Dando sequência às nossas análises de filmes concorrentes ao Oscar 2021, vamos falar hoje de “A Voz Suprema do Blues” (“Ma Rainey’s Black Bottom”), que concorre a cinco estatuetas (Melhor Atriz para Viola Davis, Melhor Ator para Chadwick Boseman, Melhor Figurino, Melhor Design de Produção, Melhor Maquigem e Cabelo), além de ter ganho o Globo de Ouro para Melhor Ator de Drama, para Chadwick Boseman. Para que possamos analisar melhor o filme, vamos lançar mão de spoilers aqui.
Vemos aqui a história de Ma (interpretada por Viola Davis), uma grande cantora de blues e um dia de gravação de um disco seu com sua banda. Ma, por ser uma estrela, sabe muito bem se impor numa sociedade altamente racista e é muito exigente com tudo, para desespero de seu empresário e do dono da gravadora, homens brancos que, segundo a cantora, querem aprisionar a sua música numa caixa para ganhar dinheiro. Ma tem muita consciência de que, se ela não dá mais dinheiro, será tratada com o racismo de sempre, que todos conhecemos. Assim, enquanto está na crista da onda, é ela quem dá as cartas, sendo bem agressiva, pois o fantasma do passado do racismo está bem ali. Esse fantasma também assombra Levee, o jovem trompetista da banda (interpretado magistralmente por Chadwick Boseman), que não aceita os conselhos dos músicos mais antigos da banda, querendo trilhar seu próprio caminho ao jeito que quiser. Seu grande fantasma foi, aos oito anos, ter visto a sua mãe ser estuprada por homens brancos, pois seu pai conseguiu juntar dinheiro e comprar uns terrenos que pertenciam aos brancos. Ele pegou uma faca e conseguiu, mesmo criança, ferir alguns deles antes de ser ferido seriamente, o que levou ao fim do estupro. Seu pai abandonou as terras e levou sua família para outro lugar, sumindo em seguida. Ele voltou e matou alguns brancos antes de ser enforcado. Tal vida pregressa fez com que ele se tornasse muito agressivo em alguns momentos, sendo violento com o membro religioso da banda, numa total descrença em Deus em virtude de sua infância violenta, e inclusive matando o pianista da banda por ter pisado em seu sapato sem querer, depois do empresário branco negar a gravação de suas composições. Ou seja, a agressividade de Levee e de Ma é usada como uma espécie de defesa contra a sociedade racista, com Ma canalizando isso numa direção produtiva e obtendo o que quer dos brancos, mas com Levee, por ser mais jovem, não sabendo fazer essa canalização com eficiência, respondendo à sua volta de uma forma muito desproporcional e agressiva. É claro que uma hora, Ma e Levee entrariam em conflito, o que provocou a demissão sumária deste, caindo em desgraça em seguida com a negação da gravação de suas músicas e com o homicídio.
O filme começa num tom descontraído e divertido, onde a interação entre os membros da banda cria esse clima. Mas, com o tempo, ele se torna tenso, tanto pela agressividade de Ma quanto pelo temperamento descontrolado de Levee, tendo um desfecho trágico e triste, manifesto no choro de Ma, que percebe que sua época e reinado estão acabando.
Davis e Boseman merecem demais o prêmio de melhor atriz e ator. Somente 25% dos atores de Hollywood são negros. Assim, quem alcança o estrelato acaba sendo muito competente no que faz como podemos ver aqui. Davis conseguia misturar agressividade com mortificação, esta última ao falar da condição do negro na sociedade americana e como os empresários brancos a viam, ou seja, como uma máquina de fazer dinheiro que poderia ser descartável a qualquer momento. Mortificação também ao perceber que seu sucesso teria um fim um dia. Já Boseman está muito magro e diferente, provavelmente por causa da doença que o vitimou. Ele conseguia fazer uma mistura de irreverência com explosões paroxistas de violência, tanto que o grande momento do filme foi Levee falando do estupro da mãe e da morte do pai. A dor saltava de seus olhos, juntamente com as lágrimas.
Dessa forma, “A Voz Suprema do Blues” é mais um filmão que concorre ao Oscar e confesso que vou torcer muito por Davis e Boseman. Seria uma premiação muito merecida.