Mais um filme da fase americana de Fritz Lang. “Desejo Humano” (“Human Desire”, 1954), além de apresentar a rara situação de ter a tradução literal em português do título original, é mais uma história adaptada, dessa vez de um romance de Émile Zola (“La Bête Humaine”). O claro/escuro aparece mais uma vez, assim como uma referência rápida à cultura japonesa. Mas, dessa vez, vemos um forte drama psicológico usando um assassinato como pano de fundo. Mais uma vez, os spoilers, agora de sessenta e seis anos estão liberados.
Qual é o plot da história? Vemos aqui o personagem Jeff Warren (interpretado por Glenn Ford), um ex-combatente da Guerra da Coreia que consegue retornar à sua vida antiga de maquinista de trem. Jeff está muito feliz com seu retorno e ao convívio com os seus. Ele tem um amigo chamado Carl Buckley (interpretado por Broderick Crawford) que acabou de ser demitido e pediu para a sua esposa, Vicki (interpretada por Gloria Grahame, conversar com John Owens (interpretado por Grandon Rhodes), um rico empresário que pode influenciar o patrão de Carl a devolver seu emprego. Entretanto, Vicki não queria fazer isso, pois ela já foi criada na casa de Owens e tinha que se entregar a ele para que o patrão a mantivesse junto com sua mãe. Ao pedir um favor para Carl, a coisa não foi diferente. O problema é que Carl desconfiou que tivesse acontecido algo entre Vicki e Owens. Dessa forma, Carl agrediu Vicki violentamente e planejou o assassinato de Owens com o auxílio forçado de Vicki, dentro do vagão de um trem em viagem, sendo que Carl obriga Vicki a forjar uma carta convidando Owen para um encontro que seria a armadilha para a morte de Owen. A carta também seria usada por Carl para chantagear Vicki, pois a carta incrimina a moça e mantê-la com ele. Ao saírem do local onde Owen foi assassinado por Carl, o casal viu Jeff e Carl obrigou Vicki a despistá-lo, atraindo-o para o bar, o que fez com que Jeff se apaixonasse por Vicki. No fim da viagem, Carl e Vicki se encontram com Jeff e este último finge que nada ocorreu. O corpo de Owen é encontrado e, na investigação, Jeff não cita que viu Vicki no depoimento para incriminá-la. Jeff e Vicki começam um romance às escondidas e, aos poucos, Jeff descobre tudo o que ocorreu. Os dois, então, planejam a morte de Carl, mas Jeff não consegue matá-lo. Vicki acreditava que Jeff podia fazê-lo, mas, segundo o próprio Jeff, matar um soldado inimigo desconhecido é bem diferente de matar um bêbado que tem nome e rosto. Jeff percebe que Vicki o estava usando para se livrar de Carl e desfaz o namoro, entregando à Vicki a carta que a incriminava, pois Jeff a tomou de Carl, que novamente perde o emprego, fazendo Vicki ir embora, se afastando definitivamente de Carl. Na viagem em que Vicki vai embora, e onde Jeff conduz o trem, Carl está no trem e implora para Vicki ficar com ele. Esta se nega e humilha Carl, que a mata estrangulada.
É um filme muito perturbador, pois se a personagem Vicki é vitimizada num primeiro momento, ela é demonizada num momento posterior. A moça não queria rever Owen, pois sabia que o adultério aconteceria, mas, para ajudar o marido a recuperar o emprego, ela acaba sendo obrigada a ir para depois ser agredida violentamente pelo próprio marido morto de ciúmes, que ainda a envolve num homicídio e a chantageia com uma prova forjada contra ela. Para se livrar de tudo isso, Vicki usa Jeff, talvez a única opção que ela tivesse, sendo, por isso demonizada. Mesmo que a postura de Vicki não tenha sido das mais virtuosas, ficou parecendo a uma certa altura do filme que as atitudes de Vicki foram muito mais torpes do que a do próprio Carl, onde o adultério teve um peso muito forte, sendo condenado até por Jeff, e onde a história insinua que as atitudes de Carl poderiam até ser justificadas em virtude do adultério, pois seriam executadas por um homem verdadeiramente apaixonado. Tais visões de mundo são muito estranhas aos olhos de hoje, ainda mais porque vemos Vicki sendo severamente castigada por suas atitudes, sendo estrangulada ao final do filme. Todas essas características do filme revelam um tratamento muito desproporcional no que se refere à forma como Vicki e Carl são vistos na película. E, se o filme foi rodado há mais de sessenta anos, não podemos nos esquecer que a história é baseada num romance de Zola, mais antigo ainda.
Dessa forma, “Desejo Humano” é mais um filme de Lang que vai dessa vez abordar um drama mais psicológico com um juízo de valor baseado numa visão de mundo considerada por nós antiga, provocando estranhamentos. Temos aqui uma vítima que é demonizada, muito em função de se tratar de uma mulher que comete adultério. Um filme bem perturbador para nossos padrões atuais. Mas vale a pena vê-lo na íntegra abaixo.