Dando sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas, retornemos à série clássica no sexto episódio da primeira temporada, intitulado “O Inimigo Interior”.
Qual é o plot? Um grupo avançado está na superfície de um planeta, onde já está anoitecendo, quando o frio é insuportável (cento e vinte graus abaixo de zero). Um tripulante cai e se machuca, ficando com sua roupa coberta por um pó amarelo. Kirk ordena que ele se teletransporte para a nave. Quando isso acontece, o aparelho de teletransporte dá um problema e Scotty precisa usar energia auxiliar. O rapaz chega à nave e Scotty rastreia a roupa dele, percebendo que a poeira tem energia magnética. Logo depois, Kirk sobe. O teletransporte dá problema de novo e Kirk aparece meio zonzo. Scotty o ampara e deixa a máquina sozinha, que funciona mais uma vez, aparecendo outro Kirk, com a cara mais maligna. Ele vai à enfermaria e exige, de forma bem agressiva, conhaque sauriano a McCoy. E sai bebendo pelos corredores da nave. Entra nos aposentos da Ordenança Rand (sempre ela, coitada), mas a moça não está. O Kirk verdadeiro está em seus aposentos e recebe a visita de Spock que diz que McCoy pediu para o vulcano ver o capitão, pois este agiu de forma selvagem na engenharia. Kirk diz que provavelmente McCoy pregou uma peça em Spock.
Scotty chama Kirk e lhe comunica que o teletransporte quebrou depois de teletransportar um animal (na verdade um cachorrinho pequinês com antenas, um chifrezinho e um rabo parecido com de peixe). O animal se duplicou, com um sendo calmo e o outro agressivo. O problema é que a equipe ficou na superfície e o frio vai matar a todos (o leitor mais atento pode se perguntar: e as naves auxiliares? Pelo visto, elas ainda não existiam nesses primeiros episódios da primeira temporada).
Rand entra em seu aposento e é atacada pelo Kirk agressivo. Ela lhe arranha o rosto e consegue pedir que um tripulante fale por rádio com Spock. Ele procura o capitão que diz que esteve nos aposentos dele o tempo todo. Os dois vão falar com McCoy. Na enfermaria, Rand diz que foi atacada por Kirk e lhe arranhou o rosto. Kirk mostra a Rand que não tem arranhão nenhum no rosto. Mas Rand não acredita e diz que o outro tripulante também o viu. Fica um detalhe aqui: Rand diz a Kirk que não queria lhe causar problemas, dando a entender que não ia falar nada. Mais um elemento datado daquela época, como se atacar uma mulher não pudesse ser divulgado para não se prejudicar o varão. Algo visto de forma extremamente lamentável hoje, repugnante até. O detalhe é que o tripulante que também foi atacado pelo Kirk agressivo está na enfermaria e confirma o ataque de Kirk. Spock dispensa a ordenança e diz que só há uma explicação: que há um impostor a bordo.
Kirk, com o cachorrinho no colo, diz a Scotty que é necessário consertar o teletransporte, caso contrário, todo o grupo avançado morrerá congelado. Mas KIrk começa a dar sinais de indecisão ao ordenar que a tripulação o cace com phasers em tonteio. Ele diz que vai fazer um comunicado à tripulação contando o ocorrido e Spock diz que ele não deve fazer isso, pois um capitão não pode mostrar vulnerabilidades à tripulação. Outro sintoma macho alfa da década de 60 nesse episódio. A verdade é que a parte de liderança e capacidade de decisão de Kirk estão na sua versão má. E Kirk se ressente da falta delas.
Kirk comunica à tripulação que há um impostor na nave e pede que usem os phasers em tonteio, se reportando para Spock. Kirk ainda diz que o impostor está com arranhões no rosto. A versão maligna de Kirk está nos aposentos do capitão e pega a maquiagem dele (???) para disfarçar os arranhões. Ele pede um phaser a um dos tripulantes e lhe dá um golpe, colocando o tripulante para dormir.
Kirk e Spock conversam sobre como localizar o impostor e Spock pergunta para onde Kirk iria se ele quisesse se esconder na nave. O capitão responde que na engenharia. E os dois vão para lá, com os phasers em tonteio. Spock e Kirk se separam. O capitão encontra sua parte agressiva apontando um phaser para ele. Kirk diz que um precisa do outro e que sua parte agressiva não pode feri-lo. A parte agressiva diz que não precisa dele e, na hora que atira, é imobilizado por Spock com seu toque neural. O Kirk agressivo atira mas erra o alvo. O phaser estava ajustado para matar. Eles levam o Kirk agressivo para a enfermaria e McCoy sugere que ele seja amarrado antes de acordar. Kirk concorda, sentindo que não consegue tomar qualquer decisão. Spock, que é mais inteligente que todo mundo, diz que o poder de decisão está no lado maligno de Kirk, assim como sua liderança, e que ele deve ser controlado por seu lado bom para ser usado de forma positiva. Se a parte boa e a parte má de Kirk não forem unidas, o capitão pode perder totalmente o seu poder de decisão. Para piorar a situação, o Kirk agressivo, ao atacar Kirk com o phaser, acertou na engenharia os circuitos de teletransporte, destruindo-o e não ficando pronto em menos de uma semana. E, no planeta, o grupo avançado já congela.
O Kirk agressivo acorda e grita. Seus índices corpóreos estão altos. McCoy conclui que ele está enfraquecendo e morrendo. Kirk pega a mão de sua versão maligna e os índices corpóreos voltam ao normal. Kirk começa a ter uma crise de identidade: precisa de sua parte má, mas sente repugnância por ela. McCoy oferece ao capitão um conhaque sauriano e diz que ele precisa de sua parte má, que isso é algo humano, repetindo o discurso de Spock de que o poder de decisão do capitão está em seu lado ruim. McCoy ainda fala que o lado bom de Kirk tem inteligência e lógica, não tendo medo, ao contrário de sua parte ruim, que possui medo.
Spock (sempre ele) arruma uma tecnobabble para consertar temporariamente o teletransporte e sugere testá-lo com o cachorrinho (não!!!), que foi duplicado no teletransporte. Eles colocam os dois bichinhos no teletransporte e volta um só, morto. Spock acredita que o cachorrinho morreu por um choque de ter as suas duas metades sendo unidas, mas sem saber o que acontecia. Já o capitão, ao ter suas duas metades reunidas, saberia o que está acontecendo e não sofreria o choque. McCoy, por sua vez, prefere fazer uma autópsia no cachorro e pedir para Spock rever os circuitos de teletransporte. A decisão caberá a Kirk, que não consegue tomar decisão. Por outro lado, há o grupo avançado congelando na superfície do planeta. Spock usa o próprio exemplo de ser meio humano e meio vulcano, em constante conflito e usando sua inteligência para mediá-lo. McCoy acha que existe a possibilidade do teletransporte continuar funcionando mal e matar o capitão. Kirk, coitado, não sabe o que fazer e pede ajuda aos dois. Spock pergunta se o capitão abre mão de seu comando e ele diz que não. McCoy diz que então eles não podem ajudá-lo e que a decisão é dele. Kirk opta pela alternativa de Spock mas fala para McCoy continuar a autópsia. Kirk, atordoado, volta para o leito onde está a sua parte ruim, que ataca o capitão e lhe arranha o rosto. A versão má de Kirk vai para a ponte e pede para a nave ir embora, abandonando o grupo avançado. Chega outro Kirk (o verdadeiro) com McCoy, mas como agora os dois estão com o rosto arranhado, surge a dúvida do Kirk verdadeiro. Mas logo isso é elucidado, pelo comportamento dos dois. O Kirk agressivo ameaça atirar no capitão, mas este diz que se ele morrer, os dois morrem. O Kirk agressivo começa a gritar de medo e implora por sua vida. O capitão diz que os dois vão viver. Todos vão para a sala de teletransporte e Kirk fica agarrado a seu duplo na máquina. Spock aciona o teletransporte. Os dois Kirks desaparecem. Spock reverte o teletransporte e Kirk retorna normalmente já ordenando o resgate do grupo avançado. Na ponte, a ordenança fala ao capitão que o impostor falou com ela de todo o ocorrido. Quando ela ia dizer algo ao capitão, ele cortou com um “Obrigado”. A ordenança entrega o relatório para Spock assinar e ele diz a ela que o impostor tinha qualidades interessantes, e pergunta sarcasticamente se ela concorda, perante o olhar de desaprovação da ordenança (mais uma manifestação machista da época, agora em cunho de piada).
O que podemos falar do episódio “O Inimigo Interior”? Em primeiro lugar, esse foi um episódio para testar o bom talento (ou não) de William Shatner para interpretar. A parte má e a parte boa complexas de Kirk colocaram Shatner em várias situações diferentes de interpretação. Na minha modesta opinião, Shatner se saiu melhor interpretando sua parte boa. A parte má ficou um tanto caricata, com algumas caras e bocas exageradas que mais convenceram ao final do episódio, quando sua parte negativa mostrou um pavor real na situação da fusão com a parte boa do capitão. A grande virtude da atuação de Shatner nesse episódio ficou por parte da indecisão da parte boa do capitão, sendo bem convincente. Às vezes ele parecia estar expressando até uma dor física pelo sofrimento da sua indecisão, sendo algo um pouco exagerado, mas ainda assim foi uma boa atuação.
Boa, também, foi a ideia de atribuir outras características às partes boas e más do capitão. Por exemplo, a parte boa era inteligente e lógica, ao passo que à parte ruim cabia o poder de decisão e a liderança, o que ajudou a complexificar a discussão do episódio, não caindo numa mera dicotomia banal. No fim das contas, Kirk precisava de suas duas metades e uma controlava a outra.
O momento mais delicado do episódio foi quando a parte boa de Kirk precisou tomar uma decisão; usar o teletransporte ou não? Com Spock e McCoy defendendo perspectivas diferentes, Kirk acabou sendo obrigado a tomar uma decisão, ou seja, a proposta de Spock, mas não abandonando a opção de McCoy.
A questão do machismo foi, talvez, a mais delicada até agora em nossa análise dos episódios da série clássica, com a Ordenança Rand pagando o pato mais uma vez. A tentativa de estupro que ela sofreu, acrescida da sua fala de que ela não queria prejudicar o capitão é algo inadmissível hoje em dia. E a piadinha de Spock para cima dela ao final do episódio não caiu nada bem. Ficou a impressão de que a personagem “gostou” de ser atacada. Infelizmente, como já foi dito aqui, fica impossível para um produto cultural de uma determinada época, por mais bem intencionado que seja, ficar totalmente incólume às visões de mundo de seu tempo. Que esse episódio continue a ser visto para a gente ter a noção de como as mentalidades precisam se modificar ao longo do tempo, embora elas demorem para fazer isso.
Dessa forma, “O Inimigo Interior” é um episódio que deu uma oportunidade a Shatner mostrar sua versatilidade para a atuação, mostrou um bom debate entre bem e mal que não caiu numa dicotomia simplória e, infelizmente, exibiu mais uma vez o machismo latente da época, de uma forma até mais desagradável do que já vimos em outros episódios.