Falemos de mais um filme da fase alemã de Fritz Lang. “Harakiri” (1919) é um mergulho total na cultura oriental, bem ao estilo do gosto do diretor, onde ele dá a sua leitura para “Madame Butterfly”. Para podermos falar desse filme, vamos liberar os spoilers de cento e um anos.
O plot fala de O-Take-San (interpretada por Lil Dagover), a filha de um Daimyo, Tokuyama (interpretado por Paul Biensfeldt), um nobre japonês entusiasta dos hábitos do Ocidente. Ao voltar de uma viagem, Tokuyama é repreendido por um monge budista (interpretado por Georg John), que diz que o Daimyo deve se apegar às tradições de seu povo e obriga O-Take-San a participar de um ritual a Buda. Devido aos seus hábitos ocidentais e a dizer que, para ele, O-Take-San tem a liberdade de participar ou não do ritual budista, Tokuyama é chamado à atenção pelo Imperador (influenciado pelo monge) e é obrigado a cometer harakiri para restaurar sua honra. O-Take-San conhece o oficial da marinha holandesa Olaf Anderson (interpretado por Niels Prien, quando este invade o jardim sagrado onde O-Take-San é mantida pelo monge. Mas O-Take-San é retirada à força de lá para se tornar uma gueixa, e vai para o prostíbulo de Yoshiwara, onde reencontra Olaf. O dono de Yoshiwara diz que, se Olaf quer ficar com O-Take-San, ele deve permanecer casado mil dias com ela. Se isso não tiver acontecido ao final dos mil dias, O-Take-San volta a ser uma gueixa. Olaf se casa com O-Take-San, a engravida e volta para a Europa, prometendo voltar antes dos mil dias. Mas se casa com uma europeia e deixa O-Take-San com um filho e um aluguel a pagar depois de três anos. Enquanto isso, o príncipe Matahari (interpretado por Meinhart Maur) se apaixona por O-Take-San, a protege das investidas do monge e do dono da casa alugada onde ela vive, mas mesmo assim O-Take-San insiste no seu amor por Olaf. O oficial europeu volta ao Japão com sua esposa. O-Take-San, que passava os dias na praia esperando as embarcações vindas da Europa, se entusiasma e prepara a casa com muitas flores, mas Olaf não aparece. Sua amiga vai falar com Olaf, que se nega a ir. A esposa de Olaf decide ir. Quando O-Take-San descobre que Olaf está casado, ela se sente desonrada e a única alternativa a ela é o harakiri. A esposa de Olaf pega o filho de O-Take-San e leva junto para criar com o pai que não honrou seu compromisso.
É uma história trágica, sem dúvida. Mas devemos ver aqui como Lang a trabalhou. Esse é um filme onde a cultura japonesa foi exaltada em sua plenitude. Se o monge japonês lançava mão da tradição para oprimir O-Take-San, também fica claro no filme que ele o fazia com interesses escusos, como se Lang quisesse dizer que não era a cultura a culpada pelo sofrimento de O-Take-San, mas sim a perversidade do monge. A questão da honra e da fidelidade ao amado por parte de O-Take-San, a ponto de se recusar a ter uma vida confortável com um príncipe, mostra a virtuosidade da personagem que não abre mão de sua honra quando vê seu amor desmoronar, cometendo o harakiri. Lang enfatiza bem que, para o japonês, é impossível viver sem a sua honra, com a morte sendo a única alternativa para restaurá-la, enquanto que o europeu Olaf, ao abandonar O-Take-San grávida, casada e esperançosa de uma promessa a ser cumprida, jogava a sua honra no lixo com um simples dar de ombros.
O filme tem momentos de muitas plasticidade das imagens. A festa na casa de Tokuyama, onde vemos um lago com muitos barcos, é de grande beleza, num filme que prima muito pela decoração dos interiores e figurino. As cenas de O-Take-San na praia, com olhar perdido no horizonte, à espera do amado, são de uma melancolia muito tocante. Não é à toa que o nome de Lang foi pensado para a direção de “O Gabinete do Dr. Caligari”, mas o produtor Erich Pommer preferiu usar o diretor para a sequência de “As Aranhas”.
Dessa forma, “Harakiri” é um filme de Lang que exalta de uma certa forma a cultura oriental, mencionando o extremo do ritual do harakiri como uma prova da preocupação dos japoneses com a honra. Além disso, o filme de Lang tem grande plasticidade nas imagens, com preocupações em decorações, figurino, mas também com uma imagem de O-Take-San na praia, carregada de sentimentos de melancolia. Vale a pena ver o filme abaixo, com intertítulos em espanhol.