Voltando às nossas análises sobre filmes de Fritz Lang em sua fase alemã, vamos falar de “M, O Vampiro de Düsseldorf” (“M, Eine Stadt Sucht einen Mörder”, 1931). Essa película deu à Lang a sua maturidade política, pois ele chegou a ter boicotadas as gravações de seu filme, pois houve um boato de que ele estaria fazendo um filme contra o governo. Quando ele explicou que estava fazendo “apenas” um filme sobre um assassino de crianças, ele voltou a ter autorização para fazer as gravações. Para podermos analisar esse filme, vamos ter que liberar os spoilers de oitenta e nove anos.
O filme, como já foi dito acima, é sobre um serial killer de crianças, que inferniza a cidade de Düsseldorf. Os atos do assassino incomodam os pais, incomoda a polícia, que precisa fazer incursões que incomodam os moradores da cidade, incomoda o crime organizado, que vê uma presença maior da polícia nas ruas atrapalhando as suas atividades. Há um clima de desconfiança no ar e qualquer um que tome uma atitude minimamente suspeita já é acusado pela população de ser o serial killer. Ou seja, os nervos estão à flor da pele na cidade. É muito curioso perceber todas as estratégias altamente metódicas que a polícia toma para capturar o assassino que, entretanto, são completamente em vão. Já o crime organizado, também muito metódico, tem mais sucesso ao catalogar todos os mendigos da cidade numa rede de informações que acaba chegando ao assassino Hans Beckert (interpretado por Peter Lorre, que depois participaria, no cinema americano, de “Casablanca”). Beckert estava com uma menina quando ele compra um balão com um mendigo cego que nota que o assassino assovia um tema de Edvard Grieg, “Na Gruta do Rei da Montanha” (“M” será o primeiro filme falado de Lang e ele já usa o som com uma importância pronunciada na trama). O mendigo cego, após o assassinato da menina, escuta mais uma vez o assovio e pede para um rapaz segui-lo. Ele vai colocar a letra M (de “Mörder”, assassino) em sua mão e irá encostar sua mão no ombro de Beckert, deixando-o marcado, para uma mais fácil identificação. Beckert notará que está sendo perseguido pelos criminosos da cidade e se esconde num prédio de escritórios que é invadido pelo crime organizado da cidade para aprisioná-lo. Beckert será então levado a julgamento pelo crime organizado da cidade, assistido pela população, que exige a sua cabeça. Beckert diz que comete seus assassinatos orientado por uma espécie de desejo, de voz interior. Seu “advogado de defesa exige que Beckert seja entregue para a justiça, mas a massa quer que ele seja executado ali mesmo, o que acabaria acontecendo se a polícia não conseguisse descobrir o local do julgamento. O filme termina com o Estado julgando Beckert e as mães das crianças assassinadas lamentando que, qualquer que seja o veredicto, isso não trará as crianças de volta. Ou seja, como diz o próprio Lang “A morte não é uma solução”.
O filme é muito inquietante, pois o clima de perseguição ao assassino nos lembra um pouco o antissemitismo. Até a marca M lembra as estrelas de Davi amarelas que os nazistas colocavam nos judeus para marcá-los, mesmo que o filme tenha sido feito em 1931, dois anos antes dos nazistas assumirem o poder. Sabemos que o antissemitismo na Europa não é uma exclusividade nazista e ele já acontecia muito antes de Hitler chegar à chancelaria. Inquietante, também, são as afirmações de Beckert que atribuem seu impulso assassino a algo que o manipula, que o instiga a matar. Seria uma alusão de Lang aos tempos violentos da Republica de Weimar? Uma república combalida, em 1931, pela crise de 1929, e que mostrava todo um exército de mendigos à serviço do crime na caça ao assassino.
Fica uma curiosidade aqui. O fanfarrão inspetor Lohmann, que vemos em “O Testamento do Dr. Mabuse”, já dava o ar de sua graça em “M”, também interpretado por Otto Wernicke. Será Lohmann que irá pressionar um dos punguistas que invadiram o prédio de departamentos e vai conseguir a informação de onde Beckert está.
Dessa forma, “M, O Vampiro de Düsseldorf” é um filme de Lang que mais uma vez dialoga com os dias turbulentos de Weimar. Uma população que está com os nervos à flor da pele, em tempos de severas dificuldades econômicas e uma referência ao antissemitismo. Vale a pena dar uma olhada na película completa legendada em português abaixo.