Vamos continuar aqui a falar dos filmes que concorrem ao Oscar esse ano de 2021. “Rosa e Momo” (“La Vita Davanti a Sé”) é uma produção italiana que concorre ao Oscar de Melhor Música e conta com a presença mais do que especial de Sophia Loren. Esse é um drama que trabalha muito as relações humanas. Para podermos falar desse filme, vamos precisar dos spoilers de sempre.
O filme fala de Rosa (interpretada por Loren), uma senhora de origem judia que sobreviveu ao holocausto e ao campo de concentração de Auschwitz. Ela cuida de crianças abandonadas pelos pais ou em situação de rua, até que elas consigam um novo lar e uma nova família. Um belo dia, ela anda pela rua e tem dois castiçais roubados por um menino, Momo (interpretado por Ibrahima Gueye). O garoto é criado pelo Dr. Coen (interpretado por Renato Carpentieri), médico de Rosa, que devolve os castiçais a ela, que pretendia vendê-los para pagar o aluguel. Curiosamente, ele pede a Rosa que fique com Momo por dois meses, o que exaspera Rosa, sem falar do fato de que Momo é um menino bem complicado e indisciplinado. Ele vende drogas para um traficante e tem muitas dificuldades de adaptação à nova casa. Mas, aos poucos e com muita paciência, Rosa e Momo se aproximam, com este último também trabalhando para um comerciante muçulmano, Hamil (interpretado por Babak Karimi). Momo tem origem muçulmana senegalesa e consegue se identificar com as tradições ensinadas por Hamil. O grande detalhe que irá aproximar definitivamente Momo e Rosa é a doença da senhora, que começa a ficar esquecida, simplesmente saindo do ar, ou seja, o mal de Alzheimer. Com o tempo, seu estado de saúde piora e ela pede a Momo que não fique no hospital, pois os médicos são ruins e “fazem experiências” com as pessoas, numa clara referência ao que acontecia nos campos de concentração. Quando isso acontece, Momo se desliga do tráfico, se reaproxima de Hamil, com quem havia se desentendido (apesar dessa aproximação progressiva, Momo mostra um comportamento complicado o tempo todo no filme, por ter sido muito barbarizado em vida, como o assassinato da mãe pelo pai, que queria que ela continuasse se prostituindo) e vai ao hospital tirar Rosa de lá, colocando-a num porão que era o refúgio de Rosa, o lugar onde ela realmente se sentia segura do mundo (quando ela estava em Auschwitz, se escondia embaixo dos alojamentos dos prisioneiros, onde estava livre dos olhos dos nazistas). Os dois serão encontrados por Lola (interpretado por Abril Zamora), uma travesti muito amiga de Rosa, com a idosa já morta. O filme termina com Momo indo ao enterro de Rosa, deixando em seu túmulo uma foto de um campo com flores que ela adorava e o menino indo com Lola e Hamil, que passariam a ser sua família.
É um filme cujo tema não é uma grande novidade. O detalhe aqui é que Rosa tem origem judia, perseguida pelo nazismo na Segunda Guerra Mundial, enquanto que Momo tem origem muçulmana, igualmente perseguido nos dias de hoje, mas como imigrante. Eles são membros de dois povos que são inimigos em muitas circunstâncias, mas que são também igualmente perseguidos na Europa e assim nossos dois personagens acabam se aproximando. Momo não tinha a menor ideia do que eram os números tatuados no braço de Rosa, e esta achava muito bom que ele não soubesse, sendo ela consciente da perseguição que tanto ela quanto Momo sofriam.
Sophia Loren, apesar da idade avançada, ainda atua com grande vitalidade e dá um carisma todo especial ao filme. Ela fez um bom par com Abril Zamora e sua Lola, com destaque todo especial para a dança que as duas fizeram ao som de uma música na vitrola, no vinilzão mesmo, cantada por ninguém mais, ninguém menos que Elza Soares (!). Mas creio que quem mais chamou a atenção mesmo foi o jovem ator Ibrahima Gueye, O Momo, apelido surgido de seu nome Mohamad. Ele conseguiu aliar a agressividade e rispidez que o papel exigia com uma visão mais terna e frágil nos momentos com Hamil e, principalmente, Rosa. A metáfora da leoa que cuidava dele como uma mostra da carência afetiva do menino deu um tom lúdico a um filme que é muito duro e sem um happy end.
Dessa forma, “Rosa e Momo” é mais um filme que concorre ao Oscar, que recebeu uma indicação talvez mais pela simpatia em que ele desperta (poderia ter ficado somente no Globo de Ouro mesmo, onde ganhou o prêmio por melhor música). Vamos ver se ele também vai ganhar a estatueta.
Mais um filme que concorre ao Oscar 2021. “Destacamento Blood” (“Da 5 Bloods”), de Spike Lee, concorre à estatueta de Melhor Trilha Sonora Original. Esse era um filme em que eram esperadas mais indicações, mas a coisa ficou somente nessa única indicação mesmo. Esse é um outro filme que conta com a presença de Chadwick Boseman, que concorre ao Oscar de Melhor Ator em “A Voz Suprema do Blues”. Para podermos falar desse filme, vamos precisar dos spoilers de sempre.
O filme fala de quatro ex-combatentes do Vietnã que voltam ao país para procurar os restos mortais de seu superior, Stormin’ Norman (interpretado por Boseman). Mas essa viagem tinha outro motivo implícito, que será explicado num flashback da guerra. Os quatro ex-combatentes faziam parte do chamado “Destacamento Blood” e estavam numa missão num helicóptero que foi derrubado e caiu próximo de um avião americano também derrubado. Eles encontraram no avião uma espécie de baú cheio de barras de ouro, que seria enviado para uma comunidade vietnamita como pagamento para se apoiar os americanos. Os soldados enterraram esse baú e acordaram que um dia iriam juntos pegar esse ouro enterrado. Mas, para tirar o ouro do Vietnã, precisariam da ajuda de um atravessador francês, Desroche (interpretado por Jean Reno). Eles fazem um acordo com ele, mas obviamente serão traídos, o que vai provocar uma reedição da guerra, mas agora na disputa pelo ouro.
O filme mistura dois gêneros. Por um lado temos uma película de ação e de guerra, com direito a todos os traumas passados, manifestos sobretudo num dos ex-combatentes, Paul (interpretado magistralmente por Delroy Lindo), que pirou na batatinha legal nas condições inóspitas da selva e na presença dos capangas de Desroche. Por outro lado, temos um filme bem Spike Lee mesmo, com muitas informações sobre situação dos soldados negros durante a guerra do Vietnã, com direito a muitas imagens de arquivo, citações e falas de figuras importantes como Mohammad Ali ou Martin Luther King Jr., tendo uma cara mais documental. Esse aspecto mais militante do filme o torna mais didático e talvez os membros da Academia não tenham se sentido muito à vontade com tal característica dúbia, que provocava algumas descontinuidades no roteiro. Ou seja, temos aqui a mistura de informações bem verídicas com uma ópera do absurdo mais espetaculosa do que qualquer coisa, dando a impressão que a gente via dois filmes ao mesmo tempo, onde sentíamos uma conexão entre eles em alguns momentos, mas uma desconexão total em outros. Ainda assim, a película é cativante, seja pelo seu teor de informações, seja por uma história que é bem contada.
O grande ícone da história é, sem a menor sombra de dúvida, o personagem interpretado por Boseman, Stormin’ Norman que, além de ser o líder do destacamento, também abriu os olhos de seus comandados para a questão racial nos Estados Unidos e a posição do soldado negro na guerra. Ou seja, Norman era um misto de superior, professor, pai e mentor intelectual dos membros do destacamento. A morte dele foi um trauma para todos, mas especialmente para Paul, que era o amigo mais próximo e tinha pesadelos diariamente com seu amigo morto. Não é à toa que o homem surtou na floresta, mergulhando numa paranóia pura e se tornando uma figura muito perigosa para todos.
Dessa forma, é até uma pena que “Destacamento Blood” não tenha obtido mais indicações para o Oscar. Apesar de misturar um gênero um pouco mais documental com um filme de ação, a película prende a atenção do espectador do início ao fim, mesmo que o filme não seja tão cativante quanto um “Infiltrado na Klan”. Está lá no Netflix.
Dando sequência às nossas análises de filmes concorrentes ao Oscar 2021, vamos falar hoje de “A Voz Suprema do Blues” (“Ma Rainey’s Black Bottom”), que concorre a cinco estatuetas (Melhor Atriz para Viola Davis, Melhor Ator para Chadwick Boseman, Melhor Figurino, Melhor Design de Produção, Melhor Maquigem e Cabelo), além de ter ganho o Globo de Ouro para Melhor Ator de Drama, para Chadwick Boseman. Para que possamos analisar melhor o filme, vamos lançar mão de spoilers aqui.
Vemos aqui a história de Ma (interpretada por Viola Davis), uma grande cantora de blues e um dia de gravação de um disco seu com sua banda. Ma, por ser uma estrela, sabe muito bem se impor numa sociedade altamente racista e é muito exigente com tudo, para desespero de seu empresário e do dono da gravadora, homens brancos que, segundo a cantora, querem aprisionar a sua música numa caixa para ganhar dinheiro. Ma tem muita consciência de que, se ela não dá mais dinheiro, será tratada com o racismo de sempre, que todos conhecemos. Assim, enquanto está na crista da onda, é ela quem dá as cartas, sendo bem agressiva, pois o fantasma do passado do racismo está bem ali. Esse fantasma também assombra Levee, o jovem trompetista da banda (interpretado magistralmente por Chadwick Boseman), que não aceita os conselhos dos músicos mais antigos da banda, querendo trilhar seu próprio caminho ao jeito que quiser. Seu grande fantasma foi, aos oito anos, ter visto a sua mãe ser estuprada por homens brancos, pois seu pai conseguiu juntar dinheiro e comprar uns terrenos que pertenciam aos brancos. Ele pegou uma faca e conseguiu, mesmo criança, ferir alguns deles antes de ser ferido seriamente, o que levou ao fim do estupro. Seu pai abandonou as terras e levou sua família para outro lugar, sumindo em seguida. Ele voltou e matou alguns brancos antes de ser enforcado. Tal vida pregressa fez com que ele se tornasse muito agressivo em alguns momentos, sendo violento com o membro religioso da banda, numa total descrença em Deus em virtude de sua infância violenta, e inclusive matando o pianista da banda por ter pisado em seu sapato sem querer, depois do empresário branco negar a gravação de suas composições. Ou seja, a agressividade de Levee e de Ma é usada como uma espécie de defesa contra a sociedade racista, com Ma canalizando isso numa direção produtiva e obtendo o que quer dos brancos, mas com Levee, por ser mais jovem, não sabendo fazer essa canalização com eficiência, respondendo à sua volta de uma forma muito desproporcional e agressiva. É claro que uma hora, Ma e Levee entrariam em conflito, o que provocou a demissão sumária deste, caindo em desgraça em seguida com a negação da gravação de suas músicas e com o homicídio.
O filme começa num tom descontraído e divertido, onde a interação entre os membros da banda cria esse clima. Mas, com o tempo, ele se torna tenso, tanto pela agressividade de Ma quanto pelo temperamento descontrolado de Levee, tendo um desfecho trágico e triste, manifesto no choro de Ma, que percebe que sua época e reinado estão acabando.
Davis e Boseman merecem demais o prêmio de melhor atriz e ator. Somente 25% dos atores de Hollywood são negros. Assim, quem alcança o estrelato acaba sendo muito competente no que faz como podemos ver aqui. Davis conseguia misturar agressividade com mortificação, esta última ao falar da condição do negro na sociedade americana e como os empresários brancos a viam, ou seja, como uma máquina de fazer dinheiro que poderia ser descartável a qualquer momento. Mortificação também ao perceber que seu sucesso teria um fim um dia. Já Boseman está muito magro e diferente, provavelmente por causa da doença que o vitimou. Ele conseguia fazer uma mistura de irreverência com explosões paroxistas de violência, tanto que o grande momento do filme foi Levee falando do estupro da mãe e da morte do pai. A dor saltava de seus olhos, juntamente com as lágrimas.
Dessa forma, “A Voz Suprema do Blues” é mais um filmão que concorre ao Oscar e confesso que vou torcer muito por Davis e Boseman. Seria uma premiação muito merecida.
Mais um filme que concorre ao Oscar 2021. “Os Sete de Chicago” concorre a seis estatuetas (Melhor Filme, Melhor Ator Coadjuvante para Sacha Baron Cohen, Melhor Roteiro Original para Aaron Sorkin, Melhor Montagem, Melhor Fotografia, Melhor Canção). Para que possamos analisar o filme mais a fundo aqui, vamos precisar de spoilers.
Vemos aqui a trajetória de oito (isso mesmo, não sete como está no titulo do filme) ativistas americanos numa época extremamente turbulenta, que foi o momento em que Lyndon Johnson deixa a presidência dos Estados Unidos para dar lugar a Richard Nixon. Uma Convenção do Partido Democrata irá acontecer em Chicago e membros de três grupos planejam ir para essa cidade com o objetivo de se fazer manifestações em frente ao hotel em que acontecerá o Congresso. Mas a turbulência política daqueles dias fez com que muita violência e repressão policial acontecesse e nossos oito protagonistas foram injustamente presos, sendo acusados de incitar as revoltas e levados a julgamento, com o objetivo claro por parte do governo e dos setores mais conservadores de se forjar bodes expiatórios. Um deles, um líder dos Panteras Negras, Bobby Seale (interpretado por Yahya Adbul Mateen II), não tinha advogado, pois ele se encontrava hospitalizado, mas foi a julgamento assim mesmo e sendo tratado com muita rispidez pelo juiz Hoffman (interpretado por Frank Langella, que fez o ministro Jaro em Jornada nas Estrelas Deep Space Nine). Aliás esse juiz meteu os pés pelas mãos no julgamento, trocando nomes, falas dos advogados e confundindo situações, mostrando-se claramente desqualificado para um julgamento de tamanha magnitude.
Desde cedo fica clara a intenção de se condenar os réus, onde o direito de defesa deles é constantemente cerceado. Por mais que o advogado deles, William Kunstler (interpretado por Mark Rylance) busque artifícios e argumentos, Hoffman sempre deixa registrado que o advogado o desacata. Testemunhos importantes como o do ex-procurador-geral (interpretado rapidamente por Michael Keaton), que poderia inocentar a todos, são desconsiderados pelo juiz, com o testemunho sendo dado sem o júri. Ou seja, o juiz atua de uma forma extremamente arbitrária, deixando bem claro o circo armado onde todos já estavam condenados de antemão pelo próprio juiz, que atuou mais como acusador do que qualquer outra coisa. Vale frisar aqui que dois dos acusados foram absolvidos para mostrar uma suposta benevolência do sistema, que seria implacável com os acusados politicamente mais repulsivos pelos conservadores.
O grande momento do filme, e o mais traumático, é quando um amigo de Seale que o orientava no julgamento foi assassinado pela polícia e Seale surta, desacatando continuamente o juiz, que obriga que os seguranças lhe deem uma surra num lugar reservado, além de algemá-lo e amordaçá-lo. Tal atitude foi de um impacto tão grande que até a promotoria pediu para se anular a acusação sobre Seale, que permaneceu preso pelos desacatos ao juiz e por uma outra acusação de homicídio que, a essa altura do campeonato, a gente tem muitas suspeitas de sua veracidade. Ficava bem claro que até os ativistas brancos e “comunistas” eram mais bem tratados que o membro dos Panteras Negras.
O filme tem um elenco estelar. Além de Keaton, Rylance e Langella, também temos a presença de Sacha Baron Cohen, que faz um dos acusados que tinha a toada mais irreverente de todas, e Eddie Redmayne, que fazia um líder estudantil mais “corretinho” que leria a declaração final antes do veredicto, uma declaração que devia ser despolitizada (já ouvi isso em algum lugar) e breve. O líder estudantil optou, então, por ler os nomes de todos os mais de cinco mil soldados mortos na Guerra do Vietnã, levando o juiz Hoffman à loucura. O veredicto… bom, estamos falando de um roteiro que é inspirado numa história real. Um happy end aqui seria praticamente um corpo estranho. Esse é um daqueles filmes que termina abruptamente e depois se diz o que aconteceu com cada pessoa (nem vou falar personagem aqui, pois se trata de pessoas reais) depois do fim da película, com a ajuda dos letreiros.
Dessa forma, “Os Sete de Chicago”, disponível no Netflix, é um filme que merece demais a atenção do espectador, pois mostra em cores vivas a clara intenção do movimento conservador americano, amparado pelo aparelho de Estado, de perseguir seus opositores políticos que lutavam pelos direitos civis e contra a Guerra do Vietnã. A arte de produzir bodes expiatórios podia ir até as últimas consequências naqueles dias tão opressores. E vemos isso de forma bem clara nessa película.
Vamos continuar aqui a falar dos filmes que concorrem ao Oscar. E hoje vamos pegar um peixe bem graúdo, pois “Mank” concorre a dez estatuetas (Melhor Filme, Melhor Ator para Gary Oldman, Melhor Diretor para David Fincher, Melhor Atriz Coadjuvante para Amanda Seyfried, Melhor Som, Melhor Design de Produção, Melhor Fotografia, Melhor Maquiagem e Cabelo, Melhor Figurino, Melhor Trilha Sonora). Para podermos falar desse filme, disponível no Netflix, vamos precisar de spoilers.
A película fala da vida de Herman Mankiewicz (interpretado por Gary Oldman), o roteirista do clássico “Cidadão Kane”, de Orson Welles. Para quem não conhece “Cidadão Kane”, esse é considerado um dos clássicos do cinema, pois trabalhou de forma magistral a técnica cinematográfica, além de trabalhar um tema muito polêmico na época em que foi produzido (1941), que foi, de uma certa forma, satirizar e criticar a trajetória do magnata da comunicação e entretenimento William Randolph Hearst. Ou seja, era um projeto que, desde o seu início já estava fadado à perseguição e execração por parte do mainstream. Mank, como era conhecido Mankiewicz, era uma pessoa muito irreverente, possuidor de uma inteligente e fina ironia, além de ser acometido pelo alcoolismo. Roteirista da MGM, ele era contemporâneo de vários nomes conhecidos do cinema, como Louis B. Mayer, Irving Thalberg e Marion Davies, esposa de Hearst. E seu convívio com tais figuras seria a inspiração para escrever o roteiro de “Cidadão Kane”, que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro.
O filme mostra duas histórias paralelas. A primeira delas mostra o processo turbulento de escrita do roteiro de “Cidadão Kane”, onde Mank padecia de um acidente automobilístico, acamado com uma perna quebrada. Ele teve todo um staff à disposição para escrever sua história, cujo cronograma se atrasava mais por suas bebedeiras, o que rendia pressões de Orson Welles em cima dele. À medida que o roteiro saía e as pessoas mais próximas iam tendo contato com o manuscrito, elas alertavam Mank de que isso acabaria de vez com sua carreira. A resposta era sempre dada com irreverência.
A segunda história é um flashback, passado em 1934, que mostra um Mank mais jovem e já bêbado como roteirista da MGM, convivendo com as pessoas do meio. Podemos ver figurinhas carimbadas do cinema e suas virtudes e defeitos. Um Louis B. Mayer (interpretado por Arliss Howard) muito falso, um Irving Thalberg (interpretado por Ferdinand Kingsley) sem escrúpulos, um William Hearst (interpretado por Charles Dance) aristocrático, uma Marion Davies (interpretada por Amanda Seyfried) muito simpática e doce. O filme mostra muito quem era quem naqueles tempos de crise provocados pela depressão, com toda essa elite cinematográfica apoiando o candidato republicano ao governo e nosso Mank, com sua irreverência e língua ferina remando contra essa maré, o que rendia olhares tortos por parte de uns, mas a simpatia de Hearst, que gostava de ter Mank em seus eventos sociais, muito mais pela sua retórica do que por qualquer outra coisa. Foi também notável o relacionamento de Mank com Davies, vista como uma espécie de bibelô de Hearst por aquela sociedade, mas sendo escutada por Mank em suas ideias e pensamentos. Mal saberia ela que seria retratada em “Cidadão Kane” de uma forma pouco positiva, pois Mank a colocou como uma peça de coleção do sombrio palácio de Hearst, metaforizado em Charles Foster Kane, e condenada a uma vida de ócio onde montava quebra-cabeças diariamente. Entretanto, Davies não ficou revoltada com Mank e isso não abalou a amizade dos dois.
O clímax do filme foi um jantar à fantasia de Hearst, onde Mank, totalmente bêbado, fala aos convidados um roteiro sobre um magnata das comunicações e inspirado em Don Quixote de La Mancha, claramente satirizando Hearst, atirando para todos os lados sem dó nem piedade, será aí que Mayer deixará a sua falsidade de lado e irá dizer que metade do salário de Mank é pago por Hearst o único que sabe a parábola do macaco do realejo, que Mank perguntava a todos durante o filme: o macaco recebe tudo do dono do realejo, mas é manipulado por ele.
O filme tem atores com boas atuações. Charles Dance fez um ótimo Hearst, inabalável em seu comportamento aristocrático. Seyfried faz jus à indicação para Atriz Coadjuvante, pois as conversas de Davies com Mank foram um momento delicioso do filme, não se deixando abalar ao contracenar com o medalhão Oldman. Tom Burke fez um Orson Welles fantástico (parece que o homem ressuscitou nas telas). Mas o filme realmente é de Gary Oldman, que mais uma vez colocou todo mundo em seu bolso, fazendo um Mank com mais defeitos que virtudes, mas ainda assim despertando demais a simpatia por seu forte carisma. Se ganhar a estatueta de Melhor Ator, será merecido.
Dessa forma, “Mank” é mais um daqueles filmes sobre o cinema e sua história que se torna uma referência obrigatória para os cinéfilos. É uma película que necessita de muita atenção do espectador, por estar muito focada em seus diálogos, mas temos uma boa caracterização de época, figurinos e um delicioso preto e branco que a cor no cinema jamais enterrou de vez. E, melhor de tudo, tem no Netflix.
A seção Batata Movies, depois de um breve hiato, está de volta para falar dos indicados ao Oscar deste ano de 2021. Infelizmente, vivemos em tempos complicados e nem sempre vamos poder ter acesso a todos os filmes. Mas a ideia é poder falar do máximo de filmes possíveis aqui. E vamos começar com uma produção disponível na Netflix. “Relatos do Mundo” (“News Of The World”) traz o astro Tom Hanks e concorre a quatro estatuetas (Melhor Design de Produção, Melhor Som, Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora Original). Para podermos falar sobre o filme aqui, vamos precisar lançar mão dos spoilers.
A história fala do capitão Kidd (interpretado por Hanks), um veterano da Guerra Civil Americana que era um tipógrafo e perdeu tudo com a guerra. Com isso, ele decide ganhar a vida viajando de cidade em cidade para ler as notícias de jornal para as pessoas. Um belo dia, ele encontra um homem negro enforcado e, com ele, uma menina lourinha que falava o idioma indígena Kiowa. Kidd analisa os documentos dela e percebe que a mocinha é de origem alemã, tendo tios a uma grande distância dali. O nome da garotinha é Johanna (interpretada por Helena Zengel) e Kidd decide fazer a longa viagem para levá-la para seus parentes. O grande problema é que ele vai passar por muitos perigos nessa viagem, o que vai fazer que os dois estreitem seus laços, à despeito da barreira linguística.
O filme aborda o estado de penúria dos Estados Unidos logo depois da Guerra Civil, enfocando especialmente o povo texano, que se sentia reprimido pelos yankees (ou azuis, como eram chamados no filme, em virtude do uniforme militar). As marcas da guerra ainda estavam muito recentes, e, se ainda há um ressentimento muito grande com relação a tudo isso hoje em pleno século vinte e um, imagine-se como não seria uns poucos anos depois de findada a guerra. Podemos ver todo esse ressentimento quando Dill lia notícias aos texanos de origem federal, onde a contestação era muito forte, e tudo isso sob os olhos de soldados yankees. Dill precisou ter um grande jogo de cintura, falando ao grande público prestes a explodir que a guerra realmente fez todos sofrerem bastante, sendo a voz que se solidarizava com o sofrimento coletivo.
Mas nem tudo é somente a dor do sofrimento. Por outro lado, vemos também todo um ódio contido nos mesmos texanos contra índios e negros e o surgimento de um comportamento muito autoritário, sobretudo num pequeno vilarejo controlado por uma espécie de ditador doméstico, que exigiu que Dill exaltasse seus grandes feitos perante a cidade. Mas nosso protagonista, acometido de um arroubo democrático com pouco espaço fértil para isso, decidiu colocar em votação as notícias que o público queria escutar, quase sendo morto por essa “provocação”. Aliás, esse é um filme que tem lá seus momentos de ação, mas somente como uma moldura para o relacionamento entre Dill e Johanna, a grande atração da película.
Dill, apesar de ser um contador de histórias, fazia questão que a menina esquecesse seu passado traumático (ela teve sua família alemã massacrada pelos índios e depois sua família índia massacrada pelos brancos) e olhasse para a frente, sem olhar para trás. Entretanto, a menina diz que, para seguir adiante, precisa-se primeiro olhar para trás. São realmente duas formas de se lidar com um passado violento, onde talvez a segunda seja a mais coerente, pois é muito difícil a gente encarar a nossa vida sem as experiências pregressas.
Dill era solitário, pois perdeu tudo na guerra, até a esposa, morta pela cólera. Mas ele sente que foi mais a praga da guerra que se abateu sobre ele, ratificando a ideia já citada de como o conflito deixa marcas em todos, inclusive em nosso protagonista. Por fim, ele descobre que pode criar um verdadeiro núcleo familiar com a menina, e que deixá-la com os tios foi um erro. Ele volta a tempo para corrigir isso e garantir o happy end nesse western de fim de século que na verdade se passa no sul dos Estados Unidos.
Hanks está fenomenal como sempre, mas a surpresa é a menina Helena Zengel, que falava e cantava em idioma indígena. A química entre os dois personagens foi perfeita, pois eles se uniram nas adversidades que a viagem trouxe.
Dessa forma, só lamento que “Relatos do Mundo” não tenha tido mais indicações. Uma indicação de Melhor Ator e Atriz Coadjuvante não seria nenhum exagero. As indicações para os Oscars técnicos correspondem, mas ficou um gostinho de quero mais pela beleza e teor cativante do filme.
Dando sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas, retornemos à série clássica para investigar “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”, o segundo piloto de Jornada nas Estrelas que fez a série pegar no tranco e se transformar em todo o Universo que conhecemos. Sabemos como é, todos merecem uma segunda chance.
E qual é o plot? A Enterprise recebe um sinal de socorro de uma nave perdida há mais de dois séculos. Spock e Kirk jogam xadrez tridimensional e sabemos o basicão do vulcano: ele não tem emoções humanas, mas é filho de uma terráquea com um vulcano. Uma espécie de sonda muito pequena é detectada e teletransportada para dentro da nave por um Scott que é mais um figurante do que personagem. A sonda guarda informações da nave em que estava e é expelida antes da nave explodir. Kirk ordena que a sonda seja ligada ao computador da nave para se ver quais são as informações em suas “fitas”.
Kirk e Spock vão para a ponte e, na navegação está o senhor Mitchell (interpretado por Gary Lockwood, que trabalhou em “2001, Uma Odisseia no Espaço”). Kirk ordena que a nave saia de dobra e deixa a tripulação à parte da sonda da antiga nave S. S. Valiant. Ele recebe uma equipe de membros da tripulação (onde temos um Sulu calado como um bom figurante) e, entre esses membros está a psiquiatra Dra. Dehner, cuja missão é verificar a reação da tripulação em emergências. Mitchell joga um gracejo para Dehner e esta o coloca em seu lugar. Ao receber o fora, fala com o colega ao lado que a doutora é um congelador ambulante, por não ter caído no seu gracejo, em mais uma manifestação machista da década de 60, como já vista em outros episódios de TOS. Spock lê os dados da sonda e descobre que a S. S. Valiant interagiu com uma espécie de grande força desconhecida que atiçou a percepção extrassensorial (PES) dos tripulantes, sendo que, ao final, o capitão mandou destruir a nave.
Kirk ordena que a nave entre em dobra 1 e ela atravessa uma espécie de barreira que tem algo que é detectado pela nave, mas não é sabido muito bem o que é. Mitchell e Dehner são atingidos por uma força desconhecida e perdem os sentidos. A Enterprise atravessa a barreira. Houve nove mortos nessa passagem da Enterprise pela barreira, sinal que os roteiristas carregavam nas tintas no início da série (o KIrk nem ficou tão abalado assim, justamente ele, que pira na batatinha quando perde um tripulante). Mitchell acorda e está com os olhos totalmente prateados.
A Enterprise está sem força de dobra e KIrk se pergunta o que aconteceu com a Valiant, já que ela também atravessou a barreira. Só foram atingidos pela energia desconhecida aqueles que tinham percepção extrassensorial, ou seja, os nove tripulantes que morreram, Dehner e Mitchell. Os dois últimos tinham alta PES e não morreram. Mitchell, com a maior PES de todas, ficou com os olhos prateados. Kirk e Spock desconfiam desse dom de Dehner e Mitchell.
Kirk visita Mitchell na enfermaria e este diz que está se sentindo bem e quer voltar ao seu posto. Ele está estranho, meio desafiante, meio petulante. E lendo filosofia de forma muito rápida. Kirk ordena a Spock que se façam exames completos em Mitchell e que ele seja vigiado.
Dehner visita Mitchell e esse tenta impressioná-la alterando as leituras do seu corpo. Um outro tripulante que conserta a nave o visita e Mitchell recomenda os consertos certos lendo a mente do tripulante. Este reporta a situação na sala de reuniões para Kirk e os demais tripulantes. Dehner entra na sala determinada a defender Mitchell, mas Kirk, Spock e os demais mostram grande preocupação com o crescimento das habilidades de Mitchell, que pode afetar severamente a segurança da nave. Quando a reunião termina, Spock dá duas opções ao capitão: ou deixar Mitchell sozinho num planeta minerador (Delta Vega, onde eles tentarão obter o dilítio para recuperar o motor de dobra), ou matá-lo. Kirk decide pela primeira opção. Devemos nos lembrar que o personagem de Spock ainda estava em desenvolvimento e essa opção por matar Mitchell estava em sua pura visão lógica dos fatos para proteger a Enterprise. Nimoy não gostou nada disso e, como veríamos mais tarde, o vulcano teria a chance de abraçar opções muito mais fraternais e multiculturalistas (leia-se a Horta; mas isso é em outro episódio que será discutido no momento oportuno).
O grande problema é que Mitchell já sabe dos planos contra ele e, ao ser recebido por Kirk, Spock e Dehner na enfermaria, joga uns raiozinhos no capitão e no primeiro oficial. Mas conseguem imobilizá-lo e sedá-lo. Todos eles descem para a superfície do planeta, cujas instalações mineradoras parecem a fachada do Palácio da Alvorada, em Brasília. Mitchell é confinado a uma cela com campo de força e fala de forma ameaçadora com os demais, dizendo que é melhor realmente matá-lo. Ele se joga contra o campo de force e, enfraquecido volta ao normal por uns segundos (seus olhos passam a ser o que eram antes), mas logo se recupera, dizendo que vai ficar cada vez mais forte. E, quando isso acontece, Mitchell mata um tripulante, joga mais uns raiozinhos em Kirk e Spock e passa a controlar a Dra. Dehmer, alem de desligar o campo de força da cela. A doutora também fica com os olhos prateados. Eles fogem. Kirk é reanimado pelo médico e vai atrás de Mitchell e Dehner. Ao encontrar com eles, Kirk tenta convencer Dehmer a voltar a ser psiquiatra e dar um prognóstico a Mitchell. Este, já se sentindo um deus e totalmente corrompido pelo poder, deixa clara toda a sua arrogância e Kirk mostra isso a Dehmer, que joga uns raiozinhos em Mitchell, que responde o fogo e se enfraquece. É a deixa para Kirk entrar em luta corporal com Mitchell, ficar com marcas de sangue, camisa rasgada, etc. Ao fim, Kirk consegue, com um rifle phaser, atirar numas pedras que soterram e matam Mitchell. Quando Kirk vai prestar assistência a Dehmer, ela também morre, dizendo, em suas últimas palavras a Kirk, que ele não sabe o que é estar perto de ser um deus.
Na ponte, Kirk, registra que Dehmer e Mitchell morreram no cumprimento do dever, pois não foi por vontade deles tudo o que aconteceu. Spock diz que lamenta também a morte dos dois. Kirk diz a Spock que ainda pode haver uma esperança para ele, já que ele expressou ali uma emoção. Fim do episódio.
O que podemos dizer do novo episódio piloto de TOS “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”? Em primeiro lugar, esse episódio foi possível depois do rejeitado “The Cage”, pois o pessoal da NBC decidiu dar uma segunda chance, já que eles mesmos haviam aprovado o roteiro que depois acharam muito cerebral com a execução do episódio. Assim, “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve” foi executado tendo somente Leonard Nimoy e Majel Barrett do episódio original. Houve, de cara, uma preocupação em construir o personagem Spock, o alienígena de orelhas pontudas que assustava os puritanos WASPs por se parecer com o demônio. Já sabemos, nos primeiros minutos, que Spock parece não ter emoções, mas é um mestiço alienígena, pois sua mãe é terráquea. A frieza vulcana é até mal vista ao longo do episódio quando Spock dá a Kirk apenas duas alternativas para salvar a nave e a tripulação de Mitchell: ou abandoná-lo num planeta deserto ou matá-lo. Kirk aceita a primeira alternativa, mas não sem muita relutância. Pelo menos, ao final do episódio, com a morte de Mitchell e as palavras de lamento de Spock, Kirk disse que o vulcano ainda poderia ter salvação, como realmente o teve posteriormente. De qualquer forma, analisando toda a crise de forma fria e pragmática, não podemos deixar de concordar que Spock tinha a sua razão.
Esse foi também um episódio que falou muito de percepção extrassensorial, um assunto que parecia estar muito em voga naqueles anos. Eu me lembro muito bem quando Uri Geller veio ao Brasil, uns dez anos depois de “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”, e ficava entortando colheres e garfos na TV usando a força da mente (depois falaram que era tudo uma tremenda duma mutreta). No caso, a percepção extrassensorial tinha origem na grande barreira e funcionava como a vilã da história, pois dava ao ser humano poderes ilimitados que o corrompiam totalmente, tornando-se verdadeiros deuses que usavam de forma completamente imoral o poder que tinham. E aí está a grande reflexão do episódio: até onde o ser humano está preparado para assumir um grande poder e, consequentemente, uma grande responsabilidade? Era Jornada nas Estrelas dando mais uma vez o cartão de visitas. Se em “The Cage” a execução do episódio foi mais cerebral, em “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve”, houve a preocupação de se enxertar mais cenas de ação para o espetáculo televisivo, mas essa reflexão sobre poder absoluto que corrompe absolutamente estava lá nas entrelinhas.
No mais, vemos futuros personagens em participações tão furtivas que mais pareciam figurantes, leia-se Scott e Sulu, com pouquíssimas falas, mas que já estavam ali juntamente com Kirk e Spock. Nada de Uhura e McCoy, entretanto. Aliás, o médico era outro, Mark Piper (interpretado por Paul Fix).
Assim, “Onde Nenhum Homem Jamais Esteve” pode ser descrito como um episódio que começava a construir Jornada nas Estrelas tal como conhecemos. Questões reflexivas, as cenas de ação que a TV exigia, os personagens de TOS que depois seríamos bem íntimos, um machismo latente da década de 60 que insistia em dar o ar de sua (des)graça, etc. O mais divertido aqui será ver como cada pecinha dessas foi se alocando nesse quebra-cabeça com o passar dos episódios.
Vamos dar sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas, falando hoje do quarto episódio da primeira temporada de Enterprise, intitulado “Inesperado”.
Muitos problemas ocorrem dentro da NX-01. Archer sofre com o desconforto da placa de gravidade dando defeito durante seu banho, o sintetizador de alimentos não funciona direito quando T’Pol tenta usá-lo, e outros problemas. Trip acha que o problema está no exaustor de plasma. Eles saem de dobra para consertar. T’Pol percebe que o plasma que sai dos exaustores está muito próximo da nave. Eles investigam e descobrem que há uma nave camuflada no meio do plasma. Archer pede para Hoshi abrir as frequências de saudação e, ao falar com os alienígenas, descobrem que eles estão com problemas em sua nave e usam o campo de dobra da Enterprise para se deslocar. Archer pede que eles retirem a camuflagem. Trip é escalado para ajudar a nave alienígena (xyriliana) e vai ficar três dias lá. Ele passa um tempo desagradável numa câmara de descompressão e se encontra com os alienígenas da nave. Trip está meio grogue, mas trabalha nas máquinas da nave com uma alienígena. Ele entra em contato com Archer, diz que não se sente bem e que quer voltar para a Enterprise. Archer entra em contato com o capitão da nave alienígena e este diz que Trip deve dormir um pouco, pois chegou à nave e não quis descansar. Archer ordena que Trip permaneça na nave e descanse uma hora antes de começar a trabalhar. Depois do descanso, Trip conversa com a alienígena que mostra que a nave tem uma espécie de ecossistema vegetal de onde os alienígenas extraem comida e assim ele se aproxima da alienígena que, mesmo com uma pele cheia de escamas, é mais sensual do que T’Pol (se me permitem o comentário macho heterossexual). A alienígena leva Trip para uma sala que reproduz, por meio de hologramas, o planeta natal dela (isso mesmo, caro leitor trekker, um holodeck no século 22). A moça xyriliana convence Trip a participar de uma espécie de jogo onde eles trocam informações um do outro telepaticamente, o que faz rolar um clima entre eles. Mas os motores são consertados e Trip retorna à Enterprise. A tripulação das duas naves se despedem e a nave xyriliana entra em dobra. Enquanto comia, Trip percebe uma espécie de verruga no braço. Ao mostrá-la a Phlox, este diz que a verruga é um mamilo e que existe uma forma de vida dentro dele. Ou seja, Trip está grávido e rolou um contato imediato de quarto grau entre ele e a moça xyriliana. Assim, ficou difícil para Trip convencer Phlox, Archer e T’Pol (que zoou imensamente da cara dele) de que não rolou nenhum contato sexual. Foi nesse momento que Trip lembrou do jogo telepático feito com a xyriliana, onde os dois colocavam suas mãos juntos numa caixa de pedrinhas para se ter o elo telepático. Archer decide procurar os xyrilianos para resolver a questão. O mais curioso é que Trip começa a despertar sentimentos maternais, além de ficar com mania de perseguição e mais sensível. Como eles procuram os xyrilianos há oito dias e não conseguem achá-los, Archer fala a Trip para este já cogitar a hipótese de ser mãe para esse ser que vai nascer, o que deixa o engenheiro-chefe transtornado.
A nave xyriliana é encontrada, mas a Enterprise intercepta um cruzador klingon. Conclui-se que a nave xyriliana pifou de novo e está camuflada pegando uma carona na nave klingon. Archer tenta entrar em contato com a nave klingon e toma uns dois torpedos fotônicos pela proa. Ele retoma a comunicação e fala com os klingos dos xyrilianos. Os klingons decidem matar os xyrilianos mas Archer insiste que não faça isso. Diante da irredutibilidade dos klingons, T’Pol entra na conversa e diz que foi Archer que levou Klaang ao Império (episódio piloto), evitando uma guerra entre as casas. Trip fala também que os xyrilianos têm uma fantástica tecnologia holográfica. O capitão klingon diz que irá à nave xyriliana. Trip quer ir junto mas o klingon não quer sua presença. Archer então abre o jogo e fala da gravidez de Trip para o klingon, fazendo os klingons caírem na risada, sob os olhos atônitos da tripulação da ponte da Enterprise. Na nave xyriliana, O capitão klingon aceita o holodeck e Trip mostra sua gravidez à alienígena, que diz que o embrião ainda pode ser transferido para outro corpo. Com tudo resolvido, T’Pol fala a Trip que, pelos registros, ele é o primeiro ser humano do sexo masculino a ficar grávido. Trip diz ironicamente que sempre quis entrar para a História. Fim do episódio.
O que podemos falar do episódio “Inesperado”? Em primeiro lugar, não há aqui uma mensagem ou reflexão mais profunda. Esse foi um episódio com um leve acento cômico, que foi a gravidez de Trip e os comentários muito engraçados de T’Pol sobre a situação. Mas o episódio mantém a linha dos episódios anteriores de que os humanos ainda aprendem a fazer contato com novas civilizações e saber lidar com os percalços disso. Se dessa vez eles encontram uma espécie muito pacífica que é a dos xyrilianos, responsáveis por passar a tecnologia do holodeck, que apareceu mais em TNG, isso não significa que esse contato não tenha trazido problemas. Se Trip foi descuidado ao se relacionar com a xyriliana, não prevendo qualquer coisa inesperada, o mesmo ocorre com a xyriliana, que sabia que podia engravidar seu parceiro, mas não acreditava que isso poderia acontecer com um ser de outra espécie. Ou seja, a moral da história desse episódio muito bem podia ser aquela máxima ancestral: “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”.
No mais, foi muito legal ver o Archer bonachão e inexperiente interagir com os klingons casca grossa, onde a diplomacia não ajuda muito. Os argumentos de Archer para salvar os xyrilianos da destruição certa já estavam se esgotando quando T’Pol (sempre ela) salva o dia mais uma vez e, entendendo a cultura klingon, fazendo sempre o mais lógico, consegue convencer o capitão do cruzador a conversar com os xyrilianos, não sem Trip passar um ridículo por todos e ter que revelar a sua gravidez até na frente dos klingons.
Dessa forma, “Inesperado” é um episódio de Enterprise que mostra que a interação de humanos com espécies alienígenas pode ser mais problemática do que meras questões de beligerância. Até na paz e na boa compreensão pode rolar um probleminha inesperado. E assim, a corajosa tripulação da Enterprise vai adquirindo suas experiências, sob os olhos frios de uma T’Pol que, dessa vez, deve estar morrendo de rir por dentro, como pudemos ver no seu fino e delicioso sarcasmo com Trip.