Um filme traumático, que chegou aos finalistas do Oscar e do Globo de Ouro a Melhor Filme Estrangeiro. “Os Miseráveis”, de Ladj Ly, mostra o explosivo ambiente das periferias de Paris de uma forma extremamente crua e sem qualquer filtro para os mais sensíveis. Um filme absolutamente necessário. Para podermos falar desse filme, vamos lançar mão de spoilers.
A película mostra a rotina de três policiais: Ruiz (interpretado por Damien Bonnard), Chris (interpretado por Alexis Manenti) e Gwada (interpretado por Djibril Zonga). Eles são da divisão anticrime e patrulham as periferias de Paris, um verdadeiro barril de pólvora, onde várias etnias vivem numa situação de conflito constante: africanos, muçulmanos, ciganos. Ruiz está no seu primeiro dia de trabalho e veio do interior. Chris e Gwada já têm dez anos de serviço, sendo o primeiro branco e altamente violento, enquanto que Gwada tem descendência imigrante, sendo menos violento, mas igualmente temido. Um menino chamado Issa acaba roubando um filhote de leão de um circo de ciganos, o que provoca a fúria dos mesmos e uma guerra étnica iminente na periferia. Os policiais vão tentar solucionar o caso e conseguem, pela internet, identificar Issa. Eles vão apreender o menino, que estava jogando futebol e os demais garotos começam a apedrejar os policiais. Issa consegue se desvencilhar mesmo algemado e Gwada acerta o seu rosto com uma bala de borracha. O grande problema é que um drone de um garoto apelidado singelamente de Bzz filmou toda a ação policial, o que vai ferrar com a vida de nossos protagonistas. Os três policiais irão, então, correr atrás do menino com o drone e ainda ter que acobertar a besteira que fizeram com Issa, que fica com o rosto desfigurado em virtude da bala de borracha. Para isso, os policiais farão alguns acordos com as lideranças locais do submundo, o que vai despertar a revolta das crianças, que vão reagir de forma extremamente violenta e explosiva.
O que mais chama a atenção no início do filme é que ele começa com o povo comemorando a vitória da França na Copa do Mundo, e o que vemos nas ruas é uma população massivamente mestiça, negra e estrangeira cantando a Marselhesa, com camisas da seleção da França e com bandeiras francesas comemorando nas ruas de Paris. Até o principal jogador da seleção francesa é mestiço. Ou seja, fica bem claro nas intenções do diretor mostrar que a realidade da França agora é, além de branca, também mestiça.
E aí, dentro desse contexto, toda a tensão social da periferia parece ainda mais injustificada. Mas Ladj Ly também faz questão de mostrar a natureza fragmentada dessa periferia, onde o ódio é uma via de múltiplas mãos. Todas as etnias se odeiam profundamente, esperando um pretexto, por mínimo que seja, para explodir tudo e começar uma guerra, numa situação que parece cada vez mais ser um beco sem saída. É assustador perceber como essa realidade se aproxima da realidade das nossas periferias brasileiras, onde a fragmentação também ocorre, dentro de outras perspectivas, e a violência também é muito latente. O mais curioso aqui é que uma das poucas vozes coerentes do filme é justamente a do líder religioso muçulmano, ele mesmo com um passado de crimes e tráfico, mas que agora professa a fé e busca agir dentro de uma ética. Essa é uma atitude muito corajosa de Ladj Ly, ainda mais numa época de muito preconceito contra o islamismo em virtude da onda recente de atentados terroristas na França.
O desfecho do filme é surpreendente, pois a violentíssima revolta das crianças é um reflexo da violência das inúmeras facções mas, principalmente, uma reação à união das facções e dos policiais em acobertar o caso da bala de borracha disparada no rosto de Issa. Não somente a polícia é atacada, mas também o líder comunitário e os traficantes. A cena final, desesperadora toda a vida, e que fica em aberto, é acompanhada por uma citação de Victor Hugo em sua obra “Os Miseráveis”, deixando-nos uma sensação de desalento e, principalmente, desesperança.
Assim, “Os Miseráveis” é um filme que poderia muito bem abiscoitar esse Oscar ao qual concorre, embora pareça que já está tudo engatilhado para o coreano “Parasita” ganhar. Seria uma grata surpresa ver “Os Miseráveis” ser premiado, em virtude de sua gritante denúncia do ódio e intolerância nas periferias, onde países desenvolvidos e subdesenvolvidos se igualam tragicamente. Um filme obrigatório.