Sempre considerei o cinema iraniano muito bom. Comecei a acompanhá-lo na segunda metade da década de 90, quando vi “O Balão Branco”, de Jafar Panahi. Aí, passei a ver muita coisa e o nosso circuitão passava muitos filmes. Mas alguns incautos passaram a dizer que o cinema iraniano era muito chato, etc., etc. E essa modinha de falar mal do cinema iraniano tirou essas películas de nossas telas. Confesso que amaldiçoo esses incautos até hoje. E assim, os filmes desse país muçulmano somente chegam para nós muito eventualmente. O último que chamou mais a atenção (embora outros tenham sido exibidos por aqui posteriormente) foi justamente “A Separação”, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, onde o sistema jurídico de um Estado Teocrático penetrava na vida privada das pessoas e embananava muitas coisas. Havia, também, uma relação mais baseada no choque entre classes sociais. Pois bem. Agora chega para nós o curioso “Sem Data, Sem Assinatura”, realizado em 2017 por Valid Jalilvand e confirmando, novamente, o poder e a qualidade desse cinema, numa arte de se contar histórias bem característica e que foge um pouco do que vemos no Ocidente.
A história do filme começa bem simples. Um médico legista, Kaveh Nariman (interpretado por Amir Aghaee) anda com seu carro numa estrada à noite e, depois de abrir caminho para um carro em alta velocidade que resvala em seu espelho retrovisor, ele se choca com uma moto com uma família que vai ao chão. A família tem um menino de oito anos que, ao cair no chão, bate com a cabeça, mas aparentemente está bem. Apesar dos insistentes pedidos do médico em levar o garoto ao hospital, a família segue caminho. No dia seguinte, o médico, que trabalha num hospital que também é uma espécie de IML, recebe a notícia de que um garoto de oito anos com o mesmo nome do menino chega morto e seu corpo está preparado para a autópsia. Paralisado pela notícia, por medo de ter sido a sua culpa a morte do menino, ele omite a história do acidente para os colegas que diagnosticam que o menino morreu por intoxicação alimentar, pois o pai, Moosa (interpretado por Navid Mohammadzadeh), comprou carcaça de frango estragado num abatedouro, pois era mais barato. Desesperado, o pai foi até o abatedouro e agrediu o funcionário que lhe vendeu a carcaça, indo preso. Tudo isso despertou em Nariman o desejo de exumar o filho de Moosa e verificar numa nova autópsia se foi de fato a intoxicação alimentar ou o acidente que matou o menino, pois isso poderia significar a libertação de Mossa, mas também a condenação do próprio Kaveh.
Esse filme tem uma série de características que estão presentes nos filmes iranianos. Em primeiro lugar, uma história que começa com um evento muito simples, mais que vai paulatinamente se complexificando de forma a não saturar o espectador com um enredo enfadonho, muito pelo contrário, ou seja, as histórias do cinema iraniano têm a versatilidade de prender a atenção do espectador com uma volúpia pouco vista em outros cinemas do mundo. A gente fica meio que enfeitiçado pelo que vemos e nem sentimos o tempo passar nessas exibições iranianas. Em segundo lugar, os filmes iranianos não costumam se dividir entre protagonistas e antagonistas. Não há vilões e mocinhos, apenas pessoas normais do dia a dia, com suas virtudes e defeitos, suas coragens e fraquezas, personagens que podem errar não porque querem, mas porque a vida leva a caminhos que podem fatalmente induzir a um erro. E pessoas que sofrem com seus erros. Isso já foi visto claramente em “A Separação”, por exemplo. Cabe dizer aqui que essa característica de se apresentar personagens comuns do dia a dia sem estabelecer-lhes um juízo de valor é que aproxima o cinema do Irã ao neorrealismo italiano.
Outra característica que liga “Sem Data, Sem Assinatura” ao filme “A Separação” é a visão de estratos sociais e suas relações. Vemos aqui a classe médica, de um estrato social mais alto e de hábitos burgueses ocidentalizados interagindo com uma camada social mais baixa, essa ainda vinculada às tradições religiosas de seu país. Aqui, vemos mais um diálogo maniqueísta entre a tradição e a modernidade, enchendo a última de virtudes em detrimento da primeira em seus defeitos. Mas, mais do que isso, vemos esse pensamento mais moderno ligado a uma classe social mais alta, enquanto que as tradições e conservadorismo são uma coisa ligada aos mais pobres. Tal pensamento é um pouco preocupante, pois ele é capaz de criar alguns rótulos e estereótipos que nem sempre funcionam de forma precisa e cartesiana. Pode-se, perfeitamente, existir pessoas de camadas sociais mais baixas sintonizadas com um pensamento mais moderno e ocidentalizado, enquanto que as camadas mais altas também podem ter membros que guardam uma tradição. O perigo de se criar tais estereótipos vai justamente na direção de você colocar os mais ricos como mais cultos e liberais, ao passo que os mais pobres seriam mais “fundamentalistas” e machistas.
Para ainda estabelecer mos uma comparação entre “A Separação” e “Sem Data, Sem Assinatura”, enquanto que o primeiro deixou o final em aberto, onde qualquer desfecho levaria a situações de ganhos e perdas, o segundo tem um desfecho, se bem que nas entrelinhas, permitindo que o espectador raciocine e ligue os pontos para se compreender o desfecho. Ou seja, é um filme que respeita a inteligência de quem o assiste, numa mostra de outra virtude desse maravilhoso cinema que é o iraniano.
Assim, “Sem Data, Sem Assinatura” é um programa altamente recomendável, em virtude da excelência do cinema do Irã. E, em segundo lugar, porque essa película confirma mais uma vez a qualidade do cinema desse país que é tão malvisto pelo Ocidente em função de interesses escusos, mas que abriga uma cultura cinematográfica poderosíssima. Vale a pena dar uma conferida.