclos regionais. Surgem produtoras em Recife, Pouso Alegre e Guaranésia (MG) e em mais outras regiões além de Rio de Janeiro e São Paulo. Na cidade de Cataguases (MG), a Phebo Brazil Film, cujo diretor de cinema era Humberto Mauro, tem o exemplo mais importante dessa interiorização do cinema. A vontade de fazer filmes aliada com a técnica herdada dos cavadores faz renascer o cinema no Brasil. Podemos dizer que, durante a década de 1920, surgem dois grupos que alavancam o cinema no Rio de Janeiro. O primeiro pólo era liderado por Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, que organizavam a revista “Cinearte” e faziam militância pelo cinema brasileiro, e estimulavam a produção nacional, sendo um ponto de referência para os produtores de filmes dos ciclos regionais. E o segundo pólo era formado por um grupo de estudantes que organizou o jornal “O Fan”, que buscava discutir o cinema de forma teórica no Brasil, e era liderado por futuros intelectuais como Otávio de Faria (que seria escritor e germanista) e Plínio Sussekind Rocha (que seria físico).
Esses estudantes fundaram o Chaplin Club, apologistas da obra de Carlitos. Um dos amigos de escola de Otávio e Plínio era um jovem franzino, de nariz pronunciado (que lhe deu o apelido de maçarico), muito tímido, chamado Mário Breves Peixoto. De família muito rica (era parente por parte de mãe do Comendador Joaquim José de Souza Breves, que foi o maior plantador de café do Império e mais ativo traficante de escravos da época, sendo interlocutor do Imperador e senhor de todo o território que vai da Restinga de Marambaia até as fronteiras de São Paulo, litoral e interior; “Limite” será filmado em Mangaratiba em função disso), Mário vai estudar no colégio Santo Antônio Maria Zaccaria de 1917 a 1926 (onde conhece Otávio e Plínio) e depois segue seus estudos na Inglaterra, numa experiência mal sucedida, por não se adaptar à frieza do povo inglês. Lá, tem contato com o cinema expressionista alemão, sobretudo com “Metrópolis”. De volta ao Brasil, em 1927, conhece Brutus Pedreira (um dos futuros atores de “Limite”), que o levará para o teatro de brinquedo, conhecendo a família Schnoor (um de seus membros, Raul, atuou em “Limite”) e também Adhemar Gonzaga e Pedro Lima através de Eva Schnoor, que era a atriz principal de “Barro Humano”, filme de Gonzaga, que fundaria os estúdios da Cinédia. Assim, Mário teve contato com o grupo que fazia filmes no Brasil (o de Adhemar Gonzaga) e com o grupo que discutia cinema de forma teórica (o Chaplin Club, de Otávio de Faria e Plínio Sussekind Rocha que comparava o cinema de Murnau ao de Griffith, por exemplo, além de analisar a obra de Chaplin). Em 1929, após um período na Europa, Mário retorna ao Brasil decidido a escrever um “scenario”, ou seja, um roteiro de filme. Ele declarou, anos depois, que queria atuar no filme e o “scenario” foi escrito após ter visto, em Paris, numa banca de jornais, a capa da revista “Vu”: uma mulher com olhar fixo e mãos masculinas algemadas por sobre o busto. Após essa imagem, surgiu em seu pensamento a visão de uma mulher agarrada a uma tábua num mar de fogo. Mário cria o “scenario” do filme ligando essas duas imagens: a da mulher com as algemas como primeira imagem e a mulher no mar de fogo como a última.
Ele teve essa visão após ter uma discussão aparentemente grave e dolorosa com o pai. Mário, de personalidade introspectiva e que amava muito o pai, teria sofrido muito com essa discussão.O “scenario” foi escrito, segundo ele, em uma só noite e era basicamente o seguinte: um barco, com três náufragos, perdido no oceano. Os náufragos estão abatidos, deixaram de remar e parecem conformados com o seu destino. Uma das mulheres dá um biscoito ao homem, que o come, desalentado. Ela, então, conta a sua história: fugiu de uma prisão com a cumplicidade do carcereiro, mas desprezou-o. Fugiu novamente, mas não encontra a paz. Tenta trabalhar – costurar – mas a monotonia a esmaga. Vendo a notícia de sua fuga no jornal, parte novamente.O homem reanima a outra moça caída no fundo do barco. Também ela conta a sua história: um casamento infeliz e desastrado com um pianista bêbado que toca em cinemas. A mulher sente-se presa, reprimida pela tirania dos laços do casamento; recorda o marido em toda a sua degradação. Desesperada, foge.No barco, a primeira mulher tenta remar – mãos e remos são inúteis. Os outros dois olham-se, vencidos e conformados. E o homem conta, então, ele também, a sua história. Viúvo, tem um caso de amor com uma mulher casada. Há alegria e há tristeza. Ao visitar o túmulo de sua mulher, encontra o marido da amante que lhe diz que esta é leprosa. Desespero, angústia, terror – e fuga.No barco, a água para beber acaba. Um barril, visto de longe, pode ser a salvação. O homem pula n’água para ir buscá-lo, mas não reaparece à tona. Em desespero, a segunda mulher atira-se à primeira, que a agride. Uma fica prostrada, a outra chora.Desencadeia-se uma tempestade, uma longa tempestade que, quando acaba – o mar calmo outra vez – não deixa mais do que a primeira mulher agarrada a um destroço – e assim termina o “scenario” que não tem mais do que quinze páginas datilografadas, com cortes e fusões indicados, bem ao estilo do cinema silencioso.
Vemos nesta história que o tema central do filme é a limitação do homem perante o Universo. Ao invés de um possibilismo, onde o homem pode transformar a natureza a seu bel prazer e dominar todas as coisas, o filme aborda um determinismo, ou seja, o homem nem sempre pode dominar a natureza e, inclusive, encontra-se à mercê dela. A situação dos náufragos no filme é exemplar: eles estão totalmente subjugados pelo mar que os matará. As três histórias são somente uma metáfora da limitação principal do homem perante o Universo, perante o mar, nos casos individuais dos três personagens. Cabe ainda dizer que o filme não obedece a um fio narrativo tradicional, mas sim a uma associação metafórica de imagens, onde vemos alegorias da limitação interligadas: algemas, proas de barcos, loops de câmaras, etc. Assim, podemos dizer que “Limite” se aproxima mais de uma poesia do que uma prosa. Cacá Diegues diz que “Limite” nos dá a impressão, em termos de linguagem cinematográfica, de qual seria o rumo que o cinema mudo tomaria se o cinema falado não tivesse chegado ali mesmo no fim da década de 1920 e início da década de 1930. Pelas linhas descritas acima, vemos que “Limite” é um baita filme (lembra a segunda lei da termodinâmica em física, onde a morte do Universo pelo aumento de entropia – nível de desorganização de um sistema – é inevitável). E esse baita filme foi imaginado por um pós-adolescente brasileiro em 1930, o filme teve todas as condições de ser realizado e ele existe até hoje, pois foi restaurado por Plínio Sussekind e seu aluno Saulo Pereira de Mello (que esse humilde articulista teve o privilégio de conhecer). Por esses motivos, muitos estudiosos e especialistas em cinema brasileiro dizem que “Limite” é considerado o maior filme brasileiro de todos os tempos e uma lenda. E veja o filme completo abaixo!!!