Confesso a vocês que tenho um pouco de dificuldades com o cinema coreano. A maioria dos filmes que eu vi do cinema desse país eu achei um tanto enfadonho e com ritmo muito lento, salva uma ou outra exceção. Mas “O Motorista de Táxi” me impressionou muito e posso dizer que esse é o melhor filme da Coreia do Sul que eu vi até hoje. Mais um filme baseado numa história real. Mais um filme que nos faz pensar sobre as coisas (ruins) do mundo.
A história é ambientada na Coreia do Sul de 1980, que estava em plena ditadura militar e era assolada por muitos protestos de estudantes contra arbitrariedades como o toque de recolher. No meio de toda essa confusão está Kim (interpretado por Kang-ho Song), um taxista um tanto egoísta e mesquinho que se preocupava mais com o seu carro (e ganha pão) do que com qualquer outra coisa. Ele criticava os protestos de estudantes contra o governo, pois achava que estudante deve estudar e não protestar. Kim sempre estava sem grana e devia a Deus e ao mundo. Mas, num belo dia, enquanto almoçava com um amigo (e senhorio) que lhe pagava o almoço, ele escutou de um outro taxista que ele tinha conseguido uma corrida até a cidade de Gwangju para um estrangeiro. Esperto como ele só, Kim saiu do restaurante e se apresentou ao cliente, um jornalista alemão de nome Peter (interpretado por Thomas Kretschmann) como o taxista que faria a corrida. Mal sabia Kim que aquela corrida mudaria sua vida e a visão que tinha do governo de seu país.
Podemos dizer que o diretor Hun Jang e o roteirista Yu-na Eom foram muito espertos e inteligentes na concepção do filme. O início da película tem um tom de comédia, onde o taxista Kim dita o tom cômico. Sua aparência mal humorada e mesquinha provocava situações engraçadas com uma pitada de drama, principalmente quando sabemos de sua situação familiar. O tom de comédia continua firme e forte quando ele faz a corrida do jornalista estrangeiro e a barreira linguística leva a mais situações inusitadas e cômicas. Mas, ao se chegar à cidade de Gwangju, o filme muda totalmente de figura e ele se torna uma denúncia nua e crua das atrocidades que os militares cometiam contra a população civil, que não entendia o porquê daquela violência toda. É um momento que a película fica muito pesada e até traumática, e a forma como o gênero do filme muda da água para o vinho, de algo leve e divertido para algo extremamente funesto e revoltante só aumenta o impacto em cima do espectador. A coisa atinge ainda mais o espectador principalmente quando sabemos que o que é mostrado na película é uma história real. O desfecho do filme (que eu não direi aqui) é bem comovente, pois foi criado um forte elo entre o passageiro e seu taxista em virtude de tudo o que passaram juntos. Mas nem sempre a vida consegue repetir a magia da arte.
De qualquer forma, os atores estiveram muito bem, sobretudo Kang-ho Song, que precisou se desdobrar por causa da complexidade do seu personagem em virtude das diferentes situações pelas quais ele passava. Já Thomas Kretschmann não foi tão marcante quanto o seu colega coreano mas ele convenceu muito quando estava numa espécie de estado de choque depois de testemunhar tantos massacres.
Assim, “O Motorista de Táxi” é o melhor filme da Coreia do Sul que eu vi, na minha modesta opinião, pois ele exerce com maestria a função social de denúncia do cinema e o diretor e o roteirista conseguem dar o seu recado, chocando o público violentamente com a repentina troca de gênero de uma comédia levinha para um violento filme que rasga as entranhas. Programa imperdível.
Quando passamos pela Cinelândia, temos o prazer de ver o Teatro Municipal. Sujo e encardido por muito tempo, nosso teatro sofreu uma reforma há alguns anos e agora reluz em verde e dourado. A construção, iniciada em 1906 e concluída em 1909, foi inspirada no teatro mais conhecido da França, o Ópera de Paris. E é justamente sobre esse teatro que tivemos um excelente documentário em nossas telonas. “A Ópera de Paris” fala do cotidiano do teatro mais conhecido da França. A impressão que se dá é a de que o Ópera de Paris por fora é um grande museu, tamanha a sua beleza e ornamentação. Mas, quando adentramos o teatro, vemos que há todo um mundo lá.
E é esse mundo que o documentário mostrou com excelente maestria. Praticamente tudo do teatro estava lá, desde a direção até o pessoal da limpeza, passando pelo grande corpo de artistas que trabalha lá diariamente. Pudemos ver no filme os ensaios de balé, do coro, a nova promessa do canto lírico vinda direto da Rússia (e que ainda não sabia falar francês), a organização dos ensaios de óperas nos bastidores, a parte administrativa, etc., etc. Um momento muito interessante foi ver o cotidiano do diretor do teatro, que tinha que lidar com questões muito espinhosas tais como: corte de verbas, corte de pessoal, greve de funcionários, etc. O mais interessante era ver como diretor tratava a questão do corte de pessoal, sempre barganhando que o mínimo de funcionários fosse cortado, assim como respeitava os sindicatos e os movimentos grevistas. Ou seja, durante os dias de greve, os espetáculos até eram realizados, mas de forma incompleta ou deficiente. E algumas pessoas insistiam em ficar para o jantar antes do espetáculo e assistir ao espetáculo meia boca mesmo, em solidariedade à casa. Coisas simplesmente inimagináveis em certo país subdesenvolvido da América do Sul, cujo nome começa com “B” e não é a Bolívia. Outra coisa surpreendente foi ver uma reunião da direção discutindo o excessivo preço das óperas para o público.
Mas a Ópera de Paris também faz um trabalho social e dá aulas de música para comunidades carentes, formando até grupos de músicos infanto-juvenis. Pudemos ver as aulas das crianças e sua exibição para o público na formatura final.
E quando um grande astro desfalca a ópera em cima da hora e é necessário que outro medalhão o substitua? Isso também aparece no filme, de uma forma até suave, pois o substituto conseguiu ter um baita de um jogo de cintura para interagir com a equipe, tendo pouco (ou até nenhum) momento para o ensaio. Coisas do dia a dia de um teatro da magnitude da Ópera de Paris.
O jovem cantor lírico foi um momento todo especial do filme Pudemos acompanhar a ligação onde ele ficou sabendo que havia sido escolhido pelo teatro, a sua chegada, as medidas para as roupas, sua familiarização progressiva com o idioma francês, o encontro com um grande ídolo, sua amargura ao errar um ensaio e o triunfo de um espetáculo bem sucedido. São pequenas histórias como essa que dão um sabor todo especial ao documentário.
Assim, “A Ópera de Paris” é um filmaço sobre o grande teatro francês que se torna um programa obrigatório e um filme para se ver, ter e guardar, pois mostra em detalhes o cotidiano de uma grande atração turística francesa. Programa imperdível.
Eu nunca tinha visto “A Primeira Noite de Um Homem”, o filme que colocou Dustin Hoffman nos holofotes, com a trilha sonora imortalizada por Simon e Garfunkel. Volta e meia, a gente fica com essas lacunas vergonhosas na nossa carreira de cinéfilo e precisa tapá-las de um jeito ou de outro. Pois bem, no ano de 2017, comemorou-se os cinquenta anos do filme e foi feita uma nova restauração na película, que entrou em cartaz. Essa foi uma oportunidade de ouro para se ver o filme e eu não a perdi. Afinal, foi um filme que ganhou o Oscar de melhor diretor para Mike Nichols em 1968, e que ganhou cinco Globos de Ouro (melhor filme de comédia ou musical, melhor diretor, melhor atriz de comédia ou musical para Anne Bancroft, melhor promessa feminina para Katharine Ross e melhor promessa masculina para Dustin Hoffman).
E quais são as impressões dessa película? Confesso que ela me impressionou muito, principalmente o inventivo roteiro, discutindo temas que deveriam ser grandes tabus de sua época. Como o filme tem cinquenta anos, creio que não será pecado mortal cobrir esse texto com spoilers.
Temos aqui o personagem Ben Braddock (interpretado por Hoffman), um jovem estudante que terminou sua faculdade com todos os méritos possíveis e imagináveis, sendo celebrado por pais, parentes e amigos numa festa em sua casa após sua formatura. O problema é que Ben não suportava mais tantas bajulações e se escondeu num quarto. Lá, apareceu a senhora Robinson (interpretada por Anne Bancroft), esposa do melhor amigo (e sócio) de seu pai, que lhe pediu uma carona para a sua casa. Ben atendeu ao pedido e levou a respeitável senhora para o seu lar no seu carro conversível. Lá, a senhora o convidou para entrar e tentou seduzi-lo. Ben resistiu de forma muito relutante e, por pouco não foi flagrado pelo marido da senhora Robinson. O sr. Robinson, inclusive, disse ao rapaz que ele deveria mais aproveitar a vida, não suspeitando que a esposa tinha tentado seduzir Ben. O moço acabou acatando a sugestão do sr. Robinson e tornou-se amante da senhora. Os dois ficaram meses se encontrando num quarto de hotel, até que Ben começou a querer conversar com a sra. Robinson, para conhecer mais detalhes de sua vida. Desta vez, foi a senhora Robinson que ficou relutante. A coisa esquentou quando a senhora Robinson proibiu terminantemente Ben de sair com sua filha Elaine (interpretada por Katharine Ross), que também estava de chegada para passar uns dias com os pais. O problema é que os pais de Ben viam a chegada de Elaine como uma chance de ouro de casarem os dois, o que obrigou Ben a sair com a moça, pela qual se apaixonou desesperadamente. Só que Ben teve que enfrentar a ira da sra. Robinson, que ameaçou contar todo o ocorrido à filha, que também se apaixonou por Ben. A partir daí, o filme tomou caminhos tortuosos, que trabalhavam o inusitado, o cômico e o dramático, com um desfecho muito ousado.
O que mais impressiona nesta película, em primeiro lugar, é o ousado. Vemos aqui uma relação extraconjugal entre uma mulher mais velha e um pós-adolescente virgem, numa época em que fica bem claro que os pais de uma classe média alta arranjam os casamentos dos filhos. Para piorar a situação, o rapaz ainda se apaixona pela filha de sua amante. É bem provável que esse filme tenha sido visto com reprovação por setores conservadores da época. Mas também o filme pode ter sido muito celebrado, em virtude daqueles também terem sido anos de efervescência cultural. Isso fica claro quando o homem conservador que aluga o quarto para Ben em Berkeley diz que detesta agitadores. Esse personagem, inclusive, é colocado como alívio cômico, assim como os pais de Ben, que entram numa espécie de histeria quando o moço avisa que vai casar com Elaine. Ou seja, o pensamento conservador é meio que tratado de forma ridícula e caricata no filme. Mas a grande ruptura com o pensamento conservador está mais ao final, quando Ben, depois de andar por quilômetros e quilômetros, consegue tirar Elaine do altar e fugir com ela de ônibus. Lá, pudemos ver toda a ira do conservadorismo expressos nas faces do noivo de Elaine e do casal Robinson, totalmente desmantelado pela relação extraconjugal, mas que ainda jogava as fichas da honra da família no casamento tradicional da filha com um moço de bom berço. Elaine, ao fugir do altar com Ben, destrói o último resquício de conservadorismo em nome de uma vida feliz e do amor, numa mostra de como um pensamento vanguardista pode ser piegas às vezes! De qualquer forma, ainda assim esse é o happy end que todo mundo quer ver e que funciona muito bem na película.
Em termos de atuação, esse filme se resume a dois nomes: Hoffman e Bancroft. O primeiro chega de forma avassaladora ao estrelato, dizendo firmemente ao que veio. Um ator que conseguiu ser dramático no momento certo, tímido no momento certo, explosivo no momento certo, tratando com maestria todas as matizes de sua atuação, que não foram poucas. Bancroft teve uma atuação um pouco mais plana, sem as violentas matizes que eram exigidas de Hoffman, mas seu estilo gélido em algumas horas, usando o jovem como um mero brinquedo sexual, e seu estilo agressivo, principalmente quando proibia Ben de se encontrar com Elaine, chegavam a assustar. Seu momento mais forte foi quando Elaine descobre do relacionamento de Ben com sua mãe. Lá, Bancroft deu toda uma fragilidade à sua personagem, onde, destroçada, ela dá um adeus a Ben.
Assim, “A Primeira Noite de Um Homem” é uma grande película do passado, que fez cinquenta anos em 2017 e que merece ser lembrada e celebrada como uma das joias da História do Cinema. Uma película que revela a efervescência cultural de seu tempo, desafiando parâmetros altamente conservadores, e trabalhando com o altamente inusitado. Tudo isso com uma trilha sonora magistral. Uma obra-prima.
Uma co-produção argentino-uruguaia na área. “Minha Amiga do Parque”, de Ana Katz, é uma película, acima de tudo, sobre a fragilidade que a solidão impõe às pessoas. Tudo isso acompanhado de bebês, carrinhos, mamadeiras e passeios no parque.
Vemos aqui a história de Liz (interpretada por Julieta Zylberberg), uma mãe de primeira viagem que precisa cuidar de seu filho com alguns meses de vida, sozinha. Isso porque seu marido está em viagem de trabalho. O cotidiano de Liz é ficar totalmente dedicada à criação de seu filho, tendo poucas formas de companhia. Esse detalhe, mais o arrependimento que ela teve de não produzir leite para seu filho deixaram-na extremamente fragilizada. Um belo dia, Liz encontra Rosa (interpretada por Ana Katz), que também tem uma criança. Logo, as duas começam uma amizade. Mas a forma como Rosa se comporta, seja incitando Liz a sair de uma lanchonete sem pagar a conta, seja sem ter qualquer pudor de ser pidona com as coisas de Liz, seja falando um monte de mentiras, incomoda desde o primeiro instante. O filme, a partir daí, vai desenvolvendo essa ideia e a gente fica na expectativa de como Liz, fragilizada pela solidão, vai ser ou não um alvo fácil para Rosa, que parece ser, no mínimo, uma irresponsável. Ou mau-caráter mesmo…
O filme, que parece ser uma historinha água com açúcar, vai paulatinamente ganhando tons dramáticos, à medida que Liz aprofunda suas relações na rua. O caminho que essas amizades tomam parece não ser o melhor, e a história vai dando sinais disso. A gente espera que Liz quebre a cara fragorosamente ao final do filme. Isso vai mesmo acontecer? Chega de tantos spoilers.
As atrizes estiveram muito bem. Julieta Zylberberg teve uma atuação cativante, sobretudo nos seus momentos de fragilidade. Ela conseguia envolver bem o espectador no clima de solidão e tristeza na qual estava metida. Já Ana Katz funcionou bem como a amiga falsa, interesseira, sonsa e irresponsável de Liz. O mais interessante é que não temos uma personagem simples e plana no caso de Rosa, sendo mais complexa até do que a própria protagonista.
Mesmo que façamos algum juízo de valor sobre as personagens, o filme deixa bem claro que quer destacar as suas características humanas, mostrando não somente os defeitos, mas também as virtudes e fraquezas, sobretudo das personagens Liz e Rosa.
Assim, se “Minha Amiga do Parque” é uma película relativamente curta (cerca de 86 minutos), podemos destacar a fragilidade que a solidão impõe como tema principal, seguida pela construção das personagens, que se são marcadas inicialmente por juízos de valores, ainda assim elas são exibidas como figuras humanas com defeitos, virtudes e fragilidades. Temos uma protagonista estressada e no fio da navalha em virtude de sua solidão. E uma antagonista que, apesar de interesseira, também deixa escapar seu lado emotivo. Nada de tão pirotécnico (o desfecho da película se faz num tremendo anticlímax), num choque de realidade que elenca o humano como fator principal.
Sabe quando você vê o trailer de um filme e acha que ele será apenas uma diversão média, um passatempo? E quando você vê a película, ela havia escondido o jogo e foi muito mais do que você pensou? Pois é. Essa é a impressão de “Pequena Grande Vida”, um filme que a gente pode classificar como comédia, mas também como drama, mas também como tendo uma pitada de ficção científica e de filme reflexivo. Ou seja, ele não se enquadra propriamente em nenhum gênero e, ao mesmo tempo, se enquadra em vários. Dá para perceber como tal filme é bem curioso e um tanto peculiar, perto do que se tem visto por aí.
Temos aqui a história de Paul Safranek (interpretado por Matt Damon), que testemunha, junto com a esposa Audrey (interpretada por Kristen Wiig) um revolucionário programa de encolhimento humano. Tal programa era benéfico para o encolhido que, ao ficar com apenas 12,7 cm, ele consumia muito menos que um humano comum e sua vida ficava extremamente barata. Assim, o encolhido tornava-se um milionário com uma vida totalmente idílica, sem precisar trabalhar para o resto da vida (você só trabalha se quiser). Ainda, com um consumo menor de recursos, a pessoa diminuta passa a contribuir para o meio ambiente, pois a explosão populacional esgota os recursos de nosso planeta. O casal faz um pacto e encara o processo. Mas Audrey rói as coradas e deixa Paul sozinho lá, pequenininho. Nosso protagonista vive em depressão até que seu vizinho, o extravagante sérvio Dusan (interpretado pelo sempre eficiente Christoph Waltz), dá mais uma de suas barulhentas festas e Paul, ao invés de reclamar, decide experimentar. Depois de uma noitada daquelas, ele conhece a faxineira vietnamita Ngoc Lan Tran (interpretada por Hong Chau), uma moça que vai transformar completamente sua vida. Paremos por aqui com os spoilers.
Esse filme consegue brincar muito bem com os chamados plot twists. Nosso próprio protagonista Paul, lá para o final da película, fala de como sua vida sofreu uma série de reviravoltas que ele nem acreditava que passaria se isso lhe fosse dito cerca de um ano antes (o filme tem uma série de saltos no tempo, alguns curtos, de alguns meses, outros um tanto longos, de vários anos). Com tantas mudanças, fica até difícil para a gente classificar o filme. Como foi dito acima, ele tem caras de vários gêneros diferentes, e, por incrível que pareça, isso funciona bem, apesar de parecer inicialmente algo um tanto fragmentado, mas o fio condutor da narrativa convence e consegue amarrar bem a variedade de temas e sub-tramas que o filme oferece ao público.
É claro que o filme tem alguns chamarizes, principalmente no elenco. As presenças de Damon e Waltz já nos trailers atraem o espectador. Há até a aparição de dois atores mais conhecidos que nem foram ventiladas no trailer e são participações para lá de rápidas e especiais. Mas não vou dizer aqui quem são. Uma é muito conhecida de nós, brasileiros, ou seja, tem uma certa proximidade com a gente. Outra é de uma atriz bem conhecida que apareceu recentemente num filme que fala de uns tais jedis.
Agora, não tenha dúvida, caro leitor. Apesar dos trunfos do elenco, o que dá realmente valor ao filme é a qualidade da história contada e as suas variações. Com tanta coisa diferente acontecendo à medida da exibição, o espectador fica com a atenção presa à tela o tempo todo. Assim, “Pequena Grande Vida” consegue ser um filme surpreendente, pois tem cara de uma diversão mais morna, mas se revela algo mais interessante do que aparenta. Vale a pena dar uma conferida.
Mais um filme indicado ao Oscar em nossa série. “Trama Fantasma” concorre a seis estatuetas (Melhor Filme, Melhor Ator para Daniel Day-Lewis, Melhor Diretor para Paul Thomas Anderson, Melhor Atriz Coadjuvante para Lesley Manville, Melhor Música Escrita Para Filme e Melhor Figurino). Esse filme vem com Daniel Day-Lewis como medalhão principal, sempre sendo um nome forte para o prêmio de Melhor Ator. Mas ele não é o único trunfo para “Trama Fantasma”.
Do que consiste a história? Temos aqui a trajetória de um grande estilista, Reynolds Woodcook (interpretado por Day-Lewis), que leva o seu trabalho muito a sério, sendo extremamente metódico e perfeccionista. Ele tem como braço direito Cyril (interpretada por Manville), uma espécie de secretária que assegura que tudo esteja do jeito que Woodcook quer, até a forma como sua comida é feita. Um belo dia, Woodcook conhece uma garçonete de um estrato social mais baixo, Alma (interpretada por Vicky Krieps). A moça, que tem autoestima baixa, se sente muito bem quando veste as roupas projetadas por Woodcook como modelo. Mas a chatice do estilista vai pouco a pouco enervando a moça. Até que, apaixonada por Woodcook, e não aguentando mais as patadas do homem, ela resolve tomar uma atitude drástica, com um risco muito calculado.
Dá para dizer que a história tem um quê meio surreal. Levada por uma belíssima trilha sonora e um figurino de tirar o fôlego (também pudera, o protagonista é um renomado estilista), o filme, paradoxalmente, mostra momentos muito tensos e, com todas as letras, odiamos Day-Lewis, sinal de que ele arrebentou em seu papel. Sua forma de ser toda metódica e cheia de manias espezinha mortalmente Alma, que é simples, pura e doce em seu amor. Só que há um limite para tudo e a solução inusitada de Alma para o conflito exibe uma forma, digamos, peculiar de empoderamento feminino no filme. É claro que essa característica mais irritante de Woodcook terá um motivo pregresso que o obriga a ficar do jeito que é. Mas a saída encontrada por Alma meio que o liberta desse trauma. É como se ele tivesse consciência dos motivos de seu trauma e de sua forma de ser por causa disso, mas não encontrasse uma saída para não permanecer em tal condição. Ele é cheio de frescura, um chato de galocha e sabe disso, mas não sabe como sair disso. E Alma lhe dará a saída, por mais estranha que possa parecer e, por que não, um tanto engraçada, apesar de tudo ser feito num clima de drama e não de comédia. Pela peculiaridade do roteiro, talvez esse filme tenha recebido as indicações de Melhor Diretor e de Melhor Filme, Mas creio que tinha uma vaguinha aqui para roteiro também.
Além da soberba atuação de Day-Lewis, a indicação para Lesley Manville é merecida, embora a concorrência com Allison Janney em “Eu, Tonya” seja muito complicada. De qualquer forma, Manville deu muita dignidade ao seu papel, comportando-se como uma verdadeira Lady que sabia ser dura nos momentos certos tanto com Woodcook quanto com Alma. Era legal de se ver que ela não perdia a elegância e a serenidade, por mais que a barra pesasse. Já Vicky Krieps carregou a responsabilidade de ser a vítima da história, algo que pode atrapalhar um pouco, motivo esse que provavelmente deve ter ajudado a fazer sua atuação parecer um pouco plana, embora ela tivesse momentos melhores. Dá para simpatizar com a moça.
Assim, “Trama Fantasma” é mais um filme que concorre ao Oscar e, talvez, um dos que tenha a história mais curiosa e inusitada (“A Forma da Água” também está nesse páreo). Não fosse por essa característica, esse filme somente serviria para a gente ver o Daniel Day-Lewis. Que bom que não é somente isso.
Para o quarto longa, Nimoy e Bennett decidiram que o astral deveria melhorar. Depois do exercício kubrickiano e sombrio do primeiro filme, passando pela morte de Spock no segundo filme e a morte do filho de Kirk no terceiro, além da destruição da Enterprise, seria interessante tratar o quarto longa com mais leveza e alegria. O filme “A Procura de Spock” havia sido um sucesso, o que rendeu uma série de regalias a Nimoy na Paramount. Jeff Katzenberg sugeriu a participação de Eddie Murphy, um devotado fã de “Jornada nas Estrelas”. Murphy chegou a colocar os executivos da Paramount para esperar o início da reunião onde ele assinaria um contrato de um salário de um milhão de dólares, pois ele estava assistindo a um episódio da série clássica e não queria ser interrompido. Nimoy agiu com cautela, pois para o projeto dar certo, o papel de Murphy deveria ser relevante, caso contrário, as críticas seriam muito severas. Murphy ficou no aguardo enquanto o roteiro era trabalhado. Ele contatou cientistas do projeto SETI (Search for Extrarrestrial Inteligence, Busca por Inteligência Extraterrestre) em busca de ideias para o filme. Enquanto isso, Bennett assistia aos episódios da série clássica e, juntamente com Nimoy, concluíram que a história deveria tratar de uma viagem no tempo. Nimoy viajou para a Europa para gravar uma minissérie para a NBC e tinha tempo livre para pensar no roteiro. Deveria haver na história ligações com o filme anterior. A tripulação da Enterprise estava no exílio em Vulcano, tendo que enfrentar a corte marcial na Terra, dispunha de uma ave de rapina klingon e Spock estava vivo, mas com sua memória praticamente apagada, tendo que se reeducar. Enquanto eles voltassem para a Terra, eles teriam que, deliberadamente, fazer uma viagem no tempo. Foi escolhida a São Francisco de 1986, ou seja, dos dias atuais para a época da produção do filme. Faltava o motivo para a viagem ao passado. Na época, Nimoy estava fazendo leituras sobre a extinção de espécies e lhe veio a ideia de que uma epidemia poderia estar assolando a Terra no século 23 e a cura estaria numa espécie já extinta nesse século mas ainda viva no século 20. Entretanto, o tema da epidemia era pesado demais e a ideia era fazer um filme mais leve. Numa conversa com um amigo, Nimoy tomou conhecimento das baleias jubarte como uma espécie em extinção e que se comunicavam por uma espécie de canto. Nimoy conversou com Bennett e eles desenvolveram mais a ideia. O canto das baleias era uma comunicação com uma inteligência extraterrestre. Mas aí as baleias desapareceram com a extinção e essa inteligência alienígena retorna no século 23 para estabelecer contato, o que provoca interferências nos sistemas de energia e tempestades. Assim, a volta ao passado seria para pegar baleias jubarte e levá-las ao século 23 para tentar a tal comunicação. Dois roteiristas foram contratados para começar o roteiro. Mas… e Eddie Murphy? Como ele se encaixaria na história? Houve algumas tentativas de aproveitá-lo, mas sem sucesso. Por fim, tanto a equipe de “Jornada nas Estrelas” quanto Eddie Murphy decidiram que não seria bom para ninguém que ele participasse do filme.
O trabalho dos dois roteiristas contratados não deu certo e Harve Bennett escreveu o início e o fim do roteiro. Nicholas Meyer foi chamado e escreveu a parte em que eles estavam na São Francisco de 1986, onde seu senso de humor foi muito útil. Nimoy contribuiu com o toque neural no punk com o rádio no volume máximo dentro do ônibus, experiência desagradável pela qual o ator realmente passou. Nessa época, Nimoy ainda fumava e mostrava sinais de falta de ar. Para não prejudicar sua participação no projeto do filme, ele parou de fumar, o que lhe rendeu mais alguns anos de vida. Nimoy passou até a cuidar melhor de sua saúde, fazendo exercícios físicos, pois ele teria que, por durante toda a produção do filme, simultaneamente dirigir e atuar, o que implicava numa carga de trabalho enorme. Muito trabalho foi feito para se encontrar as locações e fazer as imagens das baleias, já que o aquário escolhido para as filmagens não comportava um casal de jubartes. Aí entrou novamente a equipe da Industrial Light And Magic em ação, além de uma equipe que criou baleias mecânicas ou partes de baleias mecânicas em tamanho real (como o rabo). Somente duas tomadas com baleias vivas foram feitas no filme: uma com jubartes na superfície do oceano e outra em que as baleias vão à superfície rapidamente durante a sequência da caçada.
Na escolha do elenco, alguns membros da série clássica voltaram, como Majel Barrett (a agora comandante Chapel) e Grace Lee Whitney, a ordenança Rand, além de Marc Lenard (Sarek) e Jane Wyatt (Amanda), os pais de Spock. Robin Curtis voltou a interpretar Saavik e Catherine Hicks interpretou a bióloga de cetáceos, Gillian Taylor. O mais curioso é que Nimoy, que já estava maravilhado com Hicks, só a contratou depois do aval de Shatner, após uma visita de Nimoy e Hicks ao Equestrian Center, onde Shatner tinha seus amados cavalos. Com uma piscadela, Shatner aprovou a moça, que faria muitas cenas com Kirk. Reza a lenda que os cavalos gostaram da moça, o que encantou ainda mais Shatner.
Uma curiosidade sobre as filmagens é que parte delas foi feita nas ruas, em meio a pessoas comuns que não atrapalharam, mesmo com o elenco de “Jornada nas Estrelas” sendo muito conhecido por todos. Mas a cena em que quase Kirk é atropelado teve que ser muito bem coreografada, em virtude do perigo envolvido. Foi uma cena rodada várias vezes em três horas e que cada tomada demorava cerca de vinte minutos para ser feita, já que doze carros tinham que dar uma volta no quarteirão. O dia já estava terminando e uma certa aglomeração de pessoas acompanhava a filmagem quando, depois da décima tentativa, tudo deu certo, para alívio de Nimoy. Na cena, o motorista xinga Kirk de paspalho, que retribui com um “paspalho é a mãe”.
Mas houve casos em que algumas cenas não puderam ser filmadas por imprevistos, como uma de Sulu, que era de São Francisco e, numa conversa com uma criança, descobria que falava com seu tataravô. Mas a criança escolhida para a cena ficou muito nervosa e a equipe teve que abandonar a ideia, o que chateou muito George Takei, o ator que interpreta Sulu. Houve, também, “felizes acidentes”, como na cena em que Chekov e Uhura perguntavam às pessoas na rua onde haveria navios nucleares para conseguir um material radioativo para fazer funcionar a ave de rapina em que vieram. Mas o ano era 1986 e a guerra fria ainda perdurava. E Chekov, russo que era, perguntando sobre navios nucleares americanos na rua. Essa era a piada. Algumas pessoas perguntadas na rua eram figurantes contratados, mas outras não. A cena foi filmada bem ao estilo de “câmera indiscreta”. Muitas pessoas nem deram confiança para Chekov e Uhura, achando que eram loucos. Mas uma moça de longos cabelos negros deu atenção a eles, respondendo de forma espontânea que a base ficava do outro lado da baía. A cena foi incluída no filme depois de um contrato feito com a moça.
Um fato desagradável que ocorreu foi com relação à cena da comunicação da sonda com as baleias. Os produtores (incluindo Bennett) queriam que houvesse legendas no diálogo entre as baleias e as sondas. Mas Nimoy não queria tais legendas, pois numa conversa com cientistas especializados nas possibilidades de uma comunicação entre humanos e extraterrestres lhes disseram que, por muito possivelmente terem uma cultura e existência diferente da dos humanos, não haveria uma garantia de comunicação tão linear entre humanos e alienígenas. Logo, Nimoy não quis “antropomorfizar” a sonda. E bateu o pé, pois ele havia recebido carta branca da Paramount para fazer o filme como quisesse e, como diretor, tinha a última palavra, ao contrário das séries de tv, onde o produtor tinha a última palavra. E como Bennett era produtor de séries de tv, houve uma certa tensão entre ele e Nimoy, que acabou ganhando a queda de braço e a cena foi ao filme sem legendas, preservando o mistério da sonda como Nimoy queria.
O personagem de Spock também sofre um processo de reconstrução nesse filme, já que ao final de “À Procura de Spock”, sua mente estava praticamente vazia. Ele faz testes simultâneos e rápidos com o computador para preencher novamente sua mente com informações. Mas não consegue responder à pergunta “Como se sente?”, por não entendê-la. Sua mãe, Amanda, é que vai lhe lembrar de seu lado humano e emocional. E aí Spock, ao longo do filme, chegará à conclusão bem emocional e humana de que todos devem se reunir para salvar Chekov, pois agora “a necessidade de um supera as necessidades de todos”, invertendo a ideia básica do segundo filme, que já havia sido invertida no terceiro. Ao final, quando Spock se despede de seu pai, Sarek, este lhe pergunta se ele quer enviar uma mensagem a sua mãe. Ao que Spock responde: “Diga à minha mãe… que me sinto bem”, integrando novamente as partes vulcana e humana do personagem. Não foi à toa que “Jornada nas Estrelas 4, A Volta Para Casa” arrecadou cem milhões de dólares de bilheteria e até então era o filme de maior recorde de arrecadação de bilheteria, além de ser considerado por muitos fãs o melhor longa da série clássica.
No próximo artigo, vamos falar de mais algumas experiências de Nimoy na direção. Até lá!
A Marvel ataca novamente, lançando seu novo filme, “Pantera Negra”. E podemos dizer que o filme solo desse novo super-herói, apresentado ao mundo dos quadrinhos ainda na década de 60, mostra a incrível capacidade da Marvel de se reinventar, fazendo-o sempre com extrema competência. Devo confessar que a película me arrebatou em cheio. Sempre fui um fã declarado dos filmes do Capitão América (tenho todos os três DVDs desse herói), mas “Pantera Negra” é uma película que estoura a escala, pois ela tem um gosto muito especial de algo diferente de tudo o que foi visto até aqui, por se passar num reino fictício africano, a famosa Wakanda, riquíssima por ter o seu vibranium e com uma tecnologia avançadíssima, escondida aos olhos do mundo para não ser explorada economicamente pelo imperialismo como nos demais rincões africanos.
Mas, por que o filme impressiona tanto? Em primeiro lugar, devo dizer aqui que, para se fazer uma análise mais detalhada do filme, os spoilers serão inevitáveis. Ainda, eu, na qualidade de professor de História, devo dizer que Wakanda surpreende, inicialmente, por conciliar de forma extremamente harmoniosa a tradição e a modernidade. Estes dois elementos, vistos como antagônicos muitas vezes, coexistem aqui sem qualquer conflito. Todos os rituais tribais que tiveram influência das transformações que o vibranium provocou na natureza, assim como aqueles rituais que dizem respeito à sucessão do trono, não impedem ou atrapalham em nada o desenvolvimento da tecnologia do país. O próprio uniforme do Pantera Negra corrobora essa tese, pois ele é, ao mesmo tempo, feito por um material extremamente moderno, mas preserva um desenho tribal. O laboratório desenvolvido pela irmã do rei T’Challa (interpretado por Chadwick Boseman), onde você pode comandar virtualmente e a muitos quilômetros de distância um carro ou veículo aéreo, é de tirar o chapéu, também decorado com motivos tribais. Aliás, a inteligente irmã me pareceu uma grande homenagem ao Q de James Bond.
O filme tem muitas outras virtudes. Os críticos da Marvel falam que seus filmes têm muitas piadas. Dessa vez, podemos dizer que as piadas foram bem poucas e precisas, principalmente quando fazem galhofa com o imperialismo, usando termos como “colonizadores” ou fazendo pouco caso dos americanos. Ainda, a morte do vilão Killmonger (interpretado magistralmente por Michael B. Jordan) foi arrebatadora, pois T’Challa o leva para ver o pôr-do-sol em Wakanda e fala que seu ferimento pode ser curado, ao que Killmonger responde, se ele vai viver preso, é melhor que não, e pede que seu corpo seja jogado ao mar, da mesma forma que os africanos pulavam ao mar dos navios negreiros, pois sabiam que iriam viver presos e escravizados, preferindo a morte. Impossível segurar as lágrimas. Confesso que essa foi a primeira vez que chorei com a morte de um vilão da Marvel, esse sim um vilão com conteúdo, como falaremos mais abaixo.
Ainda relacionando o filme com a questão do imperialismo (isso é feito de forma bem vasta), há o seguinte debate: Wakanda, com sua avançada ciência e tecnologia, assim como a posse do vibranium, deve permanecer escondida do mundo para se proteger de invasões, guerras e explorações provocadas pelo mundo “civilizado” branco ocidental, ou deve se revelar ao mundo e ajudar nações africanas mais pobres, assim como pessoas da etnia negra que sofrem com a pobreza e o preconceito no mundo todo, já que Wakanda tem condições econômicas e tecnológicas para isso? A posição de T’Chaka, pai de T’Challa e antigo rei de Wakanda era o isolamento total para proteger o seu povo. Mas isso acabou fazendo com que o rei matasse o seu próprio irmão, que pensava justamente numa abertura de Wakanda para o mundo. Tal situação deixou Killmonger, que era o sobrinho do rei, órfão, e o rapaz iniciou uma cruzada cheia de ódio para tomar o trono de Wakanda, abrir o país e declarar guerra contra os antigos imperialistas, dando o troco em relação ao que os europeus fizeram com a África. Ele até parafraseou uma expressão da empáfia inglesa quando ela era uma potência imperialista no século XIX: “No Império Inglês, o Sol nunca se põe”, substituindo, na frase, a Inglaterra por Wakanda (os ingleses diziam isso, pois se gabavam de ter colônias no mundo inteiro). Ou seja, é da intenção de Killmonger fazer de Wakanda uma potência imperialista igual às mesmas que tripudiaram do continente africano. Assim, Killmonger é uma espécie de monstro criado pelo pai do mocinho da História, ou seja, o rei T’Chaka. E Killmonger, na ânsia de afirmar seu povo perante o colonizador branco, torna-se vingativo e agressivo. Isso é uma prova de que não temos aqui personagens planos, ou seja, mocinhos totalmente bonzinhos e bandidos totalmente maus. Os mocinhos erraram no passado, ao passo que até entendemos a raiva contida nos bandidos (embora não concordemos com seus procedimentos). Daí a afirmação que fiz acima de que temos um vilão com conteúdo nesse filme, onde sua maldade, embora não justificável, seja compreensível. Mocinhos e bandidos têm a sua visão de mundo, cada uma com suas virtudes e defeitos.
Ao fim, Wakanda se revela para o mundo e ajuda os mais necessitados, sem se envolver em guerras. Essa é a primeira cena pós-créditos, onde T’Challa discursa nas Nações Unidas, revelando as intenções de seu país e é recebido com sarcasmo pelos petulantes brancos. Um sorrisinho maroto do rei é a resposta igualmente sarcástica e um deboche com o sentimento de superioridade imperialista dos brancos.
E o elenco? Essa é outra grande virtude do filme. Não há a menor sombra de dúvida de que há uma segregação no meio artístico. As reclamações de falta de indicação de atores e diretores negros ao Oscar nos últimos anos corrobora essa segregação. Há menos espaço no meio artístico para negros, o que os obriga a serem extremamente talentosos. E aí, por incrível que pareça, nesse filme temos uma verdadeira constelação de estrelas negras, somente para parafrasear o samba enredo da Beija-Flor de 1983, quando venceu o carnaval daquele ano, assim como venceu o carnaval do ano presente. Comecemos por Chadwick Boseman. Ele já havia mostrado todo o seu talento no filme biográfico de James Brown, e com sua participação como Pantera Negra em “Guerra Civil” muito marcante também. Já Michael Bakari (nobre promessa em Swahili) Jordan dispensa apresentações. Suas atuações em “Fruitvale Station” e em “Creed” foram marcantes e testemunhas de seu grande talento. E Lupita Nyong’o? Mais outra muito conhecida de todos, não pela voz de Maz Kanata em “Guerra nas Estrelas”, mas pelo seu Oscar como coadjuvante em “Doze Anos de Escravidão”. Até hoje, o sofrimento de sua personagem naquele filme é de se levar às lágrimas. E aqui ela fez um excelente par romântico, mais empoderado do que nunca, com T’Challa. Ela estava simplesmente deslumbrante e elegantérrima! A atriz Danai Gurira, que interpretava a General Okoye, era a essência do empoderamento feminino num filme cuja etnia negra era o escopo principal. Okoye era a chefe da Guarda Real, as Dora Milaje, formada somente por mulheres que, no filme, mais lembravam a Grace Jones, mas na minha cabeça lembravam mais a Pinah, a antológica passista da Beija Flor. Sua combatividade e elegância combinavam maravilhosamente bem, saindo da boca da personagem as melhores tiradas contra os brancos, americanos e imperialistas em geral. A irmã de T’Challa, Shuri, interpretada por Letitia Wright, foi uma gratíssima surpresa, pois ela era a jovem cientista que inventava e produzia todas as inovações tecnológicas de Wakanda. Mesmo que alguns achem que ela pode parecer nova demais para o cargo, a moça não deixa de ser uma inspiração para um monte de meninas por aí que têm a sua idade e não têm qualquer perspectiva futura de vida. Daí a importância de tal personagem. Não podemos nos esquecer também de Daniel Kaluuya (de “Corra!”) e das participações, para lá de especiais, de Andy Serkis como um risonho Garra Sônica, do “Hobbit” Martin Freeman, de Angela Bassett, como a elegante Rainha-Mãe, e, para coroar a cereja do bolo, Forest Whitaker! Um filme, só por ter esse elenco, já é um grande presente para o espectador.
Assim, por todos esses motivos, ouso dizer que “Pantera Negra” é o melhor filme da Marvel de todos os tempos, se formos considerar roteiro e elenco. Esse é um filme diferente de todos os demais, estourando a escala em termos de qualidade, e será difícil de superá-lo, pois ele carrega um conteúdo e uma mensagem muito diferentes do que vimos até agora em todas as películas da Marvel. Elencar a África como algo positivo e nobre, acima das mesquinharias dos brancos colonizadores, foi uma tremenda jogada de mestre na luta contra o racismo e pelo respeito à diferença e tolerância. O filme deu o seu recado sem ser chato, piegas ou rançoso, transformando o negro em agente de transformação social ao invés de vitimizá-lo. Esse é o caso mais gritante de filme para se ver, ter e guardar. E um programa imperdível para todos, seja os fãs da Marvel, seja os cinéfilos de plantão.