A Academia Brasileira de Letras e a Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro iniciaram uma parceria e criaram um cineclube com o nome de Cine Academia Nelson Pereira dos Santos. Tal iniciativa é de grande valia para a cultura não somente do Rio de Janeiro como de nosso país, nesses tempos tão sombrios e complicados. A ideia é realizar, em toda primeira terça-feira de cada mês, no Espaço Itaú de Cinema, a exibição de um filme brasileiro de relevância para a História de nosso cinema, seguido de um debate, ao bom espírito da tradição cineclubística, onde a exibição vem acompanhada de um esforço coletivo de reflexão. Há, também, uma intenção em se chamar a atenção para o estado precário de conservação de filmes importantes para a História do Cinema Brasileiro, um problema gravíssimo para a preservação de nossa memória, que já sofreu com a perda total de películas como “Favela dos Meus Amores”, de Humberto Mauro e estrelado por Carmen Santos. O primeiro filme no Cine Academia a ser exibido foi “Limite”, de Mário Peixoto (a Batata Espacial postou recentemente um texto sobre “Limite”), e os palestrantes foram o cineasta Walter Salles e o Presidente da Academia Brasileira de Letras Marco Lucchesi. O segundo filme foi “Argila”, de Humberto Mauro, protagonizado por Carmen Santos, que vamos tratar aqui.
Rodado em 1940, “Argila” é um filme que tem elementos que podemos dizer que são reflexo de sua época, mas que também estão à frente de seu tempo. O plot é o seguinte: Gilberto (interpretado por Celso Guimarães) é um talentoso artesão que gosta de fazer vasos artísticos, mas seu talento é rechaçado pelo dono da empresa de cerâmica onde trabalha, pois este quer que sejam produzidas apenas peças de interesse comercial. Na região (Corrêas, Distrito de Petrópolis) vive também Luciana (interpretada por Carmen Santos), uma viúva entusiasta da arte brasileira, que dá recepções e festas em seu rico castelo, para uma elite completamente fútil e que valoriza a arte europeia, sobretudo a da Grécia Antiga, principalmente o personagem Barrocas (interpretado por Floriano Faissal). Luciana contrata Gilberto para trabalhar em seu Castelo com dedicação quase exclusiva, o que enerva sua namorada Marina (interpretada por uma jovial Lídia Mattos). Há um claro interesse de Luciana por Gilberto, assim como pela cerâmica de Marajó, que o artesão consegue confeccionar com bastante desenvoltura. O detalhe é que o suposto namoro começa a ficar muito falado e o pai de Marina, com muito jogo de cintura, por pertencer a um estrato social mais baixo, atenta Luciana para o fato de que Gilberto é comprometido com sua filha. A ricaça entende o recado nas entrelinhas e acaba com qualquer chance de um enlace amoroso com Gilberto, que já estava disposto a abandonar sua futura esposa e cair nos braços de Luciana.
A primeira coisa que chama a atenção em “Argila” é a valorização de temas nacionais. Não podemos deixar de esquecer que Getúlio Vargas manda criar o INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo), que foi capitaneado pelo próprio Humberto Mauro, com o objetivo de se fazer filmes que exaltassem temas nacionais. “Argila” vai muito em direção a isso, principalmente no que se trata à divulgação da cerâmica marajoara, onde temos até um trecho de uma palestra de Roquete Pinto, um entusiasta da cultura brasileira, assim como Mauro (no debate depois da sessão, André Di Mauro, neto de Humberto Mauro, chegou a comentar que Pinto e Mauro chegavam a acampar numa deserta Barra da Tijuca para ficar em contato com a natureza e falavam somente tupi-guarani ao acamparem). Luciana funciona como uma espécie de mecenas da cultura nacional, indo na contramão da elite brasileira supostamente letrada que valorizava mais a cultura estrangeira, onde Barrocas era a principal expressão, sendo um alívio cômico, sofrível para nossos olhos contemporâneos, assim como Ferreirinha, que se destacou por gritar ao telefone (a ligação devia ser realmente muito baixa na época), soletrando as palavras e se perdendo nisso.
O filme também exalta muito as diferenças entre as classes sociais. O núcleo da elite fútil que é recebida pacientemente por Luciana se contrapõe à classe humilde e trabalhadora da qual Gilberto e Marina fazem parte. Esse estrato social é totalmente ignorado pela elite, justamente com exceção de Luciana, que vê valor nas pessoas humildes, ainda que com um certo distanciamento. Mas é bem clara a diferenciação social no trato que os personagens da elite dão à empregada negra de Luciana, Vavá, praticamente de forma escravocrata. É curioso também perceber como Luciana, apesar de valorizar a gente humilde, lança mão da diferenciação social para afastá-la de Gilberto, para que este pudesse voltar à sua amada Marina. O único momento em que há uma aproximação entre a elite e a classe trabalhadora está na festa de São João, onde simpatias são feitas pelos dois grupos sociais, que compartilham uma mesma tradição popular.
As personagens femininas também são um destaque. Marina é um exemplo de pureza imaculada. Há um fotograma muito interessante onde isso se manifesta, quando Marina faz o mesmo semblante da imagem da Virgem Maria logo acima de sua cabeça no momento em que Gilberto a abandona mais uma vez para ver Luciana. Apesar disso, Marina se coloca com muita propriedade em sua oposição aos assédios de Luciana em cima de Gilberto, sendo uma personagem um tanto forte, apesar de sua aparência frágil. Mas Luciana é, definitivamente, a personagem mais forte (e empoderada) do filme. Temos uma mulher moderna, à frente do seu tempo, entusiasta da cultura brasileira, além de ser uma mulher que assedia (inclusive com fortes insinuações sexuais, quando nos lembramos da cena em que ela observa avidamente Gilberto trabalhando e fumando sensualmente um cigarro) o homem que deseja. Isso para os anos 40, numa sociedade conservadora como a brasileira de então, era algo muito forte e desafiador das tradições. Entretanto, ainda que Luciana fosse uma transgressora, ela não abriu mão da preservação da instituição do casamento, sacrificando o seu amor por Gilberto para garantir o matrimônio dele com Mariana. Ou seja, moderna, ma non tropo.
E o trabalho de Humberto Mauro nesse filme, do ponto de vista cinematográfico? Temos aqui um primor de fotografia, onde abusou-se do uso de claros e escuros de forma muito artística. A cena em que Luciana interpreta uma Julieta sob o Canto de Romeu mostra o valor da cinematografia de Mauro, assim como sua caminhada noturna num fantasmagórico vestido branco sobre um fundo negro onde a cabeça de Luciana desaparecia. A cena sensual do fumo de cigarro aqui já citada também é um exemplo desse primoroso uso do claro e do escuro. A montagem também pode ser frenética em alguns momentos, como vemos novamente na cena em que Luciana seduz Gilberto com o cigarro, onde closes dos olhos de Gilberto se alternam com as investidas de Luciana. Vendo “Argila”, podemos perceber claramente todo o talento de Mauro para o oficio do cinema.
Após a exibição do filme, tivemos o debate com Carla Camurati e André Di Mauro. Enquanto que Camurati exaltou todo o teor de dramaturgia do filme e a figura icônica de Carmen Santos, Di Mauro se ateve mais às pesquisas que fez sobre seu avô, Humberto Mauro, para a realização de seu documentário em homenagem ao cineasta (já resenhado aqui na Batata Espacial) que está entre os cem finalistas ao Oscar de Melhor Documentário para o ano que vem.
Dessa forma, “Argila” é um filmaço que faz parte da História muito frutífera de nosso cinema. Ou seja, esse é o tipo do filme que tem que ser preservado a todo custo por sua cinematografia, mas também por sua dramaturgia, pelo seu documento de época e pelas visões à frente de seu tempo. O Cine Academia Nelson Pereira dos Santos está aí para chamar a atenção para a preservação de nossos filmes. Mas também para fazer uma discussão altamente reflexiva sobre nosso cinema e nossa cultura. E como esse é um filme muito importante, nao deixem de assisti-lo na íntegra abaixo…