Dando sequência às nossas análises de filmes que concorrem ao Oscar 2021, vamos hoje falar de dois curtas que estão no Netflix: “Uma Canção Para Latasha” e “Se Algo Acontecer, Te Amo”. Como sempre, vamos precisar de spoilers.
O primeiro curta, “Uma Canção Para Latasha” nos fala do assassinato de uma menina afroamericana de nome Latasha que aconteceu no início da década de 90 e que foi um dos motivadores da violenta convulsão social que aconteceu em Los Angeles naquela época. Ela foi a uma pequena loja de conveniência comprar um suco de laranja que não valia nem dois dólares e foi assassinada com um tiro na cabeça pela dona da loja, que pensava que a menina estava roubando. Latasha foi assassinada com os dois dólares na mão para poder pagar o suco. A amiga de Latasha já tinha estado nessa loja antes e só não foi morta com uma barra de chocolate na mão pela mesma mulher, pois a mãe dela apareceu com a nota fiscal do chocolate pago. E qual foi a punição da assassina? Horas de serviços comunitários e uma multa em dinheiro, não ficando um dia sequer na cadeia. A tragédia de Latasha se repetia em sua família, pois sua mãe já havia sido morta de forma violenta. O curta é centrado em torno dessa amiga de Latasha, que falou dos sonhos que as duas nutriam para o futuro, assim como a dura realidade de ser afrodescendente nos Estados Unidos, em dolorosos dezenove minutos de duração.
O segundo curta, “Se Algo Acontecer, Te Amo”, é uma animação onde vemos um casal que perdeu a alegria de viver depois que sua filha foi assassinada por um serial killer na escola. Os dois têm o seu estado de espírito manifesto em negros espectros que brigam, mas que também têm ternas lembranças e emoções com relação à filha morta. No início, não sabemos o motivo da tristeza dos dois e vemos apenas aquelas sombras se desentendendo e brigando. Mas, num flashback, as sombras relembram a vida da filha, quando o filme se torna mais alegre, apenas sendo o contraponto ao massacre escolar. No fim, ficam as boas lembranças, com o espectro da filha unindo os espectros dos pais, que tendiam cada vez mais a se separar, algo muito terno e tocante, numa montanha russa de sentimentos que dura apenas doze minutos.
Dois curtas, mostrando o mesmo tema com variações: a morte violenta numa sociedade estadunidense completamente descentrada e enlouquecida. No primeiro caso, a morte violenta é provocada pelo racismo e intolerância. No segundo caso, a morte é provocada pelo belicismo e também pela intolerância. Monstros criados por uma sociedade que se arma de ressentimentos até os dentes, cujos monstros atacam a própria sociedade que os cria, numa espécie de insana autofagia. Dois temas chocantes, abordados de formas diferentes, pois em “Latasha” temos a eloquência de sua amiga, que dá voz à menina assassinada e à vida pregressa das duas, com todas as suas expectativas e sonhos, dando-nos o sentimento de todo um futuro perdido. Já no segundo curta, o silêncio chega a ser ensurdecedor, alimentando uma igual sensação de perda e de um futuro destruído. Pelo menos na animação, a lembrança da menina reúne um casal destroçado, num fio de esperança que brota em seu final. Já em “Latasha”, a sensação de desalento e impotência são muito grandes, ainda mais quando somos confrontados com toda a impunidade da situação.
Dessa forma, “Uma Canção Para Latasha” e “Se Algo Acontecer, Te Amo” são dois documentários fortes e obrigatórios que concorrem ao Oscar desse ano, com os dois falando do mesmo tema: a morte trágica numa sociedade violenta, só que com variações, indo desde o racismo até a insanidade do belicismo, com as duas histórias cimentadas pelo ódio e pela intolerância.