Vamos fazer aqui um pequeno parênteses nos filmes de Fritz Lang, mas nem tanto. Falemos de uma obra de Jean Luc Godard, “O Desprezo” (“Le Mépris”, 1963), onde o diretor alemão interpreta ele mesmo, sendo aqui mais uma curiosidade na carreira de Lang, embora ele não tenha, nesse filme, um protagonismo. Pareceu muito mais uma homenagem de Godard ao cineasta do que qualquer coisa. Para podermos falar desse filme, vamos liberar os spoilers de cinquenta e sete anos.
A trama se passa em volta de um casal, Camille (interpretada por Bardot) e Paul (interpretado por Michel Piccoli). Ela, uma datilógrafa que abandonou a profissão para se casar. Ele, um dramaturgo que está escrevendo um roteiro sob contrato. O filme é produzido por um americano, Jeremy Prokosch (interpretado por Jack Palance) e que vai ser dirigido por Fritz Lang. Tudo corre às mil maravilhas com o casal, até que eles vão ao set de filmagens e Prokosch quer levá-los para beber algo, mas não há vagas no carro dele para todos. Paul deixa sua esposa ir juntamente com Prokosch sozinha com ele e arruma outro jeito para ir ao local da tal bebida demorando cerca de meia hora para chegar. Quando Paul chega lá, sua esposa muda da água para o vinho no trato para com ele. Camille se torna arredia, grosseira e despreza o marido. Toda essa situação vai continuar no resto do relacionamento dos dois, que acaba ruindo de vez. O grande detalhe aqui é que o filme tem como tema a saga de Ulisses, que também tem o seu relacionamento com Penélope abalado, onde podemos ver paralelos da adaptação da História Grega no roteiro com a vida de Paul e Camile.
Confesso que nunca morri de amores por Godard. E juro, de pés juntos, que faço um esforço desgraçado para me aprofundar mais em suas obras e recursivamente tento ver seus filmes. Mas parece que meu santo não bate com o dele mesmo, pois achei esse filme uma DR infindável e insuportável, a ponto de se odiar a Brigitte Bardot. Ponto para ela, pois se mostrou uma grande atriz. Mas foi cansativo e extremamente agônico esse embate entre Paul e Camille, sendo que esta última ficou irredutível quando Paul cedeu a ela um lugar no carro de Prokosch. Teria ele querido não mostrar ciúmes? E se ele fosse ciumento e possessivo, Camille gostaria? Ou então, Camille achou que ele a estava usando para conseguir favores de Prokosch? Bem neurótico, como podemos ver. E, por mais que Paul tentasse entender o que acontecia na cabeça de Camille, ela se mostrou totalmente irredutível, a ponto de acabar com o relacionamento de uma hora para outra, algo que não parece minimamente racional ou até crível. Aí fica por conta do romance escrito por Alberto Moravia. Agora, pior do que essa DR um tanto sádica e mal explicada, foi o desfecho. Camille escreve uma carta comunicando a Paul que está o deixando e seguindo com Prokosch para Roma. Na estrada, depois de passar por um posto de gasolina, o carro bate num caminhão provocando a morte dos dois, tal como se isso fosse um castigo, uma punição tanto para Camille por ter sido cruel com Paul quanto como para Prokosch por ter ficado de olho na mulher dos outros. Fina ironia de uma moral cristã? Sabe-se lá.
E Lang? Apesar de sua posição periférica na película, gostei muito dele, pois Lang representava o cinema puro, contra os interesses meramente econômicos de Prokosch. E, toda vez que pintava uma querela no filme, seja nas diferenças de ponto de vista de Lang e Prokosch ou até no dilema conjugal entre Paul e Camille, o diretor somente levantava os dois braços como se quisesse dizer: “fazer o que, né?”.
Mas o que mais marcou foram as palavras do diretor condenando o crime passional, afirmando que a morte não resolve nada nesse sentido, pois se o homem traído mata a mulher amada, ele fica sem ela, e, se mata o amante, a mulher passa a odiá-lo, e o homem traído fica sem ela também. Tal pensamento só aumenta a ironia do desfecho do filme, com a morte acidental de Prokosch e Camille, além do fato de que Paul desiste de escrever o roteiro, que o fazia por Camille e para dar um conforto financeiro maior para a mulher. Paul larga o set de filmagem depois de se despedir de Lang e vai voltar para a sua atividade de dramaturgo, onde ele realmente se realiza.
Dessa forma, se “O Desprezo” mostra uma DR que beira o insuportável e está presente em grande parte do filme, pelo menos as discussões e embates do cinema como arte e como atividade econômica são bem pertinentes, além de termos a oportunidade ímpar de ver Lang atuando (confesso que, para mim, ele não foi mal; há um mito de que os diretores são péssimos atores, não vi isso aqui), onde sua reflexão sobre o crime passional teve um destaque no filme. É por isso que tal película está na minimostra de Fritz Lang que a Batata Espacial faz para o público cinéfilo. E você pode ver esse filme de Godard na íntegra abaixo.