Dentre as nossas análises de filmes de Fritz Lang, vamos para a única película que ele filmou na França, depois de ter fugido da Alemanha Nazista. “Coração Vadio” (“Liliom”, 1934), é um filme estranho, para dizer o mínimo, pois ele começa com uma pegada muito realista para terminar com um lúdico de amargo gosto real. Para podermos falar desse filme, vamos precisar liberar os spoilers de oitenta e seis anos.
Vemos aqui a trajetória de Liliom (interpretado por um jovem e vigoroso Charles Boyer), cujo trabalho é atrair clientes para o carrossel de um parque de diversões. Um dia, ele começa a flertar com uma jovem, Julie (interpretada por Madeleine Ozeray), despertando ciúmes na patroa de Liliom, a Madame Moscat (interpretada por Florelle). Liliom perde seu emprego e começa a viver com Julie e a tia da moça. Enquanto Julie faz as tarefas pesadas da casa e trabalha para sustentá-la, Liliom leva uma vida malandra e boêmia, maltratando a moça a agredindo-a. Ele está perto de desistir de Julie quando descobre que ela está grávida e fica muito feliz com a possibilidade de ter um filho. Só que, agora, ele vai ter que arrumar dinheiro de algum jeito. E aceita a sugestão de um amigo para praticar um assalto. Mas o plano vai por água abaixo e, perseguido pela polícia, Liliom se mata com uma facada no peito. Quando chega ao céu, dá de cara com o comissário de polícia que constantemente o chamava para a delegacia na Terra. Para os pobres, não há a presença de Deus, somente os rigores da justiça, assim como na Terra. Liliom passará por um interrogatório para se justificar por que agredia a sua esposa e por que se suicidou quando ela mais precisava dele. Ficou claro que Liliom se arrependeu do que fez, mas mesmo assim ele não foi poupado de ficar dezesseis anos no purgatório para depois ter direito a um dia na Terra para falar com sua filha. O tempo passou e um envelhecido Liliom foi para a Terra e encontrou com sua filha (também interpretada por Madeleine Ozeray). A moça diz que não conheceu o pai. Sua mãe diz que ele é um excelente pai e foi para os Estados Unidos. Liliom diz a ela a verdade, falando que seu pai era ruim e agredia sua mãe. A menina, indignada, se afasta de Liliom. Enquanto vemos nosso protagonista agindo na Terra, um anjo e um demônio jogam pesos numa espécie de balança celestial onde o lado que pender mais definirá o destino de Lilion (céu ou inferno). À medida que a filha dele ficava mais irada com suas palavras, o peso para o inferno aumentava. Tudo levava a crer que nosso Liliom iria para o inferno, mas, no último momento, a filha de Liliom pergunta à sua mãe Julie se seu pau batia nela. A mãe diz que sim, mas que, mesmo assim, o amava. Então, com esse argumento meio rodriguiano de que mulher gosta de apanhar, a balança pendeu para o lado do bem e nosso Liliom, que descia o cacete em uma moça inocente e indefesa, vai para o céu.
Muito estranho aos nossos olhos, não? Bom, nosso personagem principal não tinha apenas defeitos, mas o argumento que definiu se ele ia para o céu ou para o inferno é que não cola muito hoje. De qualquer forma, a mensagem principal do filme é que os menos favorecidos nunca têm qualquer tipo de chance ou privilégio, seja neste mundo , seja no mundo celestial. A eles somente restam os rigores da lei. Ou seja, temos uma amarga realidade de periferias na grande parte do; filme para depois entrarmos em uma história mais lúdica de um celestial eivado de realidades terrenas amargas. Realmente o machismo latente de Liliom e sua covardia de se suicidar para resolver todos os problemas foram punidos com os dezesseis anos de purgatório, mas ele teve outra chance de se redimir, ficando um dia na Terra com sua filha. E mesmo assim ele deu com os pés nas mãos, não aproveitando a chance. O que o salvou foi a candura pura de sua esposa, que o amava mesmo com os vacilos da parte dele, que a agredia sistematicamente. Julie sim, merece uma passagem ao paraíso. Mas se seu comportamento rodriguiano de amar mesmo apanhando salva Liliom em 1934, dificilmente o faria em 2020. Pelo menos, foi muito legal ver a atuação de Charles Boyer, todo vivaz e vibrante, em oposição total ao homem calado e amuado de “Jardim de Alah”, em sua fase americana, com Marlene Dietrich. E nunca devemos nos esquecer que foi Boyer que inspirou o gambá Pepe, de Looney Tunes, que sempre agarrava a gatinha que ficava com uma mancha acidental de tinta branca em suas costas, não aguentando o cheiro do gambá.
Dessa forma, “Coração Vadio” é um filme estranho. É dito que ele foi um fracasso comercial e foi muito mutilado pelos produtores que extraíram as partes mais “germânicas” do filme, com medo da não aceitação do público francês. Ainda assim, podemos testemunhar o que foi a parceria Fritz Lang – Erich Pommer na França. Infelizmente, não temos o filme para exibir aqui. Fiquem com o trecho da morte de Liliom.