Uma co-produção França, Argentina e Espanha paira em nossas telonas. “Eva Não Dorme” é um filme que busca desmistificar um mito. E quanto mais ele tanta fazê-lo, mais o mito fica forte. É a história de um corpo, muitas vezes amado e violado, que passou décadas a fio numa jornada de martírio até encontrar o seu merecido descanso eterno.
E qual é o corpo em questão? O leitor mais atento já deve ter verificado no título que se trata de Eva Perón, uma espécie de mãe dos menos favorecidos na Argentina e verdadeiro símbolo nacional. Até hoje, quando passeamos nas ruas de Buenos Aires, sentimos a sua presença muito forte e viva, nos prédios, bancas de jornal e em qualquer lugar que você vá, sobretudo no cemitério da Recoleta, ponto turístico e cuja sepultura é muito visitada. O filme é muito bem dividido em três atos. O primeiro mostra a morte de Evita, o funeral e o embalsamamento. Se num primeiro momento, há uma enorme morbidez envolvida, a coisa descamba posteriormente para um certo momento de placidez, sobretudo quando o médico responsável pela preservação do corpo da ex-primeira dama modela o rosto do cadáver a seu bel-prazer, retirando-lhe a tensão e restaurando parcialmente seu sorriso. O segundo ato mostra um coronel trasladando o corpo para a Europa, numa operação altamente secreta e que conta com a ajuda de um soldado novato que não sabe o que o caminhão em que estão transporta. Aqui há todo um duelo psicológico entre os dois personagens que atinge as raias do altamente angustiante. Já a terceira história avança ainda mais no tempo e mostra o sequestro de um general por um grupo guerrilheiro de esquerda que pretende repatriar o corpo de Evita, obrigando o general a dar informações de como recuperar o cadáver sob a pena de matar o militar. As tentativas mal sucedidas do general em obter informações também são muito tensas.
A escolha em se dividir o filme em três pequenas histórias fragmenta a narrativa, tirando o espectador de sua zona de conforto. Mas o filme tem uma característica ainda mais forte. Ele é altamente soturno e claustrofóbico, tal como se todo o sofrimento infringido ao cadáver jogasse uma espécie de maldição sobre todos. Os cenários das três histórias são apertados e escuros (uma sala onde ocorre o embalsamamento, o interior da caçamba de um caminhão, uma prisão num aparelho de um grupo guerrilheiro). As frontes dos personagens são fantasmagóricas, onde cada história (talvez com exceção da primeira) exibe uma tensão crescente que termina numa explosão de violência. A escuridão da tela se irmana com a escuridão da sala de cinema e traz para o espectador uma sensação de sufocamento. Não dá para ficar indiferente a essa película.
E os atores? Gael Garcia Bernal, o grande medalhão do elenco apenas “passeia” no início e fim do filme, aparecendo pouquíssimo e, talvez, demasiadamente jovem para interpretar um militar golpista. Daniel Fanego, o general Aramburu, sequestrado pelos guerrilheiros, surpreendeu colocando frieza num personagem que estava numa situação desesperadora à beira da morte. Mas o grande nome do filme, sem a menor sombra de dúvida, foi Denis Lavant, interpretando o coronel da segunda história. O homem arrasou com sua interpretação de um militar rude e grosseiro, um cara que dava medo, principalmente por sua face altamente rugosa e cavernosa que a iluminação muito débil hipervalorizou em tons de claro e escuro assustadores. Nem lembrava o personagem (ou personagens) que interpretou no filme super doido Holy Motors. Sua atuação já vale o preço do ingresso.
Assim, “Eva Não Dorme” é um filme que, apesar de falar um pouco do que aconteceu com o corpo de Evita, e de acabar reforçando o seu mito ao invés de desmistificá-lo (muitas imagens de arquivo e sons de seus discursos são usados), traz outros elementos, como a construção das três histórias num clima altamente angustiante e sufocante, e ainda traz a soberba atuação de Denis Lavant como a cereja do bolo. Vale a pena dar uma conferida neste.