Nós, brasileiros, perdemos este fim de semana um de nossos grandes cineastas. Nelson Pereira dos Santos, um dos fundadores do Cinema Novo, levou o Brasil que ninguém conhecia ao exterior. Um Brasil assolado pela injustiça e pela desigualdade social. Um Brasil contado pelos grandes clássicos de nossa literatura. Toda vez que se fala de Nelson Pereira dos Santos, a primeira coisa que me vem à cabeça é a cachorrinha Baleia, de “Vidas Secas”, que precisa ser sacrificada por seus donos, uma família de retirantes que mal tem o que comer para si próprios. A morte de Baleia dói no fundo da alma até hoje. O filme impressionou tanto que os brasileiros que o realizaram foram acusados no estrangeiro de maus tratos ao bichinho, ao que eles precisaram levar a cachorrinha no ano seguinte para provar que ela estava viva e bem de saúde. É por isso mesmo que não há melhor forma de homenagear Nelson Pereira dos Santos recordando de Vidas Secas. Conheçam e emocionem-se não somente com Baleia, mas também com os problemas sociais profundos de nosso povo. E a Nelson Pereira dos Santos, nossa gratidão eterna…
Mais um filme de porrada, bomba e tiro em nossas telonas. “Rampage: Destruição Total” tem elementos de que um bom blockbuster precisa: algumas cenas de luta, alguns tiroteios, minicatástrofes, como a queda de um avião, e megacatástrofes como três monstros gigantes destruindo uma cidade inteira. E, no meio de tudo isso, Dwayne Johsnon, muito bem acompanhado por Naomie Harris.
Do que se trata a história? O primatologista Davis Okoye (interpretado por Johnson) mostra a seus alunos como fazer uma espécie de comunicação rudimentar com sinais com gorilas. O gorila mais avançado nessa comunicação é George, de uma rara espécie albina. Mas a queda de um patógeno que estava em órbita transforma George num gigantesco monstro, assim como um lobo e um peixe, que saem destruindo tudo por aí. O tal patógeno foi criado por uma empresa com intenções, digamos, escusas, mas um acidente na estação espacial com um rato transformado pelo patógeno acabou provocando a queda na Terra. Okoye terá que pagar um dobrado para salvar a pele de seu amigo George, que está totalmente descontrolado, e ainda buscar um antídoto para o gorila. Mas, para isso, ele contará com a ajuda de Kate Caldwell, uma antiga cientista da empresa que desenvolveu o tal patógeno.
Parece uma história bem simples com o pretexto perfeito para se ter muitas cenas de destruição, que é como o filme é vendido. Mas há uma pequena discussão implícita aí. O grande vilão não são os monstros aterrorizantes que destroem a cidade de Chicago, mas sim o próprio ser humano, explicitado no casal de irmãos sem escrúpulos que dirigem a empresa que fez o patógeno. É até curiosa a disposição dos dois personagens: a moça (interpretada por Malin Akerman) representa a ambição e maldade humana em todos os seus sentidos; já o irmão (interpretado por Jake Lacy) representa a inconsequência, com um toque de estupidez. Esses dois ingredientes se unem para usar a engenharia genética de forma totalmente irresponsável, onde o humano brinca de Deus. Em oposição a tudo isso está Okoye, um homem em completa interação com a natureza, chegando inclusive a desenvolver meios e linguagens para se comunicar com ela mais profundamente, e afastando-se totalmente de qualquer relacionamento mais estreito com os humanos. Essa dicotomia presente no filme, apesar de um tanto simplória, dá um elemento a mais que faz com que a película não seja um simples filme de ação regado a muitos CGIs.
E esse é um filme de atores, por que não? A atuação de Dwayne Johnson volta a impressionar. Apesar de ser apresentado como o estereótipo do grandalhão musculoso, ele não precisa disso para marcar presença. Suas atuações são sempre seguras e naturais, e ele convence, mesmo que elas às vezes pareçam um pouco planas. De qualquer forma, o cara passa muito carisma e a gente até se esquece de seu estilo Brucutu ao longo do filme, o que dá a chance de ele trabalhar até algumas piadas quando sua força física é requisitada na história.
E Naomie Harris? Essa foi uma grande presença no filme e fez um par com Johnson que rendeu boa química. Sua beleza estonteante ajuda sempre, mas, assim como Johnson não precisa de músculos para se afirmar, Harris não precisa de sua beleza para isso, já que seu talento é inigualável, já mostrado em outras produções como “Moonlight” e “Beleza Oculta”. Vale ainda registrar aqui a presença do ator Jeffrey Dean Morgan, como um agente federal meio canastrão, meio cafajeste, meio gente fina, que chama a atenção no filme e tem bons diálogos com o casal protagonista.
Assim, “Rampage: Destruição Total” é mais um clássico filme de porrada, bomba e tiro, mas que tem elementos adicionais como a discussão da vilania humana ao fazer manipulações genéticas e conta com bons atores no elenco, mostrando mais uma vez o carisma de Dwayne Johnson, com a grata companhia de Naomie Harris. Vale a pena dar uma conferida para se divertir sem compromisso.
Mais um filme que é um convite à reflexão em nossas telonas. “Uma Temporada na França” é, acima de tudo, um filme de denúncia. Um filme onde o Cinema grita com todos os seus pulmões contra as injustiças que vemos por aí. Um filme que nos envergonha como humanos.
Vemos aqui a trajetória de uma família originária da África Central, que foge de uma guerra em seu país. No meio da fuga, a mãe é assassinada. O pai e o casal de filhos consegue chegar a Paris e enfrenta todas as dificuldades de estrangeiros em solo europeu que pedem asilo político. O pai, Abbas Mahadjir (interpretado por Eriq Ebouaney), era professor em seu país natal. Agora, em Paris, ocupa o cargo de feirante. Ele vai precisar criar os dois filhos com muito jogo de cintura, pois o passado burguês da família lhe impõe certas exigências cobradas pelos filhos, como uma casa própria com um quarto para cada um. Mas tudo é muito difícil em solo estrangeiro. Abbas tem uma namorada, Carole Blaszak (interpretada por Sandrine Bonnaire) que o ajuda nas dificuldades do dia-a-dia, e também imigrante. Um terceiro amigo, o conterrâneo Etienne (interpretado por Bibi Tanga) fecha o círculo de pessoas próximas à família. Vivendo num país hostil em sua maioria das vezes, esses personagens precisarão matar um leão por dia para sobreviverem, pois a terra natal já se encontra arrasada e retornar não é uma opção.
Esse é um filme que transpira melancolia em grande parte de sua execução. A película denuncia o pouco caso das autoridades francesas com os imigrantes que querem o acolhimento do país europeu mas lhe têm as portas fechadas na maioria das vezes. O que mais dói nesse filme é um misto de indiferença e de repúdio por parte dos franceses que conseguem negar um visto de permanência a uma família que foge de uma situação de guerra e que já perdeu sua mãe. O ódio contra os imigrantes é um tempero explosivo a mais nessa química perigosa. Fica bem claro que africanos negros e muçulmanos são os que mais sofrem preconceito nessa relação entre os franceses e os imigrantes, já que a imigrante branca do leste europeu conseguiu regularizar sua situação. Tal filme tem uma importância marcante, pois se a França sofreu uma série de ataques terroristas nos últimos anos, fica a questão: até que ponto esse tratamento ríspido contra os imigrantes não produz inimigos contra a própria França? Será que uma politica mais flexível para com os imigrantes não deteria um pouco tamanha escalada de ódio? Todos nós sabemos que cada país tem seus problemas, mas não podemos nos esquecer de que todo esse contexto caótico vem da exploração imperialista sobre a África e a Ásia feita no século XIXm justamente pelas potências europeias estrangeiras. Tal cataclisma não ficaria sem consequências.
No mais, a gente precisa bater (e muito) palmas para Mahamat-Saleh Haroun, o diretor e roteirista desse filme que dá voz a um segmento excluído e marginalizado no continente europeu, que é o imigrante que foge de sua terra natal, de misérias e de guerras provocadas direta ou indiretamente pelas potências imperialistas estrangeiras e seu processo colonizatório altamente predatório.
E palmas também a um elenco que mostrou que tal situação escabrosa pode acontecer com qualquer um: eu, você, seu pai, mãe, vizinho, amigo… ou seja, qualquer pessoa que tem sua vida estável numa zona de conforto que subitamente lhe é arrancada. Um filme que choca e alerta, um filme que cumpre sua função social de denúncia. Um programa imperdível.
Um importante documentário está em nossas telonas. “Soldados do Araguaia” fala, antes de denunciar as atrocidades cometidas pelos militares contra os guerrilheiros do Araguaia, na primeira metade da década de 70, das atrocidades cometidas pelos militares contra os soldados do próprio exército, que foram convocados para a caça aos guerrilheiros.
O diretor Belisário França (o mesmo diretor de “Menino 23”) fez um ótimo trabalho de reconstituição com imagens de arquivo ilustrando todos os horrores dos depoimentos dos soldados, que foram submetidos a torturas sem qualquer motivo, sob a alegação de que eles deveriam ser preparados para uma guerra. Alguns desses soldados, segundo seus próprios depoimentos, perderam os testículos nessas torturas, assim como eram obrigados a beber lama ou a ficarem empapuçados de açúcar e nus na floresta, sendo picados por formigas, marimbondos e todos os tipos de insetos que eram atraídos pelo açúcar.
Esses militares também testemunharam os horrores cometidos contra os guerrilheiros, onde puderam ver sacos cheios de cabeças e mãos, além do fato de que prisioneiros vivos eram supostamente enviados para Brasília por helicópteros e, ao invés disso, teriam sido lançados vivos a cachoeiras, já que o helicóptero voltava de viagem apenas cerca de meia hora depois.
Após o fim da operação, muitos desses soldados simplesmente foram dispensados e tiveram ordens estritas de nada dizer sobre tudo aquilo. Alguns não aguentaram os tormentos psicológicos e se mataram. Outros, como podemos ver nas entrevistas desse documentário, permanecem seriamente abalados depois de mais de quarenta anos do ocorrido.
Definitivamente, é um documentário assustador, mostrando a que ponto a humanidade pode chegar em todas as suas atrocidades. Tais ações do exército em nada se parecem diferentes das ações cometidas pelo mesmo exército para reprimir revoltas no interior do Brasil na virada do século passado, como as vistas em Canudos ou no Contestado, onde a população pobre foi completamente dizimada. A Guerrilha do Araguaia foi somente um pequeno exemplo de que tais práticas ainda podem ser cometidas em dias mais próximos de nosso presente. Quando vemos “Soldados do Araguaia”, parece que reviramos uma grande quantidade de sujeira debaixo do tapete, sujeira essa escondida pela anistia de 1979. De qualquer forma, esse é um filme onde o cinema cumpre sua função social de denúncia, além de ser um importante instrumento de reflexão sobre quais rumos queremos para o nosso país, tão entupido de ódio e intolerância nos dias de hoje. Esse é um programa obrigatório para todos nós, seja de qual espectro político for.