Dentre os filmes da fase americana de Fritz Lang, falemos de sua primeira película nos Estados Unidos. “Fúria” (“Fury”, 1936) foi um cartão de visitas arrebatador do diretor austríaco em terras americanas. Lang mostra com uma grande crueza até onde o ser humano pode ser venal e destrutivo. Um filme que faz a gente olhar para dentro de si e se questionar do papel que assumimos perante as pessoas e o mundo. Para podermos falar dessa película, vamos liberar os spoilers de oitenta e quatro anos.
O plot gira em torno de Joe Wilson (interpretado por um jovial e eternamente magistral Spencer Tracy). Ele está planejando seu casamento com a doce Katherine Grant (interpretada por Sylvia Sidney), mas o jovem casal ainda está juntando dinheiro e a moça vai ganhar a vida em outra cidade. Joe vai levando a sua vida e tudo vai de vento em popa. Até o dia em que ele consegue comprar um carro e vai visitar sua noiva na cidade em que ela está. Entretanto, durante a viagem, ele é parado pela polícia numa cidade vizinha e é levado para a delegacia como suspeito de sequestrar uma menina, já quee algumas evidências apontam nessa direção. A noticia da prisão de Joe corre a cidade e a população, numa rede de fofocas (ou fake news, só para atualizarmos o tema), já decide que Joe é culpado e deve ser imediatamente punido. Os moradores da cidade, enfurecidos, decidem atacar a delegacia, que pede reforços militares que são barrados por políticos estaduais preocupados com o resultado das eleições. Katherine sabe de toda a confusão na cidade vizinha e, desesperada, vai a pé até lá. Assim que ela chega, já encontra a delegacia em chamas com Joe dentro, e desmaia. Joe consegue fugir da delegacia sem ser visto e deixa de ser o homem doce e alegre para se tornar amargo, rancoroso e com desejo de vingança. O resultado da investigação inocenta Joe e, como ele é dado como morto, vinte e dois moradores são acusados de assassinato. E aí a coisa vira. Os moradores da cidade assistem ao julgamento torcendo pelos seus, mas o promotor está ávido por condenar os acusados. Depois de conseguir imagens filmadas dos acusados incendiando a delegacia, a defesa argumenta que não há um corpo. Joe, que escuta o julgamento no rádio, manda uma carta com sua aliança derretida para o juiz, forjando uma evidência de seus restos mortais. Mas Katherine percebe que a carta tinha um erro ortográfico que somente Joe cometia. Revoltada, ela pressiona seus dois irmãos que sabem que Joe está vivo. A moça os seguirá e descobrirá Joe, que está transtornado e tomado pelo ódio. Katherine diz que, se os acusados forem condenados à morte, Joe terá que andar o resto de sua vida às escondidas e não poderá se casar com ela. Ainda, Katherine diz que o que Joe sofreu na prisão por alguns momentos, muitas pessoas estão sofrendo por muito tempo, pois o julgamento é um processo demorado. Joe sai revoltado para a rua e anda pela noite, sendo assombrado pela sua consciência, vendo imagens dos moradores da cidade em sofrimento, ao bom estilo das alucinações e do claro/escuro tão caro à Lang. O filme termina com o veredicto sendo dado pelo juiz e Joe entrando no tribunal, alegando que quer ficar em paz consigo mesmo e que aceita a punição da justiça, com a esperança de poder reconstruir sua vida um dia com Katherine, que lhe dá um beijo apaixonado.
Esse realmente é um filmaço de Lang. Embora haja um happy end, vemos aqui uma leitura altamente pessimista da alma humana tanto na situação coletiva quanto na individual, mostrando as diferentes manifestações da fúria em si. O pior do ser humano numa situação coletiva se manifesta nos pré-julgamentos e na propagação de falsas verdades, mostrando que o fenômeno nocivo das chamadas fake news é muito mais antigo do que parece. E aí, a turba, enfurecida, acaba se tornando uma massa humana de 100% de emoção e 0% de razão, agindo de forma muito selvagem e inconsequente. Tanto que, durante o julgamento, muitos moradores simplesmente caíam em desespero quando perceberam o barbarismo das ações das quais tomaram parte, como se a fúria coletiva despertasse os instintos mais selvagens do ser humano e ele regredisse a um estado mais ligado à natureza do que à cultura. Mas a fúria de um ser individual também é radiografada no filme. E aí, muitas palmas para esse grande ator que é Spencer Tracy, que tem uma característica toda especial: Tracy, juntamente com Tom Hanks, são os dois únicos atores de Hollywood a ganhar o Oscar de Melhor Ator por dois anos consecutivos. E sua atuação aqui confirma bem isso. No inicio do filme, vemos um Joe doce e amável. Mas o seu quase linchamento o torna uma pessoa rancorosa, cheia de ódio e sede por vingança, o que deixa surpresos seus irmãos e sua noiva. Será o acerto de contas com sua consciência (o momento de herança expressionista do filme) que fará com que Joe decida se revelar vivo perante o tribunal. Se Spencer Tracy deu um show nesse filme, não podemos nos esquecer da fofíssima Sylvia Sidney. Se ela parece frágil e doce, ela tem também muita fibra nos momentos certos, seja literalmente correndo de uma cidade para outra, seja depondo no julgamento de forma firme, seja sendo igualmente firme ao perceber o caminho de revanchismo que Joe tomava. Ou seja, é esse misto de doçura, fragilidade e firmeza que faz a interpretação de Sidney tão especial. Não é à toa que ela trabalhou em três filmes de Frtz Lang nos Estados Unidos.
Dessa forma, “Fúria” foi o grande cartão de visitas de Fritz Lang para o cinema americano. Sua visão realista e pessimista do comportamento humano, seja em nível coletivo, seja em nível individual, pode ser vista como um personagem à parte na película, que também mostra a herança de seus dias expressionistas na Alemanha, com direito ao claro/escuro e às alucinações. Um programa imperdível. Infelizmente, esse filme está disponível apenas no site cinemalivre.net, onde você precisa pagar uma pequena quantia para ter acesso a muitos filmes de diretores consagrados. Vale a pena dar uma conferida. E fique agora com o trailer abaixo.