Mais um filme “Noir” da fase americana de Fritz Lang. “O Grande Segredo” (“Cloak and Dagger”), de 1946, traz um thriller de espionagem, ou seja, um filme com uma temática um pouco diferente das analisadas aqui, e com a grande presença do consagrado ator Gary Cooper no papel principal. Com todos esses requisitos, o filme prometia muito. Para podermos conversar sobre essa película, os spoilers de setenta e seis anos estão liberados.
O filme fala do cientista Alvah Jesper (interpretado por Cooper), que é “convidado” pelo governo dos Estados Unidos a investigar porque alguns cientistas alemães usam determinadas substâncias químicas. Depois de uma análise preliminar, Jesper constata que essas substâncias têm relação com a construção de bombas atômicas. Nosso cientista terá então que trabalhar como um espião para que ele consiga entrar em contato com uma cientista que é obrigada a trabalhar para os nazistas. A ideia é resgatá-la e trazê-la para os aliados. Mas o plano é descoberto e ela é sequestrada pelos nazistas. O plano de resgate da cientista é um fracasso total e ela acaba sendo assassinada.
Vai restar a Jesper ir atrás de outro cientista italiano (Polda, interpretado por Vladimir Sokoloff) que trabalha para os nazistas, mas ele não quer deixar o seu posto, já que sua filha foi praticamente tomada como refém. Jesper propõe a ele que sua filha também seja resgatada. Tal tarefa caberá a dois italianos da resistência. Enquanto eles resgatam a filha de Polda, Jasper fica num compasso de espera com outra membro da resistência, Gina (interpretada por Lili Palmer) e uma paixão desperta entre os dois. A tal filha é resgatada, mas no ponto de encontro ela se revela uma espiã nazista (a filha já havia morrido há seis meses) e o esconderijo da resistência estava cercado por alemães. Jasper, Gina e Polda conseguem fugir por uma saída secreta e levam o cientista para um avião à espera de Jasper e Polda. Gina decide não ir, pois há poucos membros da resistência e ela precisa ficar para lutar. Jasper promete que voltará para encontrar Gina.
O filme, apesar de nos apresentar um tema envolvente, tem uma certa descontinuidade no roteiro, pois começa com uma boa história de espionagem e vai nessa vibe até o momento em que será feito o resgate da filha de Polda, começando um romance entre Jesper e Gina. Não que esse romance não tenha tido lances interessantes como, por exemplo, a maior experiência em campo da guerrilheira, se desvencilhando de possíveis armadilhas dos nazistas, além de (e esse foi o momento mais interessante dessa sequência) presenciarmos as diferentes visões de mundo de um americano que não sofre as mazelas da guerra em seu solo pátrio e da membro da resistência que tem o seu continente arrasado pela batalha, com sua vida cotidiana totalmente destroçada, vida essa que lhe faz muita falta. Essa segunda parte mais romântica da película também não abandonou o suspense e tivemos aqui talvez a sequência mais violenta do filme, onde Jesper entrou em luta corporal com um dos agentes que vigiavam Polda, matando-, algo que abalou o cientista, conhecendo de vez a realidade de uma guerra, e sendo amparado por sua amante que tinha uma experiência mais profunda com tal mazela.
Do ponto de vista dos elementos caros aos outros filmes de Lang, aqui tivemos espaço somente para algumas sequências mais escuras, consagrando o “Noir”. Não tivemos muito espaço para as “culturas primitivas” ou para alucinações e oníricos dessa vez.
Dessa forma, apesar da descontinuidade de um roteiro inspirado numa obra literária, “O Grande Segredo” ainda assim é um filme digno de atenção. Vemos uma história de espionagem onde missões podem dar errado e um bom suspense com um romance de intruso, mesmo assim um romance que mostra como americanos e europeus podiam ter diferentes visões da guerra, pois Jesper confessa que até pensou em ser espião numa fase de sua vida, quando tinha oito anos, mas precisou fazer isso na idade adulta onde a espionagem poderia até ser uma questão de sobrevivência para os europeus, empenhados em destruir o nazismo, o mal maior. E aproveitem o filme na íntegra abaixo.
Mais um filme da fase americana de Fritz Lang. “Um Retrato de Mulher”, realizado em 1944, traz vários integrantes do elenco de “Almas Perversas”, que seria realizado um ano depois. Outro elemento em comum nesses dois filmes foi o relacionamento entre um casal com diferença de idade, os elementos de sempre do “Noir” e do subjetivo. Mas as diferenças param por aí. O suspense volta com força total nessa película. Vamos novamente lançar mão de spoilers de setenta e seis anos.
Vemos aqui a história do Professor Richard Wanley (interpretado por Edward G. Robinson), especializado em direito criminal. A sua esposa e filhos viajam e ele está sozinho numa espécie de clube com seus amigos. A conversa é amistosa e gira em torno de um quadro de uma moça jovem numa galeria próxima. Eles falam divertidamente de como seria um suposto amor entre um homem mais velho e uma moça mais nova (devemos nos lembrar que esse é um filme rodado em 1944, quando assuntos dessa magnitude eram considerados muito mais um tabu do que hoje em dia). Os amigos de Wanley vão embora e este começa a ler um livro, pedindo para o funcionário do clube avisá-lo quando for dez e meia da noite, enquanto lê um livro. Wanley adormece e é acordado pelo funcionário na hora pedida. Ao sair do clube, ele se depara com o quadro da jovem e uma mulher igual a do quadro começa a falar com ele na rua. Seu nome é Alice Reed (interpretada por Joan Bennett). Os dois começam uma amizade, vão para um bar e depois para a casa de Alice. Um homem entra na casa, aparentemente um amante de Alice e começa a estrangular Wanley. Este, para se defender, pega uma tesoura e dá nas costas do estranho, matando-o. Diante do problema, Wanley precisa se desfazer do corpo do estranho, levando-o para longe da cidade e jogando-o no matagal de um parque. Parecia a ocultação de cadáver perfeita. Mas um dos amigos de Wanley se interessa pelo caso, pois o tal estranho morto é um rico empresário. E acompanha as investigações da polícia, que se atém aos mínimos detalhes e vai encontrando as pistas para montar o quebra-cabeça que chega ao assassino. Tudo isso sob o olhar atônito de Wanley que jamais imaginou que uma investigação policial fosse tão minuciosa. Para piorar a situação, o tal empresário tinha um guarda-costas, Heidt (interpretado por Dan Duryea), um homem de má índole que vigiava todos os passos de seu patrão e percebeu que ele desapareceu na casa de Alice. Heidt vai começar a chantageá-la e a moça comunica o fato a Wanley, que bola um plano para matar o guarda-costas, colocando uma dose excessiva de tranqüilizantes numa bebida que será servida para o chantagista. Mas ele descobre o plano e cobra ainda mais dinheiro de Alice. Desesperada, ela liga novamente para Wanley, que não sabe o que fazer e ele mesmo toma a dose excessiva de tranqüilizantes para se matar. Só que Heidt é morto pela polícia e é tido como o assassino do empresário, já que ele pegou uma jóia com as iniciais de seu chefe na casa de Alice. A moça tenta, desesperadamente, avisar Wanley, mas este já se encontra morto. Ou melhor, dormindo, com o funcionário do clube avisando-lhe que são dez e meia da noite. Ou seja, toda a trama que vimos na película não passa de um sonho de Wanley, onde o empresário morto é o funcionário que guarda os chapéus e casacos do clube e o chantagista é o porteiro do clube. Na rua, Wanley se depara novamente com o quadro e uma moça fala novamente com ele. Se lembrando do sonho, Wanley, comicamente, sai correndo pela rua.
Confesso que quando vi esse filme, me lembrei de “O Gabinete do Dr. Caligari”, que tem essa mesma estrutura de uma história dentro da outra. Mas em Caligari, a história de dentro desafiava as autoridades alemãs e a história de fora tira esse peso, dizendo que todos os personagens que desafiavam a autoridade na história de dentro eram loucos de um hospício. Aqui, a história de fora restaura o happy end subtraído da história de dentro, que tem um desfecho trágico. Mas o mais interessante é que a história de dentro é totalmente onírica, um sonho mesmo. Ou seja, toda a trama principal do filme não passa de uma invenção da cabeça do protagonista, um sonho, uma alucinação, com um quê totalmente subjetivo. A história de dentro também é um suspense policial de mão cheia, onde a ironia fina está no fato de que um professor de direito penal vai ter obrigado a cometer um homicídio e a ocultar um cadáver. Ou seja, nosso protagonista vai ter que encarar, na prática, questões que ele encarava apenas teoricamente. E aí, o claro/escuro do “Noir” vem com toda a sua força, sobretudo nas cenas onde Wanley toma todos os procedimentos para ocultar o cadáver, seja apagando as luzes do apartamento de Alice, seja na ocultação do corpo em si, numa floresta à noite. A busca por pistas e as teorias sobre o assassinato elaboradas pelos investigadores nos mostram também um roteiro (diga-se de passagem adaptado) bem escrito.
A máscara externa de happy end estraga um pouquinho as coisas mas, pelo menos, o desfecho foi cômico, o que destoou completamente do filme todo e foi uma pequena surpresa agradável ao seu final.
Assim, “Um Retrato de Mulher”, é mais um bom filme da fase americana de Frritz Lang. Um filme que repete elenco, as fórmulas do “Noir” e do subjetivo, dá mais uma boa história de suspense que não abriu mão do happy end, mas que teve um desfecho trágico na história de dentro. O desfecho trágico viria no filme seguinte, “Almas Perversas”. E não deixe de ver o filme completo abaixo.
Mais um filme da fase americana de Fritz Lang. “Almas Perversas” (“Scarlet Street”, 1945) mostra novamente os elementos vistos aqui nos outros três filmes analisados do diretor: um claro/escuro bem ao gosto de um “Noir” com tons expressionistas, e um filme que expressa estados interiores da alma. A alusão a culturas africanas, asiáticas e da Oceania é, entretanto, deixado de lado um pouco aqui. Mas podemos ver um forte drama de tons levemente policiais mais ao final, indo um pouco diferente da vibe dos filmes anteriores, mais regados a um suspense. Vamos falar aqui do filme, lembrando que os spoilers de setenta e cinco anos estão liberados.
Qual é o plot dessa película? Vemos aqui a vida de Christopher Cross (interpretado por Edward G. Robinson), um bancário que gosta de pintar quadros nas horas vagas. Funcionário exemplar, Cross lamenta não ter tido um grande amor. Ele, para não ficar sozinho, casou-se com uma viúva que o tripudia constantemente. Um belo dia, ele encontra uma mulher sendo agredida por um homem na rua e vai defendê-la. O homem foge. Cross fica então sabendo que a moça se chama Kitty (interpretada por Joan Bennett) e começa uma amizade com ela, apesar da nítida diferença de idade entre os dois. O grande problema aqui é que o homem que agredia Kitty era Johnny (interpretado por Dan Duryea), o namorado da moça e um tremendo de um vigarista mau caráter. Ele vai combinar com Kitty de se aproveitar da amizade com Cross para arrancar dinheiro dele. Kitty, apesar de titubear em passar para trás Cross, também não é uma pessoa muito virtuosa e entra na jogada. Ela consegue fazer com que Cross alugue um apartamento para ela, onde ele também vai usá-lo como ateliê, já que sua esposa, na sua chatice insuportável, ameaça jogar seus quadros fora. Como se não bastasse, Johnny e Kitty conseguem vender seus quadros, que são reconhecidos como grandes obras de arte, a altos preços, com Kitty assumindo a autoria. Cross, sempre benevolente, aceita tudo isso. Até que o antigo marido da esposa de Cross retorna. Ele, que era visto como uma pessoa virtuosa, era também de um caráter duvidoso, e chantageia Cross para que ele não avise a esposa que está vivo.
Cross, que não aguenta mais a esposa, praticamente a entrega de mãos beijadas, para se casar com Kitty. Mas essa zomba das atitudes de Cross e o ofende tanto quanto a esposa dele o fazia. Cross, que passou a roubar dinheiro do caixa do banco para sustentar Kitty, e ainda aceitou que ela assumisse a autoria de seus quadros, entra em desespero e mata Kitty com um picador de gelo. O grande detalhe aqui é que, de acordo com todo o rumo dos acontecimentos, Johnny foi responsabilizado e incriminado pelo homicídio, sendo condenado à morte. A Cross restou perder o emprego, pois seu patrão descobriu o desfalque, mas não queria colocá-lo na cadeia pelos longos anos e por ter compreendido que Cross se perdeu por causa de uma mulher. Tudo parecia que ia acabar bem para Cross, à despeito da perda do emprego. Mas, numa viagem de trem, ele conversa com três pessoas e uma delas fala uma coisa que irá lhe martelar a cabeça: nenhum criminoso escapa de sua pena. Mesmo que ele seja julgado e inocentado, ou nem isso, a sua consciência irá lhe aplicar a punição. E é isso que acontece com Cross, que tem a sua vida completamente destruída por não suportar a culpa de ver o casal que tentava lhe aplicar um golpe acabar morto. E o desfecho da película é melancólico, com Cross vagando pelas ruas como um mendigo atormentado pelas vozes dos vigaristas mortos.
Uau! Se compararmos esse filme com os outros três analisados aqui, podemos começar realmente pelo fim, ou seja, aqui o happy end foi violentamente chutado para escanteio, ao contrário do que vimos em “Gardênia Azul”, “Maldição” e “O Segredo da Porta Fechada”. Edward G. Robinson, conhecido por filmes de gangster, aqui é a figura humana boa e sensível por excelência, expressa claramente em seu próprio nome Christopher Cross. Nosso protagonista foi sempre infeliz no amor, mergulhando num casamento humilhante justamente para não ficar sozinho. Ponto para a atriz Rosalind Ivan, que fez Adele, a esposa velha, feia e agressiva, que tripudiava de Cross o tempo todo e o obrigava a lavar a louça e botar avental, na sociedade ultramachista de 1945. Tentando escapar desse inferno, ele cai nas garras de Kitty, que o explora juntamente com Johnny, obrigando-o a roubar o caixa do próprio banco onde trabalhava com honestidade. Não é à toa que o título do filme em português é “Almas Perversas” (geralmente, os títulos em português que arrumam para os filmes aqui no Brasil não têm nada a ver com o título original; no nosso caso aqui essa receita se repete, já que o título original é “Scarlet Street”; entretanto, poucas vezes um título em português esteve tão adequado ao contexto do filme). Cansado de ser mal tratado por todos os lados, comete o homicídio e sai praticamente incólume dele.
Mas sua boa índole não consegue viver com o sentimento de culpa e provoca sua ruína. Aqui entra o Fritz Lang raiz, que transforma todo esse drama psicológico no obscuro do “Noir”. As alucinações de Cross, ouvindo as vozes de Kitty e de Johnny se dão num quarto escuro. E o fim de Cross é vagando nas ruas à noite, tido como louco e desacreditado em suas confissões de culpa. Mais uma vez o subjetivo aqui se estabelece, sendo que dessa vez de forma extremamente trágica, um fim bem expressionista que não se deixou contaminar pelo happy end americano como nos outros filmes examinados aqui.
É interessante perceber também que o subjetivo aparece de uma outra forma, que é a visão do artista plástico e do valor das obras de arte, sobretudo quando Cross pinta uma florzinha bem ordinária num copo como algo fulgurante e vistoso. Aliás, os quadros desse filme são realmente grandiosos, sobretudo o autorretrato de Kitty, que desafia a decadência de Cross ao final da película, sendo o castigo final para esse personagem que apenas ousou ser feliz, mas que as almas perversas do mundo não o permitiram. Talvez as artes plásticas aqui façam o papel das culturas primitivas das quais Lang tanto gosta, sendo outra herança expressionista, já que temos aqui uma pintura bem moderna. Só para darmos a autoria dos quadros, elas são de John Decker, qe trabalharva na parte de arte de filmes.
Outra coisa da qual não podemos nos esquecer. Temos aqui um excelente roteiro, pois toda a sequência de eventos do filme, que tinham como objetivo desgraçar a vida de Cross, acabaram ajudando a inocentá-lo do crime que ele cometeu. A gente só percebe isso depois que vemos os depoimentos dos personagens do filme no processo contra Johnny. Ou seja, devemos dar créditos para os autores do romance no qual foi inspirado o roteiro, Georges de La Fouchardière e André Mouëzy-Ëon, além do roteirista Dudley Nichols.
Dessa forma, podemos dizer que o filme “Almas Perversas” pode ser encarado como uma obra-prima de Lang em sua fase americana, considerado pelo próprio diretor um de seus filmes preferidos. Mais um filme “Noir”, só que muito mais fundeado no drama psicológico e no subjetivo, sem direito a um happy end. Um filme memorável que você poderá assistir na íntegra logo aí embaixo.
Mais um filme de Fritz Lang em sua fase americana. “Gardênia Azul”, de 1953, traz novamente o claro/escuro do “Noir” inspirado no expressionismo, os elementos das culturas chamadas “primitivas”, de que Lang tanto gosta, um suspense regado a alguns sustos aqui e ali, mas, principalmente, a alucinação como o elemento-chave do filme.
O plot é relativamente simples. Três amigas que vivem juntas dividem suas confidências. Crystal (interpretada por uma carismática Ann Sothern) reata com o ex-marido. Sally (interpretada por Jeff Donnel) é uma mocinha engraçada que adora histórias policiais de suspense e assassinato, sendo um interessante alívio cômico para o filme. E Norah (interpretada por uma vistosa Anne Baxter) é a nossa protagonista, que trabalha como telefonista. Um pintor de calendários de mulheres sensuais, Harry Prebble (interpretado por Raymond Burr) foca na companhia telefônica azarando as telefonistas e consegue o telefone de Crystal. Norah recebe a carta de seu namorado, um soldado que está na Guerra da Coreia. Ao ler a carta, seu namorado diz que conheceu outra mulher e vai casar com ela. Desnorteada, Norah atende o telefone em casa. É Prebble atrás de Crystal. Norah, num impulso, se faz de Crystal e marca um encontro num night club chamado Gardênia Azul. Lá, sob a música cantada por ninguém mais, ninguém menos que Nat King Cole, Norah fala do que aconteceu para Prebble, que começa a servir deliberadamente uma bebida inspirada na Polinésia para Norah ficar bêbada. Prebble leva a moça para o seu apartamento e tenta pegá-la à força. Vemos que Prebble é assassinado e, tudo indica que foi Norah quem o matou. A moça, mergulhada em alucinações por causa da bebida, vai para casa e de nada se lembra. No dia seguinte, ela descobre que Prebble foi assassinado e que a polícia investiga o paradeiro da criminosa, pois foi encontrado um sapato feminino no local do crime. Desesperada, Norah busca escapar de ser apanhada. Para isso, ela vai contar com a ajuda do repórter Casey Mayo (interpretado por Richard Conte), que escreveu uma carta no jornal para a assassina pedindo que ela entrasse em contato com ele. E é o que Norah faz.
Se compararmos esse filme de Lang com os outros dois analisados aqui, “O Segredo da Porta Fechada” e “Maldição”, esse é um “Noir” menos escuro. Temos momentos pontuais de escuridão no filme como, por exemplo, no momento em que Norah lê a carta do namorado e a cena do assassinato em si. A alusão à cultura da Polinésia no drink que embebeda Norah assinala bem essa característica de Lang de exaltar tais culturas. Em “O Segredo da Porta Fechada” vemos as máscaras na parede apenas, por exemplo. Mas aqui a questão da alucinação, tão ligada ao subjetivismo do expressionismo, é a mais presente dentre as características desses filmes de Lang “Noir” nos Estados Unidos. É a alucinação que encobre a cena do assassinato em que Norah está envolvida. É a alucinação que quase condena Norah e oculta sua inocência. Alucinação que foi tão cara ao expressionismo e atravessou o Oceano Atlântico juntamente com Lang.
Como Norah é inocente, fez-se a opção pelo happy end. Um fim que, inclusive, foi bem levinho, com o alívio cômico das três personagens protagonistas falando das táticas de se lidar com homens. Ou seja, se há a tensão do suspense, esse é um filme de Lang que tem elementos pontuais de humor que não vimos nos outros dois filmes analisados aqui. Humor que consegue conviver com o pesado do “Noir” de uma forma bem pertinente e com bom gosto, não sendo um elemento estranho à película.
Dessa forma, “Gardênia Azul” é mais um bom “Noir” da fase americana de Lang, que mantém os elementos expressionistas do diretor, o amor pelas culturas primitivas e um certo protagonismo das alucinações, que encobrem a cena principal do filme. O humor e o toque feminino caíram como uma luva nessa história pesada que tem um happy end regado a uma leveza bem coerente. Vale a pena a conferida abaixo.
Dando sequência às nossas análises de episódios de Jornada nas Estrelas, retornemos à Enterprise e falemos do terceiro episódio da primeira temporada, intitulado Explorar Novos Mundos.
No que consiste o plot? A Enterprise encontra um planeta muito parecido com a Terra, o que deixa a tripulação animadíssima e pronta para descer à superfície. Os scans não mostram a presença de vida humanóide. T’Pol, entretanto, fala em escanear o planeta com sondas primeiro para verificar se ele é da classe Minshara (apto à vida humanóide). Esse scan duraria uma semana. Archer pede que se forme uma equipe de pesquisa que vá descer ao planeta, mais uma vez não escutando as recomendações de T’Pol.
A tripulação desce ao planeta e os humanos parecem numa colônia de férias: tiram fotos, Archer leva o Porthos, etc., enquanto que T’Pol só pensa na missão. A equipe pesquisa o planeta e um grupo com dois tripulantes, Travis, Trip e T’Pol ficam no planeta. Durante a noite, sob muitos vaga-lumes, um dos tripulantes fica com dor de cabeça e pede para descansar. Os vaga-lumes somem e logo aparece uma violenta rajada de vento. Um bicho aparece no saco de dormir de Trip e a ventania continua intensa. Trip sugere a T’Pol que eles procurem uma caverna.
Na Enterprise, Reed sugere a Archer que se busque a equipe avançada em virtude do vento, mas T’Pol, interpelada por Archer pelo rádio, diz que as condições de pouso para uma nave auxiliar são muito difíceis com o vendaval. A equipe já está numa caverna, mas esqueceu a comida no acampamento. Travis vai buscá-la e vê vultos de pessoas. Ele diz isso para a equipe e T’Pol diz que, pelo scaner, não há mais nenhuma forma de vida humanóide no planeta além deles. O tripulante que estava com dor de cabeça, ouviu sons no acampamento e agora está descontrolado na caverna, dizendo que há alguém lá e que todos precisam sair dali. O tripulante (Ethan) sai correndo para fora da caverna e Trip vai, juntamente com Travis, atrás dele. Já T’Pol penetra mais fundo na caverna para ver se há alguém lá dentro mesmo. Trip vê uma figura humana “saindo” de uma pedra como se estivesse camuflada nela. Travis quase cai num precipício e Trip fala para eles voltarem. A outra tripulante, que ficou sozinha na caverna, a explora e encontra T’Pol falando com dois homens. Ao perguntar à vulcana quem eram, T’Pol disse que não havia ninguém lá. Trip e Travis comunicam a situação a Archer, que desce com Reed na nave auxiliar. Eles conseguem contato com Ethan, que responde agressivamente pelo rádio. Já Trip e Travis pressionam T’Pol, depois que a outra tripulante disse que a vulcana falava com duas pessoas. Archer tenta pousar, mas não consegue e pede para Trip gerenciar a situação, tentando estabelecer contato com os alienígenas se achá-los. Trip continua a pressionar T’Pol, que se mantém impassível. Travis fala da falta de água da equipe e T’Pol fala que há uma reserva de água no interior da caverna Trip, desconfiado, rende T’Pol e tira sua arma, não indo buscar água junto com ela, como sugerido pela vulcana. Archer tenta se comunicar com Ethan, mas ele grita de dor. Não há outra alternativa a não ser teletransportar Ethan para a nave, mas seu sinal está contaminado e ele chega à Enterprise com um monte de folhinhas agarradas a seu corpo. A equipe da caverna está perdendo totalmente o controle emocional e se tornando agressiva, inclusive T’Pol, vendo ainda coisas se movimentando nas pedras.
Na Enfermaria, Phlox tirou as plantinhas de Ethan, mas detectou um psicotrópico no seu sangue, encontrado em plantinhas aparentemente inofensivas. Eles acreditam que o vendaval contaminou a todos e, ao entrar em contato com T’Pol, a vulcana estava com uma arma apontada para a sua cabeça por um Trip descontrolado. Archer falou do psicotrópico para a equipe e recomendou que eles se isolassem no fundo da caverna até o vendaval passar, quando seriam resgatados. Mas Trip está muito loucão e ameaça T’Pol, que também aponta uma arma para ele falando palavras em vulcano, provavelmente ofensivas.
Na Enterprise, Ethan está à beira da morte, pegando Phlox de surpresa, que estudou o caso e fabrica um antídoto. O médico acredita que os outros tripulantes na superfície foram menos expostos. O problema é que o vendaval não passa e as vidas da equipe estão ameaçadas. Archer então diz que vai enviar a medicação para a equipe que precisa ministrá-la. Mas Trip está muito descontrolado para isso. T’Pol fala em vulcano para Hoshi que Trip irá matá-la e Hoshi fala isso para Archer. O capitão inventa uma história baseada nas alucinações de Trip para ele poder ser convencido a deixar T’Pol pegar o remédio, que foi teletransportado para a boca da caverna. T’Pol toma o controle da situação e tonteia Trip. Pega o remédio e inocula em todos.
Quando todos estão normais, Trip se arrepende das palavras preconceituosas que falou a T’Pol e diz que um professor vulcano que ele teve disse a seguinte frase: “Desafie seus preconceitos e eles te desafiarão”. T’Pol disse que talvez fosse a hora dele colocar esse ensinamento em prática. Fora da caverna, está um dia lindo e a nave auxiliar vem buscar a equipe. Fim do episódio.
O que podemos falar de “Explorar Novos Mundos”? A querela entre os humanos e a vulcana T’Pol continua, com a imaturidade humana ainda premente, o que sempre dá uma razão a T’Pol. A sede por exploração faz Archer ignorar totalmente os protocolos impostos pelos vulcanos que, obviamente, surgiram com experiências anteriores. E aí, o planeta altamente idílico revela-se extremamente perigoso com o psicotrópico que acaba enlouquecendo a todos. O fato do psicotrópico ter tirado o autocontrole dos tripulantes na superfície do planeta foi um dado interessante a ser adicionado para trabalhar a questão do preconceito. Se a civilização humana do século 22 diz que aboliu seus preconceitos, o descontrole do psicotrópico aflora esses preconceitos em toda a sua plenitude, afetando até a asséptica T’Pol, que respondia na língua vulcana de forma agressiva todos os rompantes de preconceito e violência de Trip. Pelo menos, a gente tem que bater palmas para Archer na resolução da crise (para compensar, pelo menos, a sua irresponsabilidade em mandar um grupo avançado para a superfície de um planeta que sequer foi escaneado detalhadamente, como T’Pol recomendara). O capitão foi na vibe das alucinações de Trip e conseguiu bolar uma estratégia para T’Pol (menos afetada pelo psicotrópico) render Trip e pegar a medicação enviada por Phlox para eles se curarem. Ao final, quando todos já não estão mais afetados, Trip manifesta seu arrependimento em tudo o que disse à T’Pol e citou a frase de um professor vulcano que teve: “Desafie seus preconceitos e eles te desafiarão”. T’Pol responde que deve estar na hora de Trip colocar esse ensinamento em prática. Ou seja, vemos Trip se arrependendo do que diz a T’Pol e indiretamente se desculpando com isso, e vemos a vulcana aceitando as desculpas, mas com aquela pontinha de mágoa que a lógica vulcana a obriga a esconder, lembrando sempre que os vulcanos têm sim emoções, mas que eles usam a lógica para reprimi-las, evitando, assim, seus dias de barbárie.
Ainda com relação à querela entre vulcanos e humanos no século 22. Essa imaturidade humana parece muito sinalizar uma cultura ocidental mais estadunidense, impetuosa, ávida por levar o melhor do ser humano a outras culturas, e intransigente com a postura mais conservadora dos vulcanos em práticas de primeiro contato, até em virtude da experiência acumulada com a exploração espacial e práticas de primeiro contato. Mas, façamos uma reflexão aqui. Essa característica ocidental e estadunidense tem legitimidade para ser porta-voz da cultura de toda a humanidade? Eu me pergunto se haveria as mesmas querelas entre vulcanos e humanos se a tripulação da Enterprise contasse com orientais, por exemplo, mais afeitos à questão da disciplina. Sabemos que falamos de uma série produzida nos Estados Unidos, com seus valores e identidades específicas. O problema é que eles travestem esses valores como universais por estarem representando a humanidade como um todo. Talvez isso seja um problema nessa série. Aliás, em sua própria abertura, a ausência de Santos Dumont (para nós, brasileiros) e, mais gravemente, do Sputnik e Yuri Gagarin, incomodam, e muito, reforçando essa posição estadunidense como de uma centralidade questionável.
Para encerrar, temos aqui uma curiosidade: vemos, pela primeira vez a citação de planeta classe M, e esse M vem de Minshara.
Dessa forma, “Explorar Novos Mundos” é um episódio de Enterprise que segue a proposta inicial da série de marcar o conflito entre humanos e vulcanos, com o ingrediente de colocar os tripulantes numa situação de afloramento dos preconceitos sem limites e de como eles teriam que conviver com isso posteriormente. Mais um passo na educação desses humanos em direção a uma maior maturidade na exploração espacial.