Dentro das análises dos filmes da fase alemã de Fritz Lang e, encerrando nossa maratona dos quatro filmes do Dr. Mabuse, vamos falar de “Os Mil Olhos do Dr. Mabuse” (“Die 1000 Augen des Dr. Mabuse”, 1960). Depois de dois filmes na década de 20 e um filme em 1933, o maligno personagem volta agora em plena década de 60, renovado e repaginado, interagindo com a tecnologia da época. Para podermos falar desse filme, vamos liberar os spoilers de sessenta anos.
O filme começa com o assassinato de um repórter que será investigado pelo Comissário Kras (interpretado por Gert Fröbe). As investigações levam ao Hotel Luxor, que tem toda uma ligação com uma série de crimes e assassinatos onde os envolvidos têm alguma relação com o Hotel. Nesse hotel, vive um homem que herdou as práticas do Dr. Mabuse, usando circuitos internos de câmeras e TV para controlar todo o Hotel, com uma rede de capangas o ajudando. O Comissário Kras investiga três suspeitos que podem ter alguma relação com todos esses crimes: uma jovem suicida, Marion Mehil (interpretada por Dawn Addams), Cornelius, um cego vidente (interpretado por Wolfgang Preiss), e Hyeronimous Mistelzweig, um corretor de seguros (interpretado por Werner Peters). Temos, ainda, o americano Henry Travers (interpretado por Peter van Eyck), um milionário dono de usinas nucleares, que se apaixona por Mehil. Dentre as investigações de Kras, vemos tentativas de assassinato ao Comissário, explosões de usinas nucleares, e muito uso da tecnologia eletrônica da época para a espionagem, ocorrendo um verdadeiro jogo de gato e rato em torno desses três suspeitos principais, com direito a plot twists aqui e ali, até que descobrimos o herdeiro de Mabuse, que é Cornelius, mas também o médico particular de Marion, ou seja, mais uma vez a questão dos disfarces de Mabuse, que acaba morrendo depois que seu carro cai de uma ponte num rio durante uma perseguição policial.
Esse é um filme que retoma o espírito dos filmes anteriores, com uma trama policial intrincada, onde a quadrilha do gênio do crime age de forma mais oculta. Somente um dos capangas de Mabuse se revela desde o início do filme. Os outros são personagens secundários do filme que somente se revelam capangas nos momentos derradeiros da película.
É curioso ver como esse Mabuse da década de 60 lança mão de toda a tecnologia da época para cometer seus crimes. Ele usa um hotel com toda uma parafernália eletrônica para controlar todo o ambiente, além de usar uma arma de última geração criada pelo exército americano para cometer seus assassinatos. Mabuse também tem novos alvos nesses tempos modernos: as usinas nucleares, capazes de estragos muito mais apocalípticos. Ou seja, se a tecnologia traz possibilidades de muitos progressos, o mau uso delas também traz muitas possibilidades de destruição. O filme também deixa claro que os crimes de Mabuse caíram no esquecimento em virtude de um motivo muito pertinente: os horrores do nazismo, que foram muito maiores que os tentáculos de Mabuse.
Falemos dos personagens principais. Quanto ao chefe policial que investiga o caso, o Comissário Kras, este não tem o estilo fanfarrão de Lohman em “O Testamento do Dr. Mabuse”, embora não tenha uma lisura total de um Wenck. Talvez ele esteja numa espécie de meio termo entre os outros policiais das outras películas de Mabuse. A parte ocultista e expressionista ficou por conta de Cornelius que, antes de se revelar Mabuse, impressionava por seus dons premonitórios e seus hipnotizantes olhos brancos. Já Mistelzweig se destaca por sua inconveniência e Mehil, por seu passado misterioso, assumiu uma postura ambígua, transitando entre a vítima da quadrilha ou uma possível cúmplice. Talvez o personagem menos interessante seja justamente o mocinho do filme, Travers, que serve como uma espécie de escada para toda a trama.
Um detalhe sobre o roteiro. Parece ingênuo um chefe do crime tão inteligente concentrar todas as suas atuações num hotel, o que supostamente facilitaria as investigações da polícia. Mas o hotel do filme tem toda uma simbologia, pois foi erguido pelos nazistas em 1944 e construído de forma a facilitar as atividades de espionagem. Mabuse então usaria esse aparato perfeito para as suas atividades criminosas. Como “O Testamento do Dr. Mabuse” foi proibido pelos nazistas na Alemanha em 1933, agora em 1960, Lang tem a liberdade total de associar seu chefe do crime ao nazismo e ele não perde a possibilidade.
Dessa forma, “Os Mil Olhos do Dr. Mabuse” conseguem dar um desfecho digno a essa série de quatro filmes sobre o gênio do crime, sobretudo pelo uso de uma trama que deu certo nos outros três filmes, acrescida de uma modernização tecnológica e de uma herança nazista (realmente hotéis do tipo que vemos no filme, com aparatos de espionagem, foram construídos pelos nazistas. É incrível como alguns elementos permeiam esses quatro filmes de épocas diferentes, sobretudo o ocultista e expressionista, constituindo-se numa espécie de personagem à parte. E não deixe de ver o filme na íntegra abaixo, legendado em português.