Vamos continuar aqui a falar dos filmes que concorrem ao Oscar. E hoje vamos pegar um peixe bem graúdo, pois “Mank” concorre a dez estatuetas (Melhor Filme, Melhor Ator para Gary Oldman, Melhor Diretor para David Fincher, Melhor Atriz Coadjuvante para Amanda Seyfried, Melhor Som, Melhor Design de Produção, Melhor Fotografia, Melhor Maquiagem e Cabelo, Melhor Figurino, Melhor Trilha Sonora). Para podermos falar desse filme, disponível no Netflix, vamos precisar de spoilers.
A película fala da vida de Herman Mankiewicz (interpretado por Gary Oldman), o roteirista do clássico “Cidadão Kane”, de Orson Welles. Para quem não conhece “Cidadão Kane”, esse é considerado um dos clássicos do cinema, pois trabalhou de forma magistral a técnica cinematográfica, além de trabalhar um tema muito polêmico na época em que foi produzido (1941), que foi, de uma certa forma, satirizar e criticar a trajetória do magnata da comunicação e entretenimento William Randolph Hearst. Ou seja, era um projeto que, desde o seu início já estava fadado à perseguição e execração por parte do mainstream. Mank, como era conhecido Mankiewicz, era uma pessoa muito irreverente, possuidor de uma inteligente e fina ironia, além de ser acometido pelo alcoolismo. Roteirista da MGM, ele era contemporâneo de vários nomes conhecidos do cinema, como Louis B. Mayer, Irving Thalberg e Marion Davies, esposa de Hearst. E seu convívio com tais figuras seria a inspiração para escrever o roteiro de “Cidadão Kane”, que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro.
O filme mostra duas histórias paralelas. A primeira delas mostra o processo turbulento de escrita do roteiro de “Cidadão Kane”, onde Mank padecia de um acidente automobilístico, acamado com uma perna quebrada. Ele teve todo um staff à disposição para escrever sua história, cujo cronograma se atrasava mais por suas bebedeiras, o que rendia pressões de Orson Welles em cima dele. À medida que o roteiro saía e as pessoas mais próximas iam tendo contato com o manuscrito, elas alertavam Mank de que isso acabaria de vez com sua carreira. A resposta era sempre dada com irreverência.
A segunda história é um flashback, passado em 1934, que mostra um Mank mais jovem e já bêbado como roteirista da MGM, convivendo com as pessoas do meio. Podemos ver figurinhas carimbadas do cinema e suas virtudes e defeitos. Um Louis B. Mayer (interpretado por Arliss Howard) muito falso, um Irving Thalberg (interpretado por Ferdinand Kingsley) sem escrúpulos, um William Hearst (interpretado por Charles Dance) aristocrático, uma Marion Davies (interpretada por Amanda Seyfried) muito simpática e doce. O filme mostra muito quem era quem naqueles tempos de crise provocados pela depressão, com toda essa elite cinematográfica apoiando o candidato republicano ao governo e nosso Mank, com sua irreverência e língua ferina remando contra essa maré, o que rendia olhares tortos por parte de uns, mas a simpatia de Hearst, que gostava de ter Mank em seus eventos sociais, muito mais pela sua retórica do que por qualquer outra coisa. Foi também notável o relacionamento de Mank com Davies, vista como uma espécie de bibelô de Hearst por aquela sociedade, mas sendo escutada por Mank em suas ideias e pensamentos. Mal saberia ela que seria retratada em “Cidadão Kane” de uma forma pouco positiva, pois Mank a colocou como uma peça de coleção do sombrio palácio de Hearst, metaforizado em Charles Foster Kane, e condenada a uma vida de ócio onde montava quebra-cabeças diariamente. Entretanto, Davies não ficou revoltada com Mank e isso não abalou a amizade dos dois.
O clímax do filme foi um jantar à fantasia de Hearst, onde Mank, totalmente bêbado, fala aos convidados um roteiro sobre um magnata das comunicações e inspirado em Don Quixote de La Mancha, claramente satirizando Hearst, atirando para todos os lados sem dó nem piedade, será aí que Mayer deixará a sua falsidade de lado e irá dizer que metade do salário de Mank é pago por Hearst o único que sabe a parábola do macaco do realejo, que Mank perguntava a todos durante o filme: o macaco recebe tudo do dono do realejo, mas é manipulado por ele.
O filme tem atores com boas atuações. Charles Dance fez um ótimo Hearst, inabalável em seu comportamento aristocrático. Seyfried faz jus à indicação para Atriz Coadjuvante, pois as conversas de Davies com Mank foram um momento delicioso do filme, não se deixando abalar ao contracenar com o medalhão Oldman. Tom Burke fez um Orson Welles fantástico (parece que o homem ressuscitou nas telas). Mas o filme realmente é de Gary Oldman, que mais uma vez colocou todo mundo em seu bolso, fazendo um Mank com mais defeitos que virtudes, mas ainda assim despertando demais a simpatia por seu forte carisma. Se ganhar a estatueta de Melhor Ator, será merecido.
Dessa forma, “Mank” é mais um daqueles filmes sobre o cinema e sua história que se torna uma referência obrigatória para os cinéfilos. É uma película que necessita de muita atenção do espectador, por estar muito focada em seus diálogos, mas temos uma boa caracterização de época, figurinos e um delicioso preto e branco que a cor no cinema jamais enterrou de vez. E, melhor de tudo, tem no Netflix.