Dando sequência às análises dos filmes que concorrem ao Oscar nesse ano de 2021, falemos hoje de “Mulan”, uma produção que está na Disney +, que concorre a duas estatuetas: Melhores Efeitos Visuais e Melhor Figurino. Para podermos falar do filme, vamos precisar de spoilers.
O filme conta a história de Hua Mulan (interpretada por Yifei Liu), uma mocinha que vive numa aldeia do interior da China que deve ser preparada para honrar a família sendo uma boa esposa num casamento arranjado. Mas ela tem um “chi” que a torna muito apta para ser uma guerreira. Um povo estrangeiro invade o país, tornando-se uma ameaça para o Imperador (interpretado por Jet Li). E aí, todas as famílias da China teriam que fornecer um homem para fortalecer o exército. Na família de Mulan, havia somente filhas mulheres, com seu pai, um veterano de guerra e com problemas em sua perna, tendo que voltar à batalha, o que significaria a morte certa para ele. Mulan não aceita tal situação, pega emprestado a armadura, a espada do pai e a convocação militar, se disfarçando de homem da família para entrar no exército e salvar seu pai. O grande detalhe é que uma mulher no meio militar significaria uma enorme desonra para o exército, para a família e para o país. Assim, Mulan ficou com a difícil tarefa de enfrentar uma guerra e manter encoberta sua verdadeira identidade para não provocar uma vergonha de grandes proporções para todos.
Quando a gente vê um filme da Disney que é uma adaptação live action de uma animação já consagrada, as comparações são inevitáveis. Com relação ao live action, a gente consegue ver um ponto positivo e um ponto negativo. Com relação ao ponto negativo, no live action Mulan já tem um “chi” de nascença, sendo uma fora de série e muito melhor que seus colegas soldados do ponto de vista militar e das artes marciais. Na animação, Mulan é apenas uma garotinha que vai desenvolvendo suas habilidades no treinamento que ela recebe junto com seus colegas soldados do sexo masculino. O mérito de Mulan na animação é aguentar, enquanto mulher, o mesmo treinamento que os homens recebiam, dando um sentido maior para a mensagem de empoderamento feminino da história. Agora, o ponto positivo do live action com relação à animação, é que temos um filme muito mais adulto, onde os elementos infantis da animação foram retirados em boa parte. Um ou outro alívio cômico permaneceu na live action, mas a toada mais madura de filme de guerra prevalece, o que torna a releitura muito mais interessante.
O filme também trabalha, como já dissemos acima, a questão do empoderamento feminino. Apesar do chi atrapalhar um pouco nesse quesito, é bem interessante a interação entre Mulan e a “bruxa” Xianniang (interpretada por Gong Li). Usada como uma espécie de arma pelo povo invasor, tratada praticamente como um objeto, ninguém pode com Xianniang. Quando ela se confronta com Mulan, percebe que a menina também passa pelo mesmo preconceito que ela, e propõe uma aliança para as duas almejarem uma maior posição na sociedade machista em que vivem. Mas Mulan está muito empenhada em defender seu país e seu imperador, apesar de todo o preconceito contra as mulheres. Soa um pouco falso ver a moça sendo reaceita pelo seu superior, o Comandante Tung (interpretado por Donnie Yen, que trabalhou em “Rogue One”), e pelos seus colegas soldados tão facilmente, o que poderia separar Mulan de Xianniang, mas quando nossa protagonista diz que precisa da ajuda da bruxa, ela acaba ajudando-a, com as duas fazendo uma aliança na parte final do filme.
Ao final, Mulan é a grande heroína e recebe um convite do imperador para fazer parte do seu exército. Mas a moça declina do convite para pedir perdão à sua família por ter mentido, já que ela acha a família a instituição mais importante, além dela ter violado a verdade, uma das virtudes que está escrita na espada do pai. A reconciliação é feita (não podemos nos esquecer de dizer que a mãe de Mulan é interpretada por Rosalind Chao, que fez a Keiko, esposa de O’Brien em Jornada nas Estrelas DS9), com somente Mulan aceitando o convite do imperador posteriormente. Ou seja, é curioso perceber como Mulan, apesar de reprimida pela sociedade onde vive, não a renega e ainda respeita seus princípios. Caberá ao imperador, em toda a sua sabedoria de líder, abrir uma exceção à sua súdita e reconhecê-la como uma guerreira, já que seu “chi” a garante nisso. Mas confesso que ainda preferia ter visto ela conseguir sua virtude guerreira como fruto do seu próprio esforço, como visto na animação, algo que legitima muito mais o empoderamento feminino da menina.
Com relação às duas estatuetas a que “Mulan” concorre, os efeitos visuais da ave fênix que a persegue são marcantes, assim como as sequências de luta, com direito a se andar em telhados e paredes, sendo um concorrente de peso. Mas ainda acho que a premiação para figurino seria mais justa, pois as roupas estavam simplesmente deslumbrantes. E não seria nada demais uma indicação para design de produção.
Dessa forma, “Mulan” é mais uma produção da Disney que concorre ao Oscar, numa premiação técnica (efeitos visuais) e mais tradicional (figurino). A questão do “chi” no filme dá um overpower desnecessário para nossa protagonista. Mas temos um filme mais adulto, com boas sequências de guerra. Ainda, um filme simpático aos nossos olhos, quando mocinha e vilã fazem uma aliança em virtude do machismo da sociedade em que viviam. Mulan consegue seu espaço e status social, sem rechaçar de todo a tradição, que se concilia com a modernidade.