Mais um mangá de volume único nas bancas. “Coin Laundry Lady”, escrito e com arte de Hiro Kiyohara, é um tratado mangá de surrealismo e bizarrice à toda prova que, cá para nós, não foi lá grande coisa, de tão esquisito que ficou. O enredo é bastante simples: dois universitários vão a uma lavanderia para dar um trato em suas roupas e são surpreendidos por uma moça que vive na máquina de secar, que é totalmente louquinha de pedra.
O problema é que não temos uma história coesa do início ao fim, mas uma narrativa para lá de fragmentada, onde os protagonistas passam pelas mais loucas e inusitadas situações. Ainda, para apimentar um pouco mais a situação, o nosso mangaká também faz os famosos mangás hentai, aqueles com certo conteúdo erótico, e ele abusa de alguns fetiches por aqui como masoquismo e voyeurismo. Só que a coisa é tão bobinha que não alcança o pretenso resultado esperado de chocar (pelo menos não aos olhos de nossa cultura). O grande problema é que, por ser tão fragmentada, a narrativa até se torna confusa em alguns momentos, sem falar que é altamente bizarra e surreal.
Assim, a leitura não engrena e é altamente enfadonha. A gente até entende um pouco por que o mangá adquiriu tais contornos tão pouco ortodoxos quando vemos o depoimento de Kiyohara mais ao final, onde ele mesmo assume um quê um pouco infantil e solitário, além de assumir que a moça da máquina de secar é um alter ego seu (ambos têm hemorroidas, argh!).
Dessa forma, “Coin Laundry Lady” infelizmente não foi uma boa experiência. Se o autor tivesse, pelo menos, feito uma história com mais coesão, talvez a coisa ficasse um pouco mais aceitável. Mas do jeito extremamente fragmentado como ficou, até com uma rápida historinha totalmente diferente do contexto mais ao final, ficou um pouco difícil de acompanhar. Até porque, quando a gente compra um mangá, geralmente espera uma história que seja contada ao longo de toda a revista, que tem cerca de duzentas páginas geralmente, e não algo todo picotado. Uma pena.
Um curioso documentário brasileiro. “Ex-Pajé”, de Luiz Bolognesi, aborda a questão do etnocídio (destruição de uma cultura) nos dias atuais. Um documentário que nos dá uma ideia do que deve ter acontecido com inúmeras nações indígenas que aqui viviam nos tempos da colonização. Um documentário que dá pano para manga para pensar.
Vemos aqui a trajetória do Pajé Perpera Suruí, que tinha uma posição de importância em sua tribo até o momento em que um pastor evangélico estrangeiro chega à sua aldeia para evangelizar os índios. Nesse momento, o Pajé passa a se questionar, já que suas práticas religiosas ficaram rotuladas como “coisa do demônio” pelos habitantes, ignorando a existência de Perpera.
Ele só volta a ser aceito em sua comunidade quando passa a frequentar os cultos evangélicos, tendo uma posição altamente periférica. O problema é que uma das mulheres da aldeia é picada por uma jararaca e é internada em estado grave no hospital, com poucas chances de sobreviver. Será nesse momento que o “ex-pajé” voltará a ter uma posição central novamente, pois os índios se voltam novamente para suas tradições no intuito de tentar salvar a mulher.
Esse documentário é valiosíssimo, pois ele registra a cultura dessa tribo indígena em riqueza de detalhes. Em primeiro lugar, na maior parte do filme é falada a língua nativa da tribo e as dificuldades do próprio Perpera quando ele vai à cidade e precisa se expressar em português. Ainda, podemos ver Perpera ressaltando elementos da sua religião nativa, onde há espíritos das matas e dos rios que precisam ser evocados para lutar contra os inimigos da tribo. Para que isso aconteça, há várias práticas como, por exemplo, destruir um formigueiro, que simboliza um dos espíritos do mal, não comer a comida de branco e sim o que eles comiam antes da chegada do elemento colonizador, ou fazer uma espécie de trombeta com um grande pedaço de bambu para evocar os espíritos. Tudo isso aparece no documentário e é um registro audiovisual vivo de uma cultura que não sabemos se ainda existirá nos próximos anos, até em virtude do processo de aculturação e de evangelização, que já estão bem avançados. Só esse pequeno detalhe já espelha a importância desse filme.
É muito curioso perceber como há uma mescla da cultura branca com a cultura indígena. Os índios usam a tecnologia de celulares para gravar os cânticos de seus rituais e o facebook para denunciar a exploração ilegal de madeira em sua região, não deixando de mencionar os assassinatos de índios promovidos pelos madeireiros. Ou seja, mais uma vez o caso da relação entre tradição e modernidade, aqui vista de forma positiva, ao contrário da evangelização, onde vemos o etnocídio acontecendo em estado puro em dias contemporâneos.
Agora, fica aqui a pergunta: a mulher índia melhorou com todos os rituais promovidos por Perpera? Essa resposta eu deixo para o próprio leitor buscar, assistindo ao documentário.
Assim, “Ex-Pajé” é um documentário fundamental, pois registra a cultura de uma tribo indígena que pode estar em vias de extinção em virtude do processo de aculturação e etnocídio, além de cumprir sua função social de denúncia ao lembrar a todos nós que a destruição de culturas ainda é um problema muito atual. Esse documentário é daqueles para ver, ter e guardar.
Continuando a fazer análises dos episódios de “Jornada nas Estrelas Voyager”, vamos falar hoje de mais um episódio da quinta temporada, “11:59”. Temos aqui uma história contada, em boa parte, em flashback. Uma história que aborda mais uma vez a questão da tradição e modernidade, trazendo a reboque a importância do mito para nosso imaginário.
O episódio começa com Janeway e Neelix conversando. No meio da conversa, Neelix pergunta dados sobre a Muralha da China. Janeway, por não conhecer muito os detalhes, desconversa um pouco, mas o cozinheiro alienígena insiste no papo e diz todos os detalhes da Grande Muralha terrestre. Janeway fica impressionada e Neelix diz que está fazendo uma espécie de competição com Paris sobre conhecimento de coisas da Terra. Janeway, então, pergunta a ele se conhece o “Portal do Milênio”, uma espécie de construção que foi feita na virada do século XX para o XXI e que serviu de inspiração para a construção das primeiras colônias em Marte. Como agora é Neelix que desconhece o assunto, Janeway aproveita o gancho e diz que uma de suas antepassadas esteve envolvida no projeto da construção do Portal, sendo uma grande personagem de sua família. O episódio então alterna-se num flashback, onde vemos o que aconteceu com a antepassada de Janeway, Shannon O’Donnel (interpretada, obviamente, pela própria Kate Mulgrew), enquanto que vemos, com pouco sucesso, Janeway tentando recuperar informações de sua nobre antepassada.
Esse episódio tem questões muito curiosas. Em primeiro lugar, o trabalho de resgate da memória, mais ou menos o que um historiador passa quando busca as fontes históricas. A coisa sempre é muito fragmentada e às vezes, montar esse quebra-cabeça com as peças faltando não é muito fácil, com as peças aparecendo somente muito posteriormente. É por isso mesmo que esse é um dos motivos pelos quais a História é constantemente reescrita. E o resultado nem sempre é o que queremos achar. No caso da antepassada da capitã, ficou atestado, depois das pesquisas, que sua participação no Portal do Milênio não foi tão decisiva assim, o que provocou uma decepção em Janeway. Ou seja, citando o historiador Peter Burke, os historiadores são odiados pois eles lembram o que queremos esquecer.
Mas o filme também tem outras questões. Na história de O’Donnel, ela conhece, numa cidade no interior de Indiana, onde o Portal será construído, Henry Janeway (acho que vocês já perceberam que eles irão se casar e ter filhos), o dono de uma livraria tradicional que não quer arredar o pé de seu lugar, enquanto que todo o resto da cidade “de bom grado”, vende suas propriedades para a empresa do Portal, que ofereceu um valor 20% acima do mercado. Henry fica rotulado como turrão e o projeto fica com o risco de ser feito em outro lugar. Nosso simpático livreiro também é um adepto da tradição, preferindo ficar trancado com seus livros e nem sequer usar um computador, enquanto O’Donnel é adepta da modernidade, sendo uma engenheira aeroespacial demitida e na pior. O’Donnel convencerá Janeway a se desfazer de sua livraria em função do progresso (e de interesses econômicos da empresa também). Como prêmio, ela terá uma participação modesta no Projeto do Portal do Milênio.
O que incomoda aqui? Jornada nas Estrelas sempre foi uma série que estimulou o progresso científico sem abandonar a leitura, muito exaltada na série. Mas nesse episódio, ela ficou vista como algo arcaico, que atrapalhava os passos do ser humano em direção ao futuro. Mesmo a solução conciliadora de Janeway abrir uma livraria no Portal não soou muito convincente. E mais: esse é um episódio que valoriza os grandes feitos dos antepassados, ou seja, a memória e as tradições. E aí, essa mesma tradição é rechaçada em função da modernidade do Portal, que destrói a antiga cidade decadente. Fica uma coisa levemente paradoxal a meu ver. Ou seja, num primeiro momento, a tradição é elencada como virtuosa no episódio, mas num segundo momento, é a modernidade que é laureada como algo positivo.
Agora, a grande virtude do episódio é a questão do mito, uma história que é compartilhada por um grupo ou povo, tida como real para aquele grupo, mesmo que ela não tenha ocorrido. Vemos muito isso no nosso folclore. É só a gente ver aquele redemoinho de vento na rua que a gente já fala logo que é o Saci-Pererê, por mais ilógico que isso seja. Mas está em nosso imaginário e sistema de valores. No caso da capitã Janeway, Shannon O’Donnel estava em seu imaginário mítico. E foi para ela uma decepção descobrir que sua antepassada não teve uma participação tão marcante na construção do Portal. Mas como os próprios tripulantes da Voyager disseram, chancelados, inclusive, por Tuvok, não importa quem foi ou não O’Donnel, mas sim a função que sua imagem idealizada cumpriu no imaginário da capitã: ela ingressou na Frota Estelar por causa da sua antepassada. Janeway até retruca dizendo que, com isso, jogou toda a tripulação para o quadrante Delta, mas a tripulação argumenta que isso fez com que todos se conhecessem bem melhor. O episódio não poderia terminar melhor, com o Doutor fazendo uma foto da tripulação e sua capitã com sua holocâmera, ao mesmo tempo que podíamos ver uma foto de O’Donnel envelhecida com sua família, numa exaltação à preservação da memória e das tradições, qualquer que seja a época, o que dá muita magnificência a esse episódio, que tem que ser apresentado aos roteiristas de Discovery para compreenderem o que é a essência de Jornada nas Estrelas.
Cabe também dizer que o próprio título do episódio, “11:59”, que cita a virada do milênio, do ano 2000 para o ano 2001, estava no imaginário das pessoas na época, já que o episódio foi produzido em 1999 e temas como o novo milênio colocado de forma equivocada na virada de 1999 para 2000 e o bug do milênio eram assuntos muito em voga na época (parece que foi ontem, mas lá se vão quase vinte anos). Assim, o próprio episódio já está datado, como vemos muito na série clássica, por exemplo.
Assim, vale muito a pena você, trekker de plantão, revisitar o episódio “11:59”, o vigésimo-terceiro da quinta temporada de Voyager. Um episódio que faz jogos com a tradição, a modernidade e o mito. E, como sempre em boas produções de Jornada nas Estrelas, convidando o espectador a uma boa reflexão.
A Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, a mais antiga da América Latina, e que teve Procópio Ferreira, Tereza Rachel, Denise Fraga, Joana Fomm e Aderbal Freire Filho entre seus alunos, apresenta mais uma peça teatral de seus formandos. A turma da noite apresenta a boa peça “Por Que Hécuba?”, escrita por Matei Visniec.
O tema da peça é muito curioso: na Guerra de Troia, Hécuba, a mãe de todos os filhos de Troia, precisa amargar a morte dos mesmos na guerra contra os gregos micênicos, por pura vontade e capricho dos deuses. Quando a mesma esconde um de seus filhos num reino vizinho, ela também o perde, pois o rei temia a fúria dos deuses sobre ele caso mantivesse o filho vivo. E, ainda: quando os deuses decidem que Hécuba sofrera demais e concluem que ela deve receber uma compensação, preparam uma surpresa para ela, surpresa essa que consiste em dar a mão de sua filha em casamento para Aquiles, o carrasco grego dos troianos, que havia morrido em batalha. Isso significa que sua filha terá que ser sacrificada para se encontrar com Aquiles na outra vida. Ou seja, Hécuba, a mulher, a mãe, tem que se submeter ao capricho altamente machista de deuses que se ancoram nas tradições para justificar todo o estado de belicismo, guerra e violência entre os povos da Grécia.
A temática da história, apesar de se passar na Antiguidade, nunca pareceu tão atual, sobretudo quando nos lembramos da violência insuportável a qual somos obrigados a nos submeter e, dentro disso, da frágil posição da mulher numa sociedade cada vez mais preconceituosa e misógina. Assim como Hécuba era obrigada a sofrer todo o tipo de martírio dos deuses em nome de uma tradição, as mulheres de hoje são violentamente atacadas em seus direitos por grupos que também se acham guardiões de tradições que eles acham que todos são obrigados a se sujeitar. Ainda, o choro de Hécuba que perde seus filhos na guerra é o mesmo choro das mães de comunidades que perdem seus filhos para a nossa guerra cotidiana. E a mulher não tem sequer direito a levantar a sua voz contra isso, como a nossa protagonista, que gritava a plenos pulmões contra as injustiças, sendo desvalorizada e ridicularizada de todos os lados com relação a isso.
O mais curioso é que, durante o transcorrer do espetáculo, todas as atrizes da turma interpretaram Hécuba em algum momento, dando uma mensagem de que Hécuba é uma alegoria do que todas as mulheres passam nessa sociedade tão profundamente machista, ainda mais em terras tupiniquins. Ao fim do espetáculo, todas se perfilam diante a plateia e falam de seus desejos com relação ao nosso cotidiano. O direito a um amor livre e a repulsa ao feminicídio foram lembrados.
Foi muito interessante também perceber como a areia foi utilizada no espetáculo. Todo o interior do teatro estava revestido da mesma. E os atores o tempo todo interagiam com ela, como se a própria areia acabasse sendo uma espécie de personagem. Somente para citar, os filhos mortos de Hécuba viraram cinzas, e estavam misturados lá entre toda aquela areia.
Assim, “Por Que Hécuba?” consegue ser mais uma grande realização dos sempre talentosos alunos da Escola Técnica de Teatro Martins Penna; Uma peça que busca na Grécia Antiga, alegorias para criticar o autoritarismo latente da nossa sociedade contemporânea e a frágil posição da mulher. Cabe dizer aqui que, por se tratar de uma Escola de Teatro do Estado, a situação continua grave. Dois processos seletivos de formação de turmas foram cancelados. E a nossa cultura segue sendo estrangulada. Esperamos que se chame a atenção para a resolução de tal problema, pois um povo sem cultura não é absolutamente nada. Se você quer dar uma prestigiada, a peça está em cartaz até o próximo dia 3 de setembro, de quinta a sábado, às oito da noite e domingo, às sete da noite. A Escola de Teatro Martins Penna fica na Rua Vinte de Abril, pertinho do Campo de Santana.
Um filme brasileiro muito curioso e experimental. “O Nó do Diabo” trabalha um gênero que não é muito visto em nosso cinema: o terror. E, ainda mais notável, o campo de atuação é um antigo engenho de açúcar. Ou seja, experimentou-se articular o gênero de terror com a História do Brasil. E o resultado? Podemos dizer que ficou muito bom.
São cinco histórias passadas em épocas diferentes (2018, 1987, 1921, 1871 e 1818), sempre no mesmo cenário da antiga fazenda. Na primeira história, o proprietário contrata um pistoleiro para evitar as inevitáveis invasões. Dada a grande quantidade de pessoas nas imediações e as várias pressões do fazendeiro, o pistoleiro pira na batatinha e se torna um serial killer.
Na segunda história, um casal pede emprego na fazenda e acaba tendo uma experiência macabra com os proprietários, que ainda usam os instrumentos de ferro que aprisionavam os escravos para tripudiar de seus empregados, além de abortá-los e decapitá-los. A terceira história (a melhor, na minha opinião) se passa com duas irmãs que ainda são tratadas como escravas, sendo uma delas chicoteada em pleno ano de 1921 e a “mais comportada” dotada de poderes misteriosos que matavam todos os algozes. A quarta história (a mais fraca a meu ver) é a de um escravo que foge de sua fazenda para enterrar seu filho e se embrenha numa região inóspita onde ele procura também por um quilombo e tem uma série de alucinações.
E a última história (que conta com a ilustre participação de Zezé Mota) fala de escravos que fugiram de um quilombo atacado por brancos e que se refugiam num cemitério de escravos. Lá, eles fazem cultos de magia negra que trazem os mortos de volta à vida para atacar os brancos (isso mesmo, caro leitor, escravos zumbis!!!).
A primeira coisa que chama a atenção e que a gente não se toca disso num primeiro momento é como a temática altamente autoritária e desumana da escravidão pode servir de inspiração para boas histórias de terror. Tais temáticas se casam perfeitamente, não somente pela violência e os instrumentos de aprisionamento e tortura, mas também pela magia negra dos escravos que leva a situações para lá de macabras. Ainda, tivemos cinco histórias relativamente boas, umas melhores, outras nem tanto, mas onde todas prendiam muito a atenção do espectador.
Com relação aos atores, além do óbvio destaque de Zezé Mota, que rouba a cena nos poucos momentos em que aparece mais ao final da película, não podemos nos esquecer de falar de Fernando Teixeira, que fez o fazendeiro de todas as cinco histórias de forma muito odiosa, tornando-se o antagonista por excelência da película. Sua face densamente barbada e suas falas altamente enérgicas e racistas incrementavam em muito o tom de terror das tramas.
Assim, “O Nó do Diabo” é uma tentativa bem sucedida de nosso cinema de mesclar o gênero de terror com a nossa realidade, usando parâmetros históricos da época da escravidão. Ao se trabalhar cinco histórias como variações sobre um mesmo tema, criou-se um tubo de ensaio rico em originalidade. Vale a pena curtir tal experiência.