A seção Batata Movies, depois de um breve hiato, está de volta para falar dos indicados ao Oscar deste ano de 2021. Infelizmente, vivemos em tempos complicados e nem sempre vamos poder ter acesso a todos os filmes. Mas a ideia é poder falar do máximo de filmes possíveis aqui. E vamos começar com uma produção disponível na Netflix. “Relatos do Mundo” (“News Of The World”) traz o astro Tom Hanks e concorre a quatro estatuetas (Melhor Design de Produção, Melhor Som, Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora Original). Para podermos falar sobre o filme aqui, vamos precisar lançar mão dos spoilers.
A história fala do capitão Kidd (interpretado por Hanks), um veterano da Guerra Civil Americana que era um tipógrafo e perdeu tudo com a guerra. Com isso, ele decide ganhar a vida viajando de cidade em cidade para ler as notícias de jornal para as pessoas. Um belo dia, ele encontra um homem negro enforcado e, com ele, uma menina lourinha que falava o idioma indígena Kiowa. Kidd analisa os documentos dela e percebe que a mocinha é de origem alemã, tendo tios a uma grande distância dali. O nome da garotinha é Johanna (interpretada por Helena Zengel) e Kidd decide fazer a longa viagem para levá-la para seus parentes. O grande problema é que ele vai passar por muitos perigos nessa viagem, o que vai fazer que os dois estreitem seus laços, à despeito da barreira linguística.
O filme aborda o estado de penúria dos Estados Unidos logo depois da Guerra Civil, enfocando especialmente o povo texano, que se sentia reprimido pelos yankees (ou azuis, como eram chamados no filme, em virtude do uniforme militar). As marcas da guerra ainda estavam muito recentes, e, se ainda há um ressentimento muito grande com relação a tudo isso hoje em pleno século vinte e um, imagine-se como não seria uns poucos anos depois de findada a guerra. Podemos ver todo esse ressentimento quando Dill lia notícias aos texanos de origem federal, onde a contestação era muito forte, e tudo isso sob os olhos de soldados yankees. Dill precisou ter um grande jogo de cintura, falando ao grande público prestes a explodir que a guerra realmente fez todos sofrerem bastante, sendo a voz que se solidarizava com o sofrimento coletivo.
Mas nem tudo é somente a dor do sofrimento. Por outro lado, vemos também todo um ódio contido nos mesmos texanos contra índios e negros e o surgimento de um comportamento muito autoritário, sobretudo num pequeno vilarejo controlado por uma espécie de ditador doméstico, que exigiu que Dill exaltasse seus grandes feitos perante a cidade. Mas nosso protagonista, acometido de um arroubo democrático com pouco espaço fértil para isso, decidiu colocar em votação as notícias que o público queria escutar, quase sendo morto por essa “provocação”. Aliás, esse é um filme que tem lá seus momentos de ação, mas somente como uma moldura para o relacionamento entre Dill e Johanna, a grande atração da película.
Dill, apesar de ser um contador de histórias, fazia questão que a menina esquecesse seu passado traumático (ela teve sua família alemã massacrada pelos índios e depois sua família índia massacrada pelos brancos) e olhasse para a frente, sem olhar para trás. Entretanto, a menina diz que, para seguir adiante, precisa-se primeiro olhar para trás. São realmente duas formas de se lidar com um passado violento, onde talvez a segunda seja a mais coerente, pois é muito difícil a gente encarar a nossa vida sem as experiências pregressas.
Dill era solitário, pois perdeu tudo na guerra, até a esposa, morta pela cólera. Mas ele sente que foi mais a praga da guerra que se abateu sobre ele, ratificando a ideia já citada de como o conflito deixa marcas em todos, inclusive em nosso protagonista. Por fim, ele descobre que pode criar um verdadeiro núcleo familiar com a menina, e que deixá-la com os tios foi um erro. Ele volta a tempo para corrigir isso e garantir o happy end nesse western de fim de século que na verdade se passa no sul dos Estados Unidos.
Hanks está fenomenal como sempre, mas a surpresa é a menina Helena Zengel, que falava e cantava em idioma indígena. A química entre os dois personagens foi perfeita, pois eles se uniram nas adversidades que a viagem trouxe.
Dessa forma, só lamento que “Relatos do Mundo” não tenha tido mais indicações. Uma indicação de Melhor Ator e Atriz Coadjuvante não seria nenhum exagero. As indicações para os Oscars técnicos correspondem, mas ficou um gostinho de quero mais pela beleza e teor cativante do filme.