Mais um episódio da primeira temporada de The Orville. Vamos falar do terceiro episódio, “Uma Questão de Gênero”, que mostra, como The Orville busca resgatar os melhores episódios reflexivos de Jornada nas Estrelas, mostrando que o formato que víamos nas décadas de 60, 80, 90 e 2000 ainda é bastante pertinente hoje em dia.
Qual é o plot? A filha de Bortus nasce, mas o casal não está satisfeito. Quando nasce uma fêmea, isso é visto como uma aberração pela cultura de Borthos e é necessário fazer uma troca de sexo. Bortus pede isso a Doutora Claire, que se nega a fazer a cirurgia.
No “holodeck”, Bortus invade o programa para falar com o capitão Ed de forma urgente. Ele reclama que a Doutora Claire se recusa a fazer a cirurgia. Ed acha que isso é antiético. Bortus lembra que os humanos fazem a cirurgia de lábio leporino caso seja necessário. E que no planeta de Bortus não há fêmeas. O capitão diz que eles estão numa nave da União e que o pedido dessa cirurgia violaria muitas leis, negando o pedido de Bortus.
A Orville recebe um pedido de comunicação. É um alienígena da espécie de Bortus que diz que vi enviar uma nave para se encontrar com a Orville para pegar a filha de Bortus. Ed reclama com Bortus que tal atitude pode violar as regras da União e que a espécie de Bortus faz parte da União. Além disso, Bortus acabou passando por cima da autoridade do capitão. Tudo isso vai gerar uma indisposição do capitão para com Bortus.
Ed e Kelly tomam uma bebida no bar. Ed pergunta a Kelly se eles estão se comportando corretamente para com Bortus, pois é muito fácil você condenar uma atitude de uma cultura estranha à sua. Kelly diz que alguns valores universais devem ser respeitados. Por exemplo: e se a filha de Bortus tivesse que ser morta por ter nascido menina? A cultura de Bortus teria que ser respeitada nessa situação? Ed tem uma ideia: ele coloca Bortus para lutar com Alara, que é muito forte e bate nele com força. Bortus diz que está cansado de ver as pessoas dizerem como ele deve tratar a sua filha e vai fazer o que acha melhor para ela. Revoltado, Bortus vai par seus aposentos e recebe as visitas de Gordon e John que querem ver um filme com ele. Bortus, muito a contragosto, aceita. O filme é “A Rena do Nariz Vermelho”, onde a rena em questão nasce com essa “deformidade” que vai ajudar o Papai Noel a entregar os presentes no Natal. Isso dá um “click” na cabeça de Bortus, que vai procurar seu companheiro e dissuadi-lo da cirurgia, pois ela pode fazer grandes coisas como fêmea, ou seja, eles não sabem como a cirurgia vai interferir no futuro da filha. O companheiro se nega terminantemente a aceitar que a filha continue fêmea e revela a Bortus que nasceu fêmea e fez a cirurgia. Revoltado, Bortus pergunta ao companheiro por que não contou a ele e ouviu a resposta de que o companheiro tinha medo que Bortus não entendesse e terminasse a relação. Bortus fica chateado por seu companheiro não ter revelado esse segredo. E insiste, agora, na não operação de sua filha. A nave moklana (espécie de Bortus) chega e seu representante quer levar a criança à força para a cirurgia. Mas agora o casal discorda da decisão da cirurgia. Ed entra em atrito com o representante moklano e Bortus diz que a única solução é solicitar um tribunal em seu planeta natal. O companheiro diz que eles serão totalmente ridicularizados, mas Bortus está determinado a fazer o julgamento e chama Ed para ser seu defensor. Como Ed não tem experiência, ele passa a batata quente para Kelly, que fez um ano de Direito Interplanetário. Bortus e seu companheiro vão com a criança na nave moklana e a Orville acompanhará. Bortus se despede com uma passagem literária de um grande escritor moklano (é um hábito de sua cultura).
O planeta natal de Bortus é altamente industrializado (lembra a zona industrializada de Coruscant). O julgamento se inicia. Bortus defende a tese de que a filha é que deve decidir se vai mudar de sexo ou não. Já o promotor defende a tese de que, até lá, a filha pode sofrer muitos abalos psicológicos por ser rechaçada em sua sociedade. Os moklanos acham as mulheres muito fracas. Kelly coloca Alara para mostrar sua força. Depois, Kelly faz perguntas para Gordon para testar sua inteligência. Ele, deliberadamente, responde errado para provar que os homens podem ter pouca inteligência (os moklanos acreditam que as fêmeas têm menos inteligência que os machos). O promotor pergunta a Doutora Claire se ela faria uma circuncisão em uma criança se os pais pedissem. Ela disse que isso é diferente, que não implica numa mudança de sexo. O promotor retruca dizendo que uma circuncisão é uma mudança física significativa e a criança não tem poder de decisão. A doutora diz que uma circuncisão não implica em uma mudança de vida. O promotor então diz que uma mudança de vida seria injusta para uma criança. A doutora diz que sim. O promotor diz então que uma mudança de vida para uma criança moklana que a deixasse a mercê de ser repudiada seria algo realmente injusto. Assim, a resposta da doutora reforça o argumento do promotor de que a criança deve ser operada. Ed sai do tribunal e ordena a Isaac uma varredura da superfície do planeta. Ed chama John e Alara para fazerem uma viagem às montanhas do planeta. Lá, eles encontram uma moklana fêmea, que é considerada um renomado escritor do planeta, o escritor citado por Bortus (impossível não se lembrar de Dorothy Fontana aqui). Eles levam a moklana ao tribunal, que se apresenta. Ela diz que seus pais acharam que seria contra a natureza modificar seu sexo. E se esconderam nas montanhas. Ela diz que é feliz como mulher e que é o escritor renomado da cultura moklana. Mas, apesar dessa revelação impactante, foi decidido pelo conselho de arbitragem que a filha de Bortus deve fazer a operação de mudança de sexo. O episódio termina com um Bortus arrasado, recebendo, com seu companheiro, o seu agora filho. Na Orville, Bortus e seu companheiro entram em acordo de que devem dar uma vida boa para a criança, seja ela quem se tornar. Bortus dá um bonequinho da rena do nariz vermelho para seu filho.
O que podemos dizer do episódio “Uma Questão de Gênero”? Se esse fosse um episodio de Jornada nas Estrelas, seria um típico episódio de violação ou não da Primeira Diretriz. Mas aqui em The Orville ela não existe e a querela cultural se tornou mais ácida. Se num primeiro momento, a obrigatoriedade da cirurgia de troca de sexo de um bebê parece algo abominável para os humanos, os exemplos do lábio leporino e da circuncisão são a contrapartida. Entretanto, Kelly lembrou que nem sempre podemos relativizar tudo e que alguns valores devem ser considerados universais. Ela levantou o caso hipotético da espécie de Bortus acabar com a vida das crianças que nascessem fêmeas. Ou seja, parece que aqui as discussões sobre a relativização de culturas, livres da questão da Primeira Diretriz, foram até mais ricas que o que vemos em Jornada nas Estrelas.
Esse é um episódio que também chuta o “happy end” para escanteio. Mesmo com o argumento de impacto da escritora fêmea que assume uma identidade masculina e se torna o grande nome literário de um planeta de varões (a alusão à Dorothy Fontana é imediata como dito acima), isso não foi suficiente para o tribunal moklano descartar uma tradição milenar e permitir que a criança continuasse com o sexo feminino. Um final desses soaria demasiadamente heróico, mas falso. Sabemos que a mentalidade de um povo demora para sofrer transformações e, assim, a mudança de sexo se tornou o veredicto final. Para o episódio não ficar muito cabisbaixo em seu final, o casal conseguiu se entender, tentar esquecer as mágoas e se dedicar a dar uma boa vida para seu filho, não importa quem ele será ou não. O toque da rena do nariz vermelho é uma alusão a uma opção de escolha para a criança, pois o bichinho de pelúcia representa uma alusão ao respeito à diversidade.
Dessa forma, “”Uma Questão de Gênero” pode ser considerado o primeiro grande episódio de The Orville (e, talvez, o melhor de toda a primeira temporada), por abordar a questão do respeito às culturas, mas também até onde podemos ir com essa relativização. A opção por chutar o happy end também atua como um choque de realidade que, às vezes, não vemos nos desfechos dos episódios de Jornada nas Estrelas, quando tratamos de questões de diversidade cultural. Vale muito a pena a revisita. Fique agora com o vídeo do Diário do Capitão sobre o episódio.