Um
filmaço para quem gosta de automobilismo. “Ford VS Ferrari” fala da entrada da
Ford em automobilismo de competição e de sua rivalidade com a Ferrari na prova
das 24 Horas de Le Mans. A equipe italiana tinha uma hegemonia incontestável na
famosa prova e a Ford chegou com força total para colocar essa hegemonia em
xeque. Para podermos analisar melhor o filme, vamos precisar de spoilers aqui.
O
filme gira em torno de dois personagens principais. Carroll Shelby
(interpretado por Matt Damon) tinha sido o primeiro americano a ganhar as 24
Horas de Le Mans, mas precisou abandonar a sua carreira pois estava com um
problema no coração. Com isso, Shelby começa a vender automóveis, tendo bom
trânsito entre as montadoras e o meio das corridas. Já Ken Miles (interpretado
por Christian Bale) era um mecânico de oficina falido que preparava seus carros
para corridas, um cara muito porra louca de temperamento bem explosivo. O que
eles terão a ver com a Ford? A empresa estava com problemas de venda de seus
carros e o responsável pelo marketing da empresa, o lendário empresário Lee
Iacocca (interpretado por Jon Bernthal) defende a ideia da empresa entrar no
automobilismo de competição para a marca ficar mais antenada com o público mais
jovem. Foi tentada uma parceria com a Ferrari, que também estava falida, mas o
vazamento da negociação empurrou a Fiat para uma parceria com o “Cavalinho
Rampante”, que se tornou mais vantajosa que a proposta da Ford. Isso fez com
que o Comendador Enzo Ferrari acabasse sendo bem ríspido com os executivos da
Ford e, principalmente, com Henry Ford II, o que levou o empresário a aceitar a
idéia de competir com a Ferrari nas 24 Horas de Le Mans. Shelby é recrutado
para tal tarefa, que recruta Miles. Mas este último é mal visto pelos
executivos da Ford, que boicotam o trabalho de Miles, justamente ele que
consegue preparar o carro com tanta eficiência. Assim, Shelby terá que pagar um
dobrado para manter Miles na equipe, inclusive como piloto, a contragosto dos
executivos da Ford.
O
filme tem uma excelente reconstituição histórica, principalmente no que tange a
um automobilismo de décadas atrás, com direito ainda a alavancas de marchas e a
montagem artesanal dos carros, onde um preparador experimentava o carro e ia
fazendo os ajustes, sem direito a qualquer tecnologia ou telemetria para
ajudar, o que deixava o filme muito gostoso de se ver. As cenas de corrida
também foram muito bem feitas e eram emocionantes, com a reconstituição dos autódromos
de Daytona e, principalmente, Le Mans, feita de forma magistral. Os carros
também foram um deleite, com destaque, obviamente, para as Ferraris, lindas de
morrer.
E os atores? Esse filme tem um nome: Christian Bale. Sua atuação foi para lá de magnífica. Ken Miles conseguia ser um paizão, um bom marido, um excelente acertador de carros, um sujeito muito engraçado e um porra louca de cabeça quente em quase todas as situações. Foi até covardia para o Matt Damon colocar Bale atuando ao seu lado nesse filme, tamanho o talento de Bale, que na minha modesta opinião, deveria ter ganho o Oscar de Melhor Ator para “Vice” este ano. Só ver esse ator já vale o ingresso, num filme que tem também um excelente roteiro, que prende a atenção do espectador em todas as suas duas horas e meia de exibição.
Assim,
“Ford VS Ferrari” é um daqueles filmes que é um programa obrigatório não
somente para os fãs de automobilismo, mas também para os cinéfilos mais
exigentes, pois tem uma história muito bem contada num roteiro bem escrito e
cativante e a atuação primorosa de Christian Bale como a cereja do bolo. Um
programa imperdível.
Martin
Scorsese volta à cena com o filme “O Irlandês”. Essa é uma película que está
disponível no Netflix a partir do próximo dia 27 de novembro, mas como se trata
de um filme também estrelado por Robert De Niro e Al Pacino com um baita cheiro
de Oscar, fica muito difícil não querer ver na telona as limitadas sessões
disponíveis. Como este escriba acabou perdendo as sessões de “Roma” e viu o
Oscar de Melhor Fotografia deste ano no celular, assim que “O Irlandês” se
tornou disponível no cinema, fui correndo ao Estação Botafogo para assistir.
Houve dois problemas: a venda era feita em separado para uma sessão que lotou o
cinema. Assim, tivemos problemas como, por exemplo, a impressora instalada no
notebook não funcionar direito e o ingresso demorar para sair, ou só ser aceito
pagamento no cartão e não em dinheiro. Esse é o tipo de coisa que precisa ser
melhor vista quando a Netflix fizer essas sessões de cinema. O outro problema é
que a película tem uma duração de, praticamente três horas e meia. Ou seja, tem
que ter disposição. Para que a gente entenda melhor o filme, vamos lançar mão
de spoilers aqui.
A história começa em meados da década de 50 e gira em torno do irlandês Frank Sheeran (interpretado por De Niro), um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial que esteve na Itália, se tornou motorista de caminhão transportando carnes e ganhava um por fora desviando a mercadoria. Seu advogado, ligado à máfia ítalo-americana, conseguiu tirá-lo da situação e isso foi meio que a porta de entrada para que Frank entrasse para o mundo do crime. Ele irá trabalhar para Russell Bufalino (interpretado por Joe Pesci), com quem irá desenvolver uma relação de fidelidade total. Através desse submundo, ele irá também conhecer Jimmy Hoffa (interpretado por Pacino), o famoso líder sindical dos caminhoneiros que desapareceu e não foi encontrado até hoje. Vamos vendo, ao longo do filme, como Frank se envolve cada vez mais com o mundo do crime, não somente de forma profissional, mas também de forma afetiva com Bufalino e Hoffa, onde chegará um momento em que Frank terá que fazer escolhas muito duras. O mais curioso aqui é que o filme é contado em flash-back, de forma que vemos Frank bem idoso num asilo, mostrando que ele foi um dos poucos que conseguiram sobreviver à violência do submundo da máfia ítalo-americana.
A
primeira coisa que vem às nossas cabeças quando vemos esse filme é a película
“Os Bons Companheiros”, onde temos também De Niro e Pesci fazendo um filme
sobre a máfia ítalo-americana. Entretanto, há algumas diferenças. Enquanto que
o filme “Os Bons Companheiros” parecia ser algo mais estritamente ligado à
máfia ítalo-americana, com uma crueza bem maior (lembro-me da psicopatia do
personagem de Joe Pesci nesse filme), em “O Irlandês” temos um filme menos
violento (mas, ainda assim com a violência típica dos filmes de máfia
ítalo-americana) e vemos a máfia conectada com outros núcleos, tais como o
movimento sindical e o desaparecimento de Hoffa, a família Kennedy no poder e a
questão da Revolução Cubana. Ou seja, é um filme com um desdobramento muito
maior que o torna bem mais rico e interessante pelo forte background histórico.
Fica bem clara a interação de todos esses núcleos, dando a entender que Kennedy
foi assassinado a mando da máfia, assim como a mesma teve participação no
episódio da Baía dos Porcos e no desaparecimento de Hoffa. É um filme que exige
muito da atenção do espectador pelo rosário de personagens e situações onde os
mesmos interagem. E tudo isso em mais de três horas de exibição. Pelo menos, se
o espectador não conseguiu pescar toda a história e seus meandros, ele vai ter
nova chance de fazer isso através do Netflix, o que é acalentador. De qualquer
forma, vale muito a experiência de se ver a película no cinema, pois temos um
roteiro para lá de primoroso e muito bem trabalhado em toda a sua complexidade.
Agora,
definitivamente o mais espetacular foi ver as duplas De Niro-Pacino e De
Niro-Pesci atuando. Um baita de um cast que vale demais o ingresso! Não é todo
o dia que a gente tem a oportunidade de ver tanta gente muito boa trabalhando
junta! E, mesmo com as mais de três horas de exibição, ficou um gosto de quero
mais. Confesso que não me contento em ter esse filme somente no streaming e
gostaria muito de conseguir uma cópia em DVD para ver quando quisesse (sempre
há a possibilidade da Netflix retirar o filme quando os acessos baixarem no
futuro). É nessas horas que a gente percebe como vale a pena passar por todas
as dificuldades para ver uma produção como essa numa boa sala de cinema.
Dessa forma, “O Irlandês” é um programa imperdível que vale o ingresso e a experiência de vê-lo em uma boa sala de cinema. Um filme de Scorsese à antiga, o Scorsese que fala do mundo do crime ítalo-americano, com um elenco magnífico que interage de forma bem azeitada e redondinha. Um deleite para os olhos obrigatório para qualquer indivíduo que se diz ser cinéfilo.
Um documentário inquietante. “Mama Coronel” fala de uma dura realidade: a do continente africano em dias de pós guerra, onde crianças e mulheres são vítimas de uma dura condição imposta pelas agruras de uma sociedade muito sofrida. Para podermos entender um pouco melhor o filme, vamos lançar mão de spoilers.
O filme mostra a
trajetória da policial Honorine, conhecida pelo apelido de Mama Coronel. Ela busca
resolver casos de estupro e violência contra crianças no Congo. As crianças,
além dos casos de estupro, também sofrem espancamentos de adultos, pois são
acusadas de estarem enfeitiçadas, padecendo muito nas mãos de líderes religiosos.
Por outro lado, Honorine presta assistência para mulheres vítimas da guerra
entre Ruanda e Uganda, onde foram estupradas e viram seus maridos e filhos
serem assassinados. Com a guerra tendo ocorrido há mais de quinze anos, com
todos esses crimes jamais tendo sido elucidados, e sem qualquer esperança futura
de que isso ocorra, resta a Honorine dar a melhor assistência possível a essas
mulheres e pedir ajuda ao povo que também não tem a menor condição para isso. Ainda,
as crianças que sofrem espancamentos dos adultos por serem acusadas de
feitiçaria não têm uma família para ficar. Assim, Honorine acaba levando essas
crianças para serem criadas pelas mães que foram estupradas na guerra e tiveram
suas famílias mortas. O documentário termina com mães de família que são comerciantes,
sensibilizadas pelas atitudes de Mama Coronel, doando uma quantia em dinheiro
para ajudar as mães e as crianças.
O documentário,
depois de mostrar um cruel e repulsivo choque de realidade, acaba optando por
um happy end, muito provavelmente pelo fato de que toda a cruel realidade de um
povo que sofreu as agruras da guerra é um fardo muito pesado a ser carregado
pelo espectador durante a exibição do filme, com o happy end sendo algo mais
brando e aceitável. De qualquer forma, esse filme exibe, de forma nua e crua,
todas as agruras que os povos do continente africano sofrem, quando os pesos de
guerras com origens mais tribais podem, simples e literalmente, destruir vidas
e famílias inteiras. De imponente mesmo resta a figura de Mama Coronel, que
sempre somos tentados a chamar de heroína, embora ela seja apenas uma
funcionária pública que quer ser a mais profissional possível e necessita de condições
ideais de trabalho, onde um sistema judiciário totalmente estático acaba sendo
um grande empecilho para suas atividades profissionais e humanitárias, indo
onde o Estado deve estar, Estado esse que quase nunca chega onde deve ao final
das contas. Honorine é admirável, corajosa e tira leite de pedra para dar um mínimo
de humanidade a pessoas tão barbarizadas.
Dessa forma, “Mama Coronel” é um documentário fundamental e indispensável, pois expõe de forma nua e crua as agruras de um continente que se tornou como tal em virtude de um agressivo processo imperialista por parte das potências do ocidente, e que, simplesmente se desfizeram da África após usá-la e abusá-la, pouco se importando com a enorme quantidade de vidas ceifadas por problemas econômicos e de ordem geopolítica. A figura de Honorine, que se levanta contra todo o processo, é admirável e tem sabor de mitológico e heroico, mas ela é apenas uma ser humana que quer fazer seu trabalho da melhor forma possível e precisa de condições para isso. Um programa imperdível.
Uma boa cinebiografia brasileira. “Rogéria, Senhor Astolfo Barroso Pinto”, é o primeiro documentário sobre a famosa artista depois de sua morte em 2017. Por meio de imagens de arquivo e muitas entrevistas, ou seja, um documentário feito de uma forma bem tradicional, com direito a algumas dramatizações que dão um tom artístico à coisa, a película consegue dar uma boa ideia da trajetória de Astolfo Barroso Pinto, um cabeleireiro e maquiador que ficou conhecido de muitas atrizes, inclusive globais, mas que tinha o sonho do estrelato, tornando-se um artista, acima de tudo, e nas suas próprias palavras. Rogéria, extremamente carismática, não abre mão de Astolfo Barroso Pinto, e a atriz só é influente e forte pois tem Astolfo em sua retaguarda. Para podermos analisar um pouco mais o documentário, vamos precisar lançar mão de spoilers.
O documentário nos dá a grande oportunidade de conhecer os familiares de Rogéria, sobretudo seus irmãos e irmãs, além de relatos de arquivo de sua mãe, o que nos ajudam a reconstituir a personalidade da personagem. Indo desde a infância, passando pelas primeiras experiências como maquiador, indo até o início de sua carreira artística e o estrelato, com direito a dramatizações rápidas que nos ajudam a ter uma ideia de todo o contexto, o documentário faz um interessante mapeamento da vida de Rogéria. Seu famoso acidente automobilístico que quase acabou com sua carreira é citado, num momento em que a artista ficou muito fragilizada mas conseguiu dar a volta por cima, graças à ajuda de figuras como Ivo Pitanguy e Agildo Ribeiro, que lhe deu a oportunidade de fazer o primeiro número musical depois do acidente, em seu programa televisivo “Estúdio Agildo”.
O documentário também tem vários depoimentos da própria Rogéria, que não podiam faltar. De personalidade extremamente magnética e simpática, Rogéria faz jus ao título que dá a si mesma de “o travesti da família brasileira”, pois é impossível não gostar dela, seno uma contribuição inestimável à luta contra a homofobia. O desfecho do documentário é emocionante, onde é mostrada uma gravação de celular onde Rogéria canta no leito do hospital, pouco tempo antes de sua morte, o que mostra toda a energia da figura humana que ela era. Vemos, também, praticamente todos os entrevistados, com lágrimas nos olhos, escutando a gravação e dando seus depoimentos, o que foi muito intenso para o desfecho de um documentário que foi uma homenagem à altura.
Assim, “Rogéria, Senhor Astolfo Barroso Pinto” é uma justa homenagem a uma figura humana incomparável. Um documentário bem simples e tradicional, mas feito com bastante carinho e uma boa lembrança de uma pessoa que deixa muita saudade até hoje. Programa imperdível.
Minhas colagens estão de volta. Que tal falarmos de idas e vindas? Pessoas que vêm e vão de nossas vidas, o movimento de ida e volta da casa para o trabalho, o fluir do tempo, semanas que vêm e vão… tudo o que vai, volta… até o dia em que vai para sempre…
Imagine uma nova versão para a Branca de Neve, onde a frágil mocinha é toureira na Espanha da década de 1920. E tudo isso num filme em preto e branco e mudo!!! Só de pensar, dá para arrepiar!!! E foi isso que aconteceu no excelente “Blancanieves”, de Pablo Berger. Um filme lindo de morrer toda a vida! Obra de arte em toda a maravilha e contraste do preto e branco.O filme começa com o grande toureiro, Antonio Villalta (interpretado por Daniel Giménez Cacho) que sofre um acidente na Praça de Touros perante sua esposa grávida, a belíssima Carmen (interpretada por Inma Cuesta) e sua sogra Doña Concha (interpretada por Angela Molina). Villalta fica tetraplégico e Carmen morre no parto. A filha, Carmencita, passa a ser criada pela avó, enquanto que o pai fica sob os cuidados da perversa enfermeira Encarna (interpretada por Maribel Verdú).
A avó de Carmencita morre numa dança espanhola e Carmencita irá para a casa do pai e será severamente tripudiada por Encarna, que será a madrasta e fará muitas maldades, como servir o galo de estimação de Carmencita no jantar e proibir a menina de ver o pai. Mas Carmencita irá se encontrar com o pai às escondidas. Ao descobrir os encontros, Encarna mata também Villalta, atirando-o escada abaixo com cadeira de rodas e tudo. Não satisfeita, Encarna também irá mandar seu amante estrangular e matar Carmencita, já crescida (interpretada por Macarena Garcia). Mas ela será salva por sete anões que têm uma trupe mambembe de toureiros. Com amnésia, Carmencita passa a viver com os anões e viaja com a trupe. Com o tempo, ela vai mostrando seus dotes de toureira que aprendeu com o pai e passa a fazer parte das apresentações do grupo, sendo contratada por um empresário para fazer touradas na Praça de Touros em Sevilha. Mas um dos anões não gosta de Carmencita e troca as placas dos touros para que Carmencita pegue um touro muito perigoso e violento.
Carmencita se lembrará de tudo ao encarar o touro e consegue dominá-lo. O mais interessante é que o público pediu para o touro não ser sacrificado, balançando lenços brancos (sinal dos tempos, matar touros em touradas, uma espécie de farra do boi de luxo, é considerado algo politicamente incorreto nos dias de hoje). Carmencita é ovacionada pela plateia aos olhares malignos de Encarna, que a descobriu, pois a moça foi destaque na mesma revista que havia feito um ensaio fotográfico com Encarna, mas a colocou numa posição secundária na revista para que Carmencita tivesse destaque. É na arena que a madrasta oferecerá a maçã envenenada e matará Carmencita. Perseguida pelos anões, Encarna se esconderá no estábulo dos touros e será morta por um deles.
E o príncipe encantado não aparecerá! O cadáver de Branca de Neve se tornará uma atração de parque de diversões, onde as pessoas (homens e mulheres!) a beijarão por dez centavos para ver se ela acordará ou não. Em alguns casos, o cadáver é devidamente “levantado” para caracterizar um suposto milagre. O filme termina com o cadáver de Branca de Neve sob os olhos afetuosos de um dos anões que se apaixonou por ela e cuida de seu corpo, passando o batom após a romaria de beijos e penteando carinhosamente seus cabelos.A história não poderia terminar de forma melhor, sem happy end, de forma extremamente melancólica, o que destoa fortemente da vigorosa e dançante cultura espanhola, que permeia todo o filme de forma extraordinária. O preto e branco realça os contrastes da imagem e torna os closes e olhares muito expressivos e fortes, dando uma sublime plasticidade à fotografia, plasticidade essa ressaltada pelos lindos cenários e figurinos, onde os contrastes de claro e escuro lembram os melhores filmes expressionistas alemães.
A linguagem do cinema mudo também é de se deliciar. Vemos toda a maldade de Encarna na materialidade das imagens, sem a necessidade de um intertítulo sequer. As interpretações de alguns figurantes são antinaturais, contrastando com as interpretações mais elegantes e contidas dos protagonistas, à exceção de Encarna, que volta e meia, exagera para mostrar toda a sua perniciosidade e futilidade.
Assim, essa nova versão de “Branca de Neve” à espanhola é uma grata surpresa, num filme bem ao estilo de “O Artista”, que tanto sucesso fez há alguns anos.
A arte cinematográfica é relativamente nova. Surgida oficialmente em 1895, com os irmãos Lumière, logo ela se expandiu pelo mundo, ainda carente de uma linguagem. Essa carência foi pouco a pouco desaparecendo graças aos experimentos de diretores como o americano David Wark Griffith, que estabeleceu uma linguagem cinematográfica que explorava mais a materialidade visual do cinema mudo, que ainda necessitava de uma quantidade muito grande de intertítulos para poder explicar a história, e o russo Serguei Eisenstein, que e considerado um dos fundadores da montagem em cinema. Enquanto isso, no nosso longínquo Brasil, o cinema dava também seus primeiros passos. Ainda em seus primórdios, era natural que os próprios donos das salas de cinema fizessem filmes para exibirem em suas salas. Mas em 1911, o mercado nacional foi invadido por produções estrangeiras. Vários foram os fatores: a crise econômica no exterior, provocada por tensões sociais e movimentos grevistas, forçou os produtores de filmes a buscarem o mercado externo; Francisco Serrador, espanhol e empresário, compra grande parte das salas de exibição do Rio de Janeiro e de São Paulo, criando um “trust” e abre caminho para a exibição de filmes estrangeiros, em detrimento da produção nacional, feita pelos próprios exibidores; a revolução griffthiana em 1908 nos Estados Unidos, começa a transformar o cinema em meio de expressão, começa a desenvolver a linguagem própria do cinema. O cinema também se desenvolvia como meio de expressão na Europa. A concorrência entre a indústria cinematográfica (com um novo cinema) e a produção artesanal e primitiva foi desleal e os filmes brasileiros sumiram das telas até 1923. Durante esse período, o que garantiu a sobrevivência do cinema do Brasil foram os documentários, ou filmes de cavação, e um ou outro filme de enredo tal como “Exemplo Regenerador” (1919). Enquanto isso, o cinema desenvolvia-se com o “Nascimento de Uma Nação” (1912), “Intolerância” (1915), os filmes de Charles Chaplin, Mary Pickford e mais uma série de realizadores americanos, sem falar nos esboços do cinema soviético, com Eisenstein e alemão, cujo filme “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919) foi o marco inicial do expressionismo.
Logo, os filmes brasileiros, sufocados por um mercado ocupado pelos filmes estrangeiros, permanecem primitivos e pré-griffthianos.Em 1923, quando Griffith está em declínio e Chaplin realiza “Casamento ou Luxo?”, os primeiros sinais de renascimento da atividade cinematográfica brasileira aparecem. A interiorização das linhas de distribuição americanas despertam o interesse nos filmes. Agora, além da cidade grande, o interior também via o cinema. Surge o “fã” e a vontade de fazer filmes. É a época dos ciclos regionais. Surgem produtoras em Recife, Pouso Alegre e Guaranésia (MG) e em mais outras regiões além de Rio de Janeiro e São Paulo. Na cidade de Cataguases (MG), a Phebo Brazil Film, cujo diretor de cinema era Humberto Mauro, tem o exemplo mais importante dessa interiorização do cinema. A vontade de fazer filmes aliada com a técnica herdada dos cavadores faz renascer o cinema no Brasil. Podemos dizer que, durante a década de 1920, surgem dois grupos que alavancam o cinema no Rio de Janeiro. O primeiro pólo era liderado por Adhemar Gonzaga e Pedro Lima, que organizavam a revista “Cinearte” e faziam militância pelo cinema brasileiro, e estimulavam a produção nacional, sendo um ponto de referência para os produtores de filmes dos ciclos regionais. E o segundo pólo era formado por um grupo de estudantes que organizou o jornal “O Fan”, que buscava discutir o cinema de forma teórica no Brasil, e era liderado por futuros intelectuais como Otávio de Faria (que seria escritor e germanista) e Plínio Sussekind Rocha (que seria físico).
Esses estudantes fundaram o Chaplin Club, apologistas da obra de Carlitos. Um dos amigos de escola de Otávio e Plínio era um jovem franzino, de nariz pronunciado (que lhe deu o apelido de maçarico), muito tímido, chamado Mário Breves Peixoto. De família muito rica (era parente por parte de mãe do Comendador Joaquim José de Souza Breves, que foi o maior plantador de café do Império e mais ativo traficante de escravos da época, sendo interlocutor do Imperador e senhor de todo o território que vai da Restinga de Marambaia até as fronteiras de São Paulo, litoral e interior; “Limite” será filmado em Mangaratiba em função disso), Mário vai estudar no colégio Santo Antônio Maria Zaccaria de 1917 a 1926 (onde conhece Otávio e Plínio) e depois segue seus estudos na Inglaterra, numa experiência mal sucedida, por não se adaptar à frieza do povo inglês. Lá, tem contato com o cinema expressionista alemão, sobretudo com “Metrópolis”. De volta ao Brasil, em 1927, conhece Brutus Pedreira (um dos futuros atores de “Limite”), que o levará para o teatro de brinquedo, conhecendo a família Schnoor (um de seus membros, Raul, atuou em “Limite”) e também Adhemar Gonzaga e Pedro Lima através de Eva Schnoor, que era a atriz principal de “Barro Humano”, filme de Gonzaga, que fundaria os estúdios da Cinédia. Assim, Mário teve contato com o grupo que fazia filmes no Brasil (o de Adhemar Gonzaga) e com o grupo que discutia cinema de forma teórica (o Chaplin Club, de Otávio de Faria e Plínio Sussekind Rocha que comparava o cinema de Murnau ao de Griffith, por exemplo, além de analisar a obra de Chaplin). Em 1929, após um período na Europa, Mário retorna ao Brasil decidido a escrever um “scenario”, ou seja, um roteiro de filme. Ele declarou, anos depois, que queria atuar no filme e o “scenario” foi escrito após ter visto, em Paris, numa banca de jornais, a capa da revista “Vu”: uma mulher com olhar fixo e mãos masculinas algemadas por sobre o busto. Após essa imagem, surgiu em seu pensamento a visão de uma mulher agarrada a uma tábua num mar de fogo. Mário cria o “scenario” do filme ligando essas duas imagens: a da mulher com as algemas como primeira imagem e a mulher no mar de fogo como a última.
Ele teve essa visão após ter uma discussão aparentemente grave e dolorosa com o pai. Mário, de personalidade introspectiva e que amava muito o pai, teria sofrido muito com essa discussão.O “scenario” foi escrito, segundo ele, em uma só noite e era basicamente o seguinte: um barco, com três náufragos, perdido no oceano. Os náufragos estão abatidos, deixaram de remar e parecem conformados com o seu destino. Uma das mulheres dá um biscoito ao homem, que o come, desalentado. Ela, então, conta a sua história: fugiu de uma prisão com a cumplicidade do carcereiro, mas desprezou-o. Fugiu novamente, mas não encontra a paz. Tenta trabalhar – costurar – mas a monotonia a esmaga. Vendo a notícia de sua fuga no jornal, parte novamente.O homem reanima a outra moça caída no fundo do barco. Também ela conta a sua história: um casamento infeliz e desastrado com um pianista bêbado que toca em cinemas. A mulher sente-se presa, reprimida pela tirania dos laços do casamento; recorda o marido em toda a sua degradação. Desesperada, foge.No barco, a primeira mulher tenta remar – mãos e remos são inúteis. Os outros dois olham-se, vencidos e conformados. E o homem conta, então, ele também, a sua história. Viúvo, tem um caso de amor com uma mulher casada. Há alegria e há tristeza. Ao visitar o túmulo de sua mulher, encontra o marido da amante que lhe diz que esta é leprosa. Desespero, angústia, terror – e fuga.No barco, a água para beber acaba. Um barril, visto de longe, pode ser a salvação. O homem pula n’água para ir buscá-lo, mas não reaparece à tona. Em desespero, a segunda mulher atira-se à primeira, que a agride. Uma fica prostrada, a outra chora.Desencadeia-se uma tempestade, uma longa tempestade que, quando acaba – o mar calmo outra vez – não deixa mais do que a primeira mulher agarrada a um destroço – e assim termina o “scenario” que não tem mais do que quinze páginas datilografadas, com cortes e fusões indicados, bem ao estilo do cinema silencioso.
Vemos nesta história que o tema central do filme é a limitação do homem perante o Universo. Ao invés de um possibilismo, onde o homem pode transformar a natureza a seu bel prazer e dominar todas as coisas, o filme aborda um determinismo, ou seja, o homem nem sempre pode dominar a natureza e, inclusive, encontra-se à mercê dela. A situação dos náufragos no filme é exemplar: eles estão totalmente subjugados pelo mar que os matará. As três histórias são somente uma metáfora da limitação principal do homem perante o Universo, perante o mar, nos casos individuais dos três personagens. Cabe ainda dizer que o filme não obedece a um fio narrativo tradicional, mas sim a uma associação metafórica de imagens, onde vemos alegorias da limitação interligadas: algemas, proas de barcos, loops de câmaras, etc. Assim, podemos dizer que “Limite” se aproxima mais de uma poesia do que uma prosa. Cacá Diegues diz que “Limite” nos dá a impressão, em termos de linguagem cinematográfica, de qual seria o rumo que o cinema mudo tomaria se o cinema falado não tivesse chegado ali mesmo no fim da década de 1920 e início da década de 1930. Pelas linhas descritas acima, vemos que “Limite” é um baita filme (lembra a segunda lei da termodinâmica em física, onde a morte do Universo pelo aumento de entropia – nível de desorganização de um sistema – é inevitável). E esse baita filme foi imaginado por um pós-adolescente brasileiro em 1930, o filme teve todas as condições de ser realizado e ele existe até hoje, pois foi restaurado por Plínio Sussekind e seu aluno Saulo Pereira de Mello (que esse humilde articulista teve o privilégio de conhecer). Por esses motivos, muitos estudiosos e especialistas em cinema brasileiro dizem que “Limite” é considerado o maior filme brasileiro de todos os tempos e uma lenda. E veja o filme completo abaixo!!!