Depois de sua estreia em dezembro do ano passado, finalmente consegui ver “Mulher Maravilha 1984”. Infelizmente os dias difíceis pelos quais estamos passando tolheram um dos grandes prazeres da vida (pelo menos para a minha pessoa), que é estar numa sala de cinema para assistir a um filminho. Restou a mim ver os vídeos na internet que analisavam o filme com spoilers ou não e as opiniões até eram boas, mas com algumas ressalvas. Ficou a impressão de que a coisa não tinha sido totalmente satisfatória. Também pudera, a DC e a Warner metem os pés pelas mãos na hora de fazer seus filmes, é o que conta o senso comum para a gente nos últimos tempos. Pois bem. Finalmente tive acesso a “Mulher Maravilha 1984” e busquei assistir ao filme sem qualquer pré-julgamento, bem ao estilo do “vamos ver primeiro para a gente verificar depois se concordamos ou não com o que a galera achou”.
E qual foi a minha impressão? Foi a melhor possível. Eu simplesmente adorei o filme de cima a baixo! E por que isso? Porque ele foge ao convencional dos filmes de heróis: mocinhos contra bandidos, com os primeiros vencendo e os segundos sendo severamente punidos. “Mulher Maravilha 1984” é um filme de personagens bem humanizados e complexificados, com virtudes e defeitos, sejam os heróis, sejam os vilões. Creio que é necessária uma certa coragem para se fazer isso nesse gênero de filme, que tem um público muito exigente (há sempre a questão da comparação com os quadrinhos) e uma visão de mundo talvez um pouco mais polarizada entre bem e mal. Vamos conversar um pouco sobre isso, sempre lembrando que os spoilers estão liberados.
Mas, qual é o plot? A coisa gira em torno de uma espécie de artefato antigo que realiza os desejos das pessoas, mas em troca, acaba tomando algo delas. É um artefato um tanto amaldiçoado por deuses malignos que já destruíram culturas no passado. O objeto vai parar no instituto onde Diana Prince trabalha como antropóloga no ano de 1984 e é estudado por Barbara Minerva (interpretada por Kristen Wiig), uma pesquisadora que ninguém dá bola, sendo uma verdadeira outsider que se ressente demais com isso. Sem saber do perigo do artefato, Diana deseja a volta de Steve Trevor, o que acaba acontecendo, ao passo que Barbara quer ser tão poderosa e descolada quanto Diana, o que lhe dá superpoderes. Diana e Steve reengatam o relacionamento enquanto que Barbara fica muito popular em seu emprego. Entretanto, há outro personagem, Max Lord (interpretado por Pedro Pascal), que quer levar uma empresa de produção de petróleo adiante, mas os poços estão secos. Ele está com a corda no pescoço, mas não perde a pose, visitando o instituto de pesquisa de Diana e Barbara com a intenção de patrociná-lo, quando descobre o tal artefato e o rouba. Será aí que os problemas vão começar, pois ele deseja que ele mesmo se torne o artefato e começa a fazer os desejos de outras pessoas, sempre exigindo algo em troca, o que aumenta ainda mais o seu poder de influência entre as pessoas. Depois de uns estudos arqueológicos, Diana descobre que precisa deter os planos de Max de dominar o mundo, mas Barbara não vai querer perder sua influência popular sobre os seus. Cabe dizer aqui que a maldição do artefato somente é desfeita se as pessoas renunciarem a seus desejos. E nossa heroína vai passar por uma provação nisso, pois significa que ela deve também renunciar ao amor de Steve Trevor.
O roteiro do filme tem uma reflexão principal, onde as histórias dos personagens interagem e se apóiam: nem sempre tudo acontece em nossa vida de acordo com nossos desejos. E a gente não deve viver num mundo de ilusão e mentira por causa disso, encarando a realidade e a verdade de frente, se adaptando à vida como ela é da melhor forma possível, não se encucando se tudo o que almejamos não vem. Tal reflexão tira um peso danado de nossas costas e faz a gente levar a vida melhor, com menos espaço para as frustrações. Se todos no mundo acabassem tendo os seus desejos realizados facilmente, tudo seria um grande caos, pois o espaço do desejo de uma pessoa poderia violar o espaço do desejo do outro. Ao vivermos em sociedade, temos a nossa liberdade sim, mas esta liberdade tem um limite, que é a liberdade de outro indivíduo, algo que John Locke falava ao estabelecer as bases do liberalismo político lá no longínquo século XVIII, e que se materializa na famosa frase: “A Minha Liberdade Termina Aonde Começa A Sua”. Vemos, no filme, pessoas lidando com essa reflexão de formas diferentes. Diana, a heroína, resiste à ideia da perda de Steve Trevor, mas acaba se resignando e se desapegando do seu passado para ir em frente. Já Barbara não quer se desfazer de sua popularidade tão facilmente, tornando-se agressiva e violenta. O mesmo acontece com Max, que não quer se desvencilhar de sua busca por poder. Ambos tiveram uma vida pregressa muito sofrida, com Barbara sendo desprezada por meio mundo, assim como Max, que teve uma infância muito difícil. É nessa hora que me lembro de Chaplin em seu discurso do Grande Ditador: “Só os que não são amados e não naturais que odeiam”. Ou seja, a falta de amor que algumas pessoas sofrem acaba levando-as para o caminho do ódio. Tais palavras nos fazem refletir sobre o que é ser humano e como devemos tratar os que nos cercam. Cá para nós, trabalhar tais ideias num filme de super-herói é algo, no mínimo, ousado. Assim, esse é um filme onde não há o vilão, já que todos são vítimas de traumas do passado em maior ou menor grau. Ou seja, personagens humanos e complexos, com virtudes e defeitos. Toda essa conversa sempre me lembra de Dora, a personagem de Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”, que era fria e rude, passando por um processo de humanização ao longo do desenrolar do filme, até se redimir em seu final. Ou seja, um personagem nem 100% bom, nem 100% ruim. Os mocinhos totalmente bons e vilões totalmente ruins são uma marca de uma narrativa lá do cinema mudo, até que esses personagens começam a se tornar mais complexos, onde um dos primeiros exemplos foi Ricky, de “Casablanca”, um mocinho com toque um pouco canalha. Nem Darth Vader, o exemplo do mal por excelência, escapou desse processo de complexificação.
Talvez o grande vilão aqui seja as divindades maléficas que deram poder ao artefato que semeou discórdia e destruição. Mas não dá para punir algo tão abstrato. A única punição é deter os atos maléficos das mesmas, através da renúncia aos desejos e a aceitação da verdade, preconizados por Diana na sequência em que Max procura dominar o mundo e que se liga com o início do filme, onde uma jovem Diana escuta da mãe que ela trapaceou numa competição e que a verdade é o que mais importa, sobrepujando a mentira.
Nos pós-créditos, uma surpresa. Lynda Carter aparece como Asteria, a lendária amazona dona da armadura dourada que a Mulher Maravilha usa nesse filme. É impressionante como o tempo não parece passar para nossa eterna Mulher Maravilha lá da década de 70, vinda diretamente da Ilha do Paraíso.
Dessa forma, “Mulher Maravilha 1984” é um filme que pode até não corresponder aos anseios dos fãs de filmes de super-heróis, mas ainda assim traz uma bela reflexão sobre como devemos encarar a vida e aos outros que nos cercam. Jamais devemos deixar a frustração de projetos e ambições não concretizados nos abater e devemos levar a vida com mais suavidade, aceitando e se adaptando ao mundo à nossa volta, assim como devemos ser mais zelosos com outras pessoas, que também têm seus medos, inseguranças e frustrações.