Um filme que é o representante de Marrocos na disputa ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Adam” é uma película de transgressão, uma película que vai contra o tradicional e atenta para o problema da posição da mulher na sociedade marroquina, onde não há muito espaço para suas liberdades e vontades. Para podermos analisar o filme aqui, vamos precisar de spoilers.
O plot é relativamente simples. Samia (interpretada por Nisrim Erradi) é uma jovem grávida que perambula pelas ruas atrás de emprego. Ela acaba parando na casa de uma viúva, Abla (interpretada por Luna Azabal) e sua filhinha, Warda (interpretada por Douae Belkhaouda). Abla é muito dura com Samia à princípio, mas a doçura de Warda para com a forasteira amolece o coração de Abla, e Samia permanece na casa. Aos poucos, a jovem grávida vai se encaixando ao dia-a-dia da família e acaba se tornando parte dela. O problema é que sua gravidez foi fora das convenções familiares da sociedade em que vive e ela vai precisar dar o bebê assim que ele nascer para que ela possa retornar à sua vila e poder viver dentro de seus hábitos culturais. Abla, por sua vez, se opõe a essa atitude tão radical de Samia.
Esse é um filme altamente feminino e, principalmente, muito transgressor. Ele é um grito inconformado contra a posição da mulher nas sociedades muçulmanas. Temos duas personagens femininas muito fortes aqui. Abla é uma mulher que perdeu o marido e nem teve tempo de se despedir dele, pois seu corpo precisava ser enterrado antes do horário da oração. Ela chega a reclamar que não existe espaço para a mulher na morte. Ao que Samia, a outra personagem forte, retruca dizendo que não há qualquer espaço para a mulher nessa sociedade. Samia se atreveu a ter um relacionamento fora dos casamentos arranjados e precisa se desfazer do seu filho para que toda a intolerância da sociedade não recaia sobre ele, numa atitude corajosa de preservar sua prole.
Como se não bastasse esse tom de denúncia sobre a situação das mulheres no filme, tivemos também algo poderoso e que podemos dizer que foi o cerne da transgressão nessa película. E o que seria? O simples ato de um toque. Sabemos que isso pode ser eivado com alguns tabus negativos na sociedade muçulmana, e vemos no filme as mulheres protagonistas se tocando física e carinhosamente. Vemos Warda tocando a barriga de Samia e sentindo o bebê; vemos Samia segurando com força e rispidez uma Abla que quer desligar a música que lembra o marido morto (é a sequência mais forte do filme, onde há um misto de leve agressividade e muita sensualidade, onde Samia faz com que Abla volte a dançar depois de longos anos de luto); e a cena, extremamente sensual, de Samia ensinando Abla a bater a massa, um dos momentos mais lindos do filme. Um filme onde mulheres se tocam e se relacionam, com pouco espaço para os homens. O único personagem masculino de destaque é Slimani (interpretado por Aziz Hattab), perdidamente apaixonado por Abla e praticamente subjugado pelo empoderamento da viúva em toda a sua plenitude. Podemos dizer que foi um filme extremamente corajoso e sem medo de ser rotulado de forma negativa pelos mais conservadores, muito pelo contrário. Sentimos uma intenção explicita de transgredir e agredir, com toda uma sensualidade explicita entre mulheres que se tocam.
O desfecho, como não podia deixar de ser, chuta o happy end para escanteio. Samia vai embora da casa de Abla e não temos certeza se ela dará o seu filho antes de voltar para sua aldeia natal, ou vai encarar a sociedade e seus preconceitos. O desfecho fica a gosto de quem assiste. Mas uma coisa é certa: qualquer que seja a sua decisão, ela será feita com perdas. Daí a certeza de que o happy end é impossível.
Assim, “Adam” é um grande postulante aos finalistas a Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, e creio que, se não houver interesses de ordem comercial (o que quase sempre acontece no Oscar), esse filme poderia também ser cotado como um dos favoritos ao prêmio. Um filme sobre mulheres que criticam abertamente o machismo presente na sociedade muçulmana e ainda transgridem com o toque cheio de afeto feminino. Um grande presente para o espectador e um filme que não pode deixar de ser visto por sua coragem. Vale a pena dar uma conferida.