Vincent Lindon está de volta em mais uma película. “O Último Amor de Casanova” é um daqueles filmes que vão na contramão de todas as nossas impressões sobre o personagem em questão. O prolífico amante que povoa nossas mentes está mais para um cara feliz e vibrante, que sabe aproveitar a vida e que tem um controle muito forte da situação. Mas o filme em questão não mostra nada disso, muito pelo contrário até. Para podermos entender um pouco melhor isso, vamos lançar mão de spoilers.
Vemos aqui a vida de Casanova na Londres do século XVIII. Todo senhor de si, Casanova fica fortemente atraído por uma cortesã, Marianne de Charpillon (interpretada por Stacy Martin), que vê prestando seus serviços a dois homens numa carruagem. A partir dali, Casanova faz de tudo para se aproximar da moça, e ele descobre que ela havia recebido um presente dele quando menina. Sabendo do histórico de casos do famoso amante, Marianne faz de Casanova gato e sapato, humilhando-o o tempo todo e não se entregando a ele, até que o famoso personagem pira na batatinha e destrói o quarto quando Marianne presta seus serviços para um cliente, o que provocou o afastamento definitivo da moça e mergulhou Casanova na depressão.
Esse é um daqueles filmes franceses que trabalham sua temática favorita: o existencialismo e a depressão. Lindon, como sempre, teve uma excelente atuação, e com sua voz grave, adicionou um tom de melancolia que tornou o filme extremamente arrastado e tristonho. Parece que vemos aqui uma vingança contra todos os males que Casanova provocou contra as mulheres que ele atraiu para sua alcova, um desfecho deprimente para sua vida de coleção de amantes. O chato é que o filme, apesar de contar com um bom figurino e locações, não foi muito além desse clima melancólico, o que pareceu um desperdício de um talento como Lindon. Um ponto positivo foi a participação de Valeria Golino, que mais era uma amiga de Casanova do que uma amante. Ela estava muito linda com suas vestimentas de época e seu penteado louro e encaracolado, onde sua voz rouca e sexy é uma marca registrada ainda muito forte.
Dessa forma, “O Último Amor de Casanova” foi demasiadamente arrastado e melancólico, o que foi uma pena, pois o talento de figuras como Vincent Lindon e Valeria Golino poderia se destacar um pouco mais se o filme fosse um pouco mais vibrante. A humilhação do personagem principal cheirou a uma vingança contra o passado de excessos do amante, embora nunca devamos nos esquecer que essa história é baseada na vida de Casanova. Se você gosta muito, como eu, de Vincent Lindon e de Valeria Golino, esse é um programa obrigatório. Mas o filme é muito lento e deprimente, e ainda tem ingleses que defecam nos jardins.
Um filme brasileiro. “Aspirantes”, de Ives Rosenfeld, fala da trajetória de um rapaz que tem um sonho igual ao de milhares, talvez milhões de jovens por todo o país: ser um jogador de futebol famoso e rico. Mas a vida, sempre ela, dá uma rasteira atrás da outra no protagonista desse filme. Para podermos pensar um pouco sobre a película aqui, vamos precisar de spoilers.
O protagonista em questão é Júnior (interpretado por Ariclenes Barroso), um rapaz que vive na região dos lagos no Rio de Janeiro e tenta, juntamente com o amigo Bento (interpretado por Sérgio Malheiros) um lugar ao sol no difícil mundo do futebol. Júnior tem uma namorada que está grávida dele e mora com um tio com quem não se dá bem. Tudo parece muito idílico e prosaico no filme, mas o cenário tem um potencial para virar de cabeça para baixo a vida de Júnior, o que acaba acontecendo. Ele se desentende com o tio, que o expulsa de casa, tendo que ir morar na casa da namorada. Entretanto, um desentendimento entre a mãe da namorada e a mesma mostra que Júnior tem, na verdade, que lidar com uma grande pressão, que é arrumar um emprego para sustentar o filho vindouro. Isso faz com que ele precise ter êxito na carreira de jogador de futebol, o que pode ser um processo muito lento sem garantias a longo prazo. E aí, nosso Júnior entra em parafuso, com direito a desentendimentos com o amigo Bento (inclusive de forma trágica) e com a namorada, a ponto do menino dormir na rua até ser acolhido por seu técnico e pelo clube. O filme termina com Júnior numa partida decisiva, fazendo um gol.
O filme, que parece um tanto ingênuo e bucólico em seu início, acaba se revelando uma sucessão de choques de realidade com o passar do tempo, marcando a via crucis de Júnior, um rapaz pacato que se torna um cara soturno e até agressivo em virtude das pancadas que a vida dá. O maior problema aqui é que o filme termina de uma forma extremamente abrupta, como se um gol fosse a solução de todos os problemas do personagem. Ele ainda precisa de um bom emprego, precisa se acertar com sua namorada e, principalmente com Bento, a parte mais surreal desse choque de realidade. Entende-se até que o roteiro tenha sido enxuto mais pelo sentido de se contar uma boa história e não se complicar muito para não encarecer demasiadamente a produção. Mas o excesso de pontas soltas e se dar ao espectador a responsabilidade de mentalmente amarrá-las podem ser problemas que tornam o filme um tanto incompleto em sua construção. De qualquer maneira, essa é uma história que pode acontecer com muita gente por aqui em nosso país.
Dessa forma, “Aspirantes” vale por seu choque de realidade, embora seu roteiro pareça demasiadamente simplório e plano, deixando muitas pontas soltas. Vale para o espectador trabalhar sua imaginação.
Uma grata surpresa cinematográfica vinda da longínqua Geórgia. “E Então Nós Dançamos” é mais um filme de temática LGBT, mas que tem como pano de fundo a cultura local da ex-república soviética, que tem na sua dança uma verdadeira bandeira – ou, por que não dizer, essência – da cultura nacional. Uma dança onde a masculinidade é fortemente exigida. Para podermos falar do filme, vamos lançar mão dos spoilers.
O filme gira em torno de Merab (interpretado por Levan Gelbakhiani), um rapaz que faz parte de um grupo de dança georgiana, que recebe muitos pitos de seu professor por não ser másculo como as tradições nacionais exigem nos números de dança. Ele trabalha como garçom num restaurante, passando por muitas dificuldades, mas não esmorece. Seu irmão também participa do grupo, mas falta a seguidas aulas, levando uma vida completamente irresponsável. Um belo dia, chega um aluno novo a escola de dança: Irakli (interpretado por Bachi Valishvili), que é mais competente do que Merab e toma o seu lugar. Mas Merab, além de se sentir ameaçado, também tinha uma atração pelo rapaz, e os dois vão engatar um relacionamento. O problema é que Irakli some do mapa e deixa Merab completamente atônito, onde uma sucessão de acontecimentos vai detonando a vida do jovem. Ao mesmo tempo, o homossexualismo de Merab vem à tona na comunidade, e o rapaz começa a ser perseguido pelos seus colegas de dança. Irakli até retorna, mas seu pai está doente, à beira da morte, e ele precisa ficar com a mãe, engatando um noivado em sua cidade de origem. Resta a Merab juntar os cacos de sua vida e buscar novos horizontes, não sem antes corajosamente desafiar a cultura de seu país como uma resistência pela sua sexualidade.
É um filme que apresenta a dança georgiana, uma grata surpresa, por ser muito bonita, vibrante e vigorosa. Merab conseguia imprimir à dança toda uma sensualidade que desafiava as tradições estabelecidas, sensualidade essa usada como resposta na sequência final do filme, onde ele desafia a tudo e todos com sua coreografia forte, mas ao mesmo tempo, muito esguia, o que ficou bonito de se ver. É claro que a temática LGBT também tem a sua importância no filme, pois ela invadia um espaço onde a masculinidade era muito exigida. E o filme foi muito corajoso, pois as diretas e tórridas cenas de amor entre Merab e Irakli pareciam uma resposta à altura contra a forte masculinidade que a cultura da Geórgia exigia. A forte reação de Merab usando a dança como linguagem ao final da película é uma resposta à situação de desalento total em que o personagem se encontrou, pois ele teve que enfrentar o preconceito de sua sociedade sozinho, já que ele fora abandonado por Irakli e perdeu todo o chão de sua vida no seu microcosmos. E aí a gente tem que bater muitas palmas para a atuação de Levan Gelbakhiani, que agüentou bem o tranco da situação complexa em que seu personagem se encontrava.
Dessa forma, “E Então Nós Dançamos” é um programa imperdível, pois mais uma vez chama a atenção para o preconceito contra a comunidade LGBT mas traz a grata surpresa de dar a nós contato com uma cultura tão distante quanto à da Geórgia. Vale muito a pena dar uma conferida.
E chegamos ao final da série Picard. Depois da decepção de “Et In Arcadia Ego, Parte 1”, a expectativa (pelo menos da minha parte) para o desfecho da série estava baixíssima. Entretanto, apesar de alguns problemas, confesso que o último episódio me agradou. Apesar das pontas soltas para uma segunda temporada, aparentemente, não foi feito um vínculo com Discovery (ainda há a segunda temporada de Picard à vista). Uma suposta ausência de um final espetacular cheio de efeitos em virtude do baixo orçamento foi contornada, mesmo que tenha sido com muito control C – control V. E, principalmente, o mito de Frankenstein de última hora surgido no final do episódio anterior foi inteligentemente descartado com a volta de Data, pelo menos num outro plano diferente do nosso, numa conversa muito terna com Picard. Para podermos falar desse episódio, vamos lançar mão de spoilers.
O episódio começa com Narek chegando às escondidas no cubo borg. Lá, ele encontra Rizzo (sabe-se lá como, pois o episódio passado terminou com a romulana ainda nas aves de guerra em dobra. Enfim…) e a comunica que encontrou a civilização andróide. Na cidade dos andróides, Picard, na sua prisão, admira uma borboleta mecânica (há mais borboletas que orquídeas, diga-se de passagem, nesta cidade). Soji entra para falar com ele e Picard quer a sua liberdade. Soji retruca dizendo que os orgânicos controlam os andróides e não dão escolha a eles. Picard pede que Soji não deixe que os romulanos transformem os andróides nos monstros que eles pensam que os andróides são e que se destrua o transmissor que vai entrar em contato com os andróides avançados, pois estes aniquilarão os orgânicos. Começa a abertura. Após a abertura, retornamos para o cubo borg. Narek pega umas granadas e diz a Rizzo que ela faça o sistema de armas do cubo voltar a funcionar. Ele irá retornar á cidade dos andróides.
Na La Sirena, Rios usa o instrumento mágico que Saga (e não Arcana, como falei no texto anterior) passou para Raffi e, usando a imaginação, Rios conserta a La Sirena. Do lado de fora, Narek atira pedras na nave para falar com Rios e Raffi. O romulano propõe uma aliança e usa como argumento o plano dos sintéticos de destruir os orgânicos. A idéia é destruir o transmissor que os sintéticos estão construindo para entrar em contato com os sintéticos superiores. A granada do Narek entrará escondida sugestivamente dentro da bola de futebol do Rios e o romulano será usado para despistar como um prisioneiro que Rios e Narek levarão para os sintéticos. Enquanto essa pequena e estranha aliança discute o plano, Elnor aparece subitamente e ameaça matar Narek, mas Rios e Raffi impedem. Permita-me colocar um pequeno parênteses aqui. Achei essa aliança entre Rios, Raffi e Narek muito despropositada, pois, além de estranha, ela somente serviu para que os dois tripulantes da La Sirena soubessem do plano dos sintéticos e os levasse de volta para a cidade dos andróides, não indo muito além disso. Essa aliança também contribuiu para que o episódio tivesse uma barriga que poderia ter dado mais tempo a um desenvolvimento melhor da história. Foi um saco ver os quatro personagens ao redor de uma fogueira falando sobre um Dia do Juízo Final Romulano e suas demônias gêmeas como referência à destruição dos orgânicos pelos sintéticos. Mais um arroubo de misticismo do Alex Kurtzman, até no episódio final da série. Pelo menos, vimos aqui Elnor revoltado da vida com essa aliança, o que fez com que ele deixasse um pouco a sua posição periférica em todo o plot. E, enquanto temos essa barriga enorme, a comodoro Oh se aproxima do planeta com toda a sua frota de naves romulanas, finalmente revelando sua identidade.
Na cidade dos andróides, Jurati vira a casaca mais uma vez (ela está se tornando especialista nisso), enganando Soong e tirando um globo ocular da finada Saga para poder acessar o aposento onde Picard está preso. Jurati encontra Picard tirando um ronco (isso mesmo, os orgânicos estão ameaçados de serem varridos da galáxia – ou do quadrante? – por uma federação de sintéticos avançados e nosso almirante reformado dorme como um bom velhinho, numa mostra de como a figura de Picard foi esculhambada por durante toda a série) e o acorda para soltá-lo. Os dois retornarão à La Sirena. Enquanto isso, Soong examina o corpo de Saga e descobre, em seus registros, que a andróide foi assassinada (?) por Sutra ao invés de Narek. Assim, Soong acaba se unindo ao grupo de Rios, que já se infiltrou na cidade dos andróides.
Na La Sirena, Picard e Jurati pensam em como lidar com a difícil tarefa de segurar os romulanos e os sintéticos avançados, além de proteger a cidade dos andróides com apenas uma nave. Nesse momento, Picard fará alguns discursos que inserem uns arremedos de utopia na tão distópica série. Ele dirá, por exemplo, que os andróides são crianças que só tiveram como professores eremitas e o medo do extermínio, sendo o medo um professor incompetente, que os andróides têm vida, mas ninguém que tenha explicado para que ela serve, que a vida é um direito, mas também uma responsabilidade. Jurati pergunta como essas crianças vão aprender tudo isso em apenas seis minutos e onze segundos (que é o tempo que resta para a chegada dos romulanos) e Picard responde que os andróides aprenderão como as crianças aprendem, que é pelo exemplo. Para coroar essa pequena e momentânea overdose utópica, Picard finalmente senta na cadeira de Rios com a melodia da série clássica ao fundo. Ele volta a acessar o teclado virtual e bota a nave para decolar (ele observou os movimentos do Rios enquanto este pilotava, segundo suas próprias palavras). E a La Sirena decola, depois de Jurati falar um “execute” em tom de brincadeira para seu capitão. Confesso que a coisa do Picard conseguir pilotar a La Sirena, mesmo com umas derrapadas aqui e ali, me aliviou, pois ficou muito complicado, há poucos episódios anteriores, ele sentar na cadeira de comando e não saber acionar os controles, mesmo que estivesse reformado. Picard sempre foi um excelente piloto e ele saberia sim, mesmo com algumas dificuldades, colocar a nave para funcionar.
Na cidade dos andróides, Soji prepara o transmissor enquanto Sutra se dirige à população dizendo que assim que o transmissor ficar pronto, eles entrarão em contato com os andróides avançados para virem defendê-los. Soong aparece e leva Sutra para uma conversa particular. Ele pergunta como ela pôde matar Saga e acaba “desligando” Sutra. Rios, Narek e Elnor, então, entram em ação para explodir o transmissor, o que garante algumas cenas de caratê. Rios lança a granada contra o transmissor, mas Soji a intercepta e a joga longe, explodindo bem distante do transmissor.
No cubo borg, Rizzo reativa o sistema de armas e já está prestes a destruir a La Sirena, quando Sete de Nove a impede de fazer isso, apontando uma arma. Mas Rizzo consegue desarmá-la e as duas começam uma luta que culmina na aparente morte de Rizzo, que é jogada de uma grande altura. O bom aqui é que Sete, antes de atirar Rizzo no precipício do cubo, disse que isso era pelo Hugh.Creio que pelo Hugh e por todos os fãs mais antigos que muito lamentaram sua morte para lá de fútil e besta.
Os romulanos chegam, com um monte de naves iguais, bem ao estilo control C – control V, o que foi criticado pelo fandom. Essa acabou sendo uma solução de se usar os efeitos especiais com um baixo orçamento. As orquídeas se lançam contra os romulanos que revidam com tiros de phaser contínuo e disruptores. Picard e Jurati, no meio de toda aquela confusão de naves romulanas e orquídeas, se lembram da manobra Picard na Stargazer, onde foi dada a impressão ao inimigo da nave estar em dois lugares ao mesmo tempo. Jurati então pegou a ferramenta mágica que os andróides deram para Rios consertar a nave e replicou o seu rosto em muitos outros iguais, numa profusão de Tillys louras (credo…). Mais uma vez o pirlimpimpim sendo usado para a série se tornar mais fantasia do que ficção científica. Picard entra em contato com Soji e pede para ela parar de montar o transmissor, pois ele vai oferecer a vida dele para ela e seu povo na esperança de que ela mude de idéia, o que faz Soji ficar petrificada.
As orquídeas são destruídas e Oh dá a ordem para esterilizar o planeta. Mas a La Sirena se coloca na frente e Jurati liga o aparelhinho mágico, dando a ilusão de que centenas de La Sirenas estão saindo de dobra. As naves romulanas atacam e a La Sirena verdadeira acaba atingida de raspão, saindo de controle. Picard retoma o controle da nave e começa a se sentir mal. Já Soji finalmente aciona o transmissor. Um portal dimensional se abre para os andróides avançados chegarem. Oh ordena novamente a esterilização. Mas, nesse momento, as naves da Federação chegam às centenas (e tome control-C control-V). Quem está no comando dessas naves é Riker e ele abre um canal de comunicação com Oh, dizendo que o planeta está sob proteção da Federação de acordo com os termos do Tratado de Algeron. Oh retruca dizendo que os romulanos reivindicaram esse mundo e pede para as naves da Federação se afastarem. Riker então mostra um vídeo de Picard solicitando solução diplomática. E diz para a general, ou comodoro, ou o que quer que seja, que ele está no comando da nave mais casca grossa da Frota Estelar (a Zheng He) e tem centenas de outras iguais mirando os bancos phasers nos núcleos de dobra das naves romulanas. E nada o alegraria mais do que ela dar uma desculpa para ele chutar o traseiro traiçoeiro do Tal Shiar. Mas, em vez disso, ele pediria mais uma vez para que recuasse. Oh ordenou a preparação para o ataque. Riker ordenou armas ligadas e defletores no máximo.
Na La Sirena, Picard piora e Jurati o examina, vendo que sua morte é iminente. Picard diz que precisa falar com Soji e Jurati diz que ele não tem condições. Ele manda Jurati aplicar um remédio que o estabilizará momentaneamente, mas que abreviará a sua morte. Ela aplica o remédio. O canal é aberto e Picard pede que Soji desligue o transmissor, que ela mostre como os romulanos estão errados sobre ela, que ela não é a destruidora. Oh e Riker assistem a transmissão. Soji se nega a desligar, pois fala que a Federação baniu os andróides e os jogou na sucata. Picard retruca dizendo que se isso fosse verdade, a Frota se aliaria com os romulanos e destruiria o planeta. E ele diz que os phasers da Frota não estão apontados para os andróides, porque ele acredita que os robôs farão a escolha certa. E que ele confia em Soji. Picard diz ainda que salvou as vidas dos andróides para que, em troca, os andróides salvem a vida dos orgânicos. Eles estão ali para salvar uns aos outros. A andróide fica petrificada novamente. Mas decide desligar o transmissor e fechar o buraco de minhoca onde um monte de tentáculos iguais aos do Dr. Octopus do Homem Aranha apareciam. Os romulanos decidem recuar e Riker diz a Oh que eles serão escoltados. Oh diz que não será necessário, mas Riker faz questão. Picard e Riker se comunicam e Will diz que voltou à ativa temporariamente, assim que descobriu que Picard havia enviado um SOS. Ainda, que o fato de não ter tentado dissuadir Picard de sua missão não significava que o deixaria sozinho. E Riker ainda disse que não ia ficar fazendo pizza no mato enquanto Picard se divertia. Riker se despede e Picard solta um melancólico “Adieu”, consciente da morte que se aproxima e que essa é a última vez que verá o amigo. Esse fan service foi muito bem montado e se constituiu num dos melhores momentos do episódio, sobretudo na fala de Riker em chutar o traseiro traiçoeiro do Tal Shiar. Houve expressão chula? Sim. Mas dentro de um contexto de animosidade e batalha iminente contra os romulanos, onde não dá para fazer tricô. Picard começa a alucinar vendo Data pintando novamente. Soji, vendo o que está acontecendo na La Sirena, transporta Jurati e Picard para o planeta. Soji pergunta o que ele fez e Picard responde que ele a deu uma escolha de ser ou não a destruidora. Picard chama Elnor e acaricia seu rosto. Depois chama Raffi, e diz que ela tinha razão, mas morre antes de completar a frase. A morte do velho almirante na presença de todos causa muita comoção e choro, depois dele ser esculhambado por quase toda a série. Sentimento de culpa de alguns personagens? Pode ser.
Sete de Nove e Rios conversam. Sete se arrepende de ter matado pessoas só porque elas parecem merecer morrer. Já Rios se arrepende de deixar um velho capitão metido a santo e duro na queda entrar em seu coração e de ficar parado ali vendo esse capitão morrer. Sete perguntou se ele poderia impedir e Rios respondeu que achava que não. Sete diz, então, que o caso dela é pior. Essa sequência foi boa para redimir Sete de Nove daquela vingança que ela concretizou lá em Stardust City, quando ela comete um homicídio logo depois de discutir o que é ser humano com Picard. Uma borboleta mecânica voa e passamos para Raffi e Elnor. Aqui, a coisa foi bem mais comovente, praticamente sem palavras e com um pranto incontrolável de Elnor, consolado por Raffi. Essa cena foi boa na construção dos dois personagens, pois se Elnor não parecia ter muita utilidade na série e era bem infantil, sendo isso visto de uma forma negativa, seu choro ao final mostra novamente seu lado infantil, mas dessa vez de forma virtuosa, pois mostrava como ele era ligado a Picard e gostava do velho almirante. Já para Raffi, consolar Elnor foi a redenção ao seu instinto maternal que havia sido rechaçado violentamente pelo próprio filho.
A borboleta voa de novo para o céu branco. Picard acorda numa sala, em frente a uma lareira, e acha que tudo foi mais um sonho. Mas surge Data dizendo que não, que tudo aquilo era uma “simulação quântica extremamente complexa”. Picard diz que sonha com Data o tempo todo, e o andróide acha interessante. Data pergunta se Picard usa as roupas do dia em que morreu. Picard pergunta a Data se ele morreu e Data confirma que sim. Data pergunta se Picard se lembra de ter morrido e o almirante diz que sim, que foi como se algo sumisse de sua cabeça. Data sabe que morreu em 2379, mas não tem lembranças disso. Picard disse que não se esquece da morte de Data e o robô retruca dizendo que parece que ele salvou a vida do almirante, ao que Picard confirma. Picard diz que ficou furioso e Data pediu desculpas, mas não sabia se poderia ter feito outra coisa. Picard disse que essa foi a coisa mais típica do Data que o robô fez e que lamentou não ter sido ele, o almirante, a morrer. Data pergunta se ele se lamentou em morrer pela Soji e seu povo, ao que Picard retruca que não. Então Data pergunta por que lamenta que o andróide tenha se sacrificado pela vida do almirante. Picard fica sem resposta e pergunta pela simulação em que estão. Data diz que ela é extremamente sofisticada e que seus engramas de memória foram construídos a partir de um neurônio positrônico que Maddox salvou e depois a sua consciência foi reconstruída por seu irmão (o filho de Soong). Picard diz que não gosta muito de Soong e Data retruca dizendo que se precisa de tempo para se aprender a gostar dos Soongs. Picard diz que, seja lá o que for a simulação, que é muito bom rever o andróide e o que ele mais lamentou depois de sua morte foi nunca ter dito que amava Data (aqui a coisa ficou um pouco melosa, mas por todo o contexto desse encontro, a gente deixa passar). Data responde que saber que Picard o ama compõe uma pequena, mas estatisticamente importante parte de suas memórias. E que espera que isso conforte Picard. O almirante diz que sim. Data pede um favor: quando o almirante deixar a simulação, já que Soong e Jurati, com ajuda de Soji, conseguiram transferir seu substrato cerebral para o corpo do andróide sem consciência que está no laboratório de Soong e Picard reviverá, que seja desligada a consciência de Data para que ele possa finalmente morrer. Data diz que não quer exatamente morrer, mas que quer ter uma vida finita, ainda que breve, pois a mortalidade é o que dá o sentido à vida humana, que paz, amor e amizade são preciosidades, pois elas não duram. Data abre a mão e, mais uma vez, a borboletinha aparece. Ela voa e Data diz que uma borboleta que voa para sempre não é uma borboleta de verdade. Picard diz que vai fazer o que pede e Data agradece.O almirante se dirige a uma porta que se abriu e some no branco da luz que vem da porta, não sem antes dar adeus ao andróide. Essa também foi uma parte muito emocionante do episódio e afastou de vez o mito de Frankenstein surgido ao fim do episódio anterior, restaurando um Data totalmente asimoviano numa conversa muito cordial e, principalmente terna, entre o comandante e seu capitão.
Picard acorda no seu corpo de andróide, que é igual ao dele, aos olhos de Soji, Jurati e Soong, perguntando se é real, o que é confirmado por Soji. O corpo do andróide é igual ao do Picard orgânico, mas tudo funciona e sem a anomalia cerebral (eles acreditaram que Picard não se adaptaria a um corpo mais jovem – e também uma desculpa para termos Patrick Stewart na segunda temporada, obviamente). Picard também não é imortal. Ele terá o mesmo número de anos pela frente que teria sem a anomalia cerebral. Picard faz uma piada dizendo que não se importaria em ter mais dez, vinte anos. Picard agradece a Soong dizendo que saiu ganhando, mas que eles não, pois ele terá que cumprir uma promessa, que é dar a morte ao Data. Vemos o andróide escutando na vitrola a música que ele cantou em “Nêmesis”, e de roupão. Enquanto Data deita no sofá, Picard diz a Jurati, Soji e Soong que o andróide, mesmo tendo visto os piores aspectos da raça humana, ainda conseguia enxergar a bondade, curiosidade e grandeza de espírito dos humanos. E que Data, mais do que qualquer coisa, queria fazer parte da família humana. Picard vai desplugando uns pen-drives gigantes e Data vê o seu capitão pegando a sua mão, sentado ao seu lado. PIcard diz que somos da mesma essência que o sonho e nossa breve vida culmina com um sono. Data vai envelhecendo enquanto Picard despluga o segundo pen-drive. E, ao puxar o último, Data fecha os olhos para sempre, e a simulação desaparece em fragmentos que se sobrepõem à imagem do espaço. O episódio termina na La Sirena, com Rios e Jurati juntos, Sete de Nove e Raffi juntas (algo muito forçado e desnecessário), Picard, Elnor e Soji. O Almirante se volta para Soji e pergunta por que está deixando seu lar depois de muito procurar. Ela diz que acha que nasceu para vagar e com a proibição aos sintéticos revogada, que ela pode viajar. Picard diz que também pode viajar. Picard dá o seu tradicional “engage” e a La Sirena entra em dobra. Fim do Episódio. E da série.
Bem, o que podemos falar de bom desse episódio final de Picard? Em primeiro lugar, os momentos em que vemos Riker e Data, para variar. No caso do antigo “Number One” de Picard, ele se portou como um verdadeiro capitão diante do inimigo, falando de forma respeitosa, firme e agressiva nos momentos exatos. Mesmo o “chute no traseiro”, que é associado a um termo de baixo calão, o que foi motivo de crítica em toda a série, aqui pode ser relativizado, pois foi usado dentro de um contexto de animosidade e beligerância entre a Federação e os Romulanos, ao contrário dos outros palavrões gratuitos que vimos ao longo de toda a série. Há que se lamentar que não era a Enterprise-F que não estivesse sob o comando de Riker, e sim a Zheng He, e também do incômodo control-C control-V que uniformizou as naves (fás de Jornada nas Estrelas raiz querem ver cada nave com seu nome e número de registro), mas isso é até compreensível em virtude do baixo orçamento. E, cá para nós, a série clássica, que sofria das mesmas restrições de orçamento, também lançou mão desse expediente. O diálogo entre Riker e Picard, especialmente a parte da pizza, foi particularmente delicioso. Já o momento entre Picard e Data foi especialmente terno e resgatou o espírito de Asimov, maculado no nono episódio com o mito de Frankenstein vindo à tona. Aliás, as referências ao “Homem Bicentenário” de Asimov são muito claras aqui e servem como uma homenagem, dentro de uma visão otimista e utópica de que os andróides existem para serem aliados da humanidade e não o contrário, mesmo que os humanos às vezes não sejam tão virtuosos para com os andróides. Dentro dessa linha, as falas de Picard, ao longo do episódio, trazem essa perspectiva otimista e utópica para com os andróides, o que ajudou a resgatar um pouco a dignidade do personagem, tão chutada e esculhambada ao longo de toda a série.
O que também se mostrou mais um alívio do que uma virtude é que, por hora, não se foi estabelecida nenhuma referência com o futuro distante de Discovery. O problema é que há toda uma segunda temporada pela frente e não sabemos ainda o que pode acontecer, com essa referência podendo ou não surgir. Confesso que espero muito que isso não aconteça, pois Discovery ainda precisa muito se emendar (veremos se isso acontecerá na terceira temporada).
As conversas de Sete de Nove com Rios e Raffi com Elnor, apesar de ocuparem um pequeno espaço no episódio, tiveram a virtude de redimir Sete e Raffi. No caso da primeira, ela se arrepende de seu espírito de vingança, de matar pessoas que parecem que merecem morrer. Realmente tinha ficado muito feio a vingança dela em Stardust City, logo depois de participar de uma conversa com Picard sobre humanidade. Já no caso de Raffi, o ato dela consolar Elnor deu-lhe uma chance de externar seu espírito materno, totalmente tolhido no encontro com seu filho, que tinha a mergulhado num estado de amargura ainda maior. E a Elnor, tivemos a chance de ver sua vertente infantil de uma forma positiva e não caricata (como foi ao longo de toda a série), pois ali percebemos como os sentimentos pelo velho almirante eram muito verdadeiros.
E as partes negativas do episódio? Em primeiro lugar, o excesso de pontas soltas (ou seriam simplesmente esquecidas?). Sete de Nove se junta à tripulação da La Sirena. E sua ligação com os Rangers de Fenris? Ela simplesmente pediu baixa? Eles irão atrás de Annika? Temos, ainda, um enorme cubo borg apinhado de xBs que ficou na superfície do planeta, que foram igualmente abandonados pela ex-borg. Eles recuperarão o cubo e destilarão suas mágoas contra Sete? Já temos sugestões para dois episódios na próxima temporada. Mas elas serão usadas? Se os Rangers e o cubo simplesmente ficarem esquecidos, isso seria um furo de roteiro homérico. A mesma pergunta recai sobre a comunidade de andróides. Eles viverão em paz? Quem garante que os romulanos não vão voltar e aniquilar toda a comunidade? E Sutra? Foi “assassinada” por Soong, ou este apenas a desligou, apertando a tecla on/off? Essa andróide com jeito de Lore vai voltar? Mais algo que simplesmente não pode ser deixado para trás na segunda temporada, sob a pena de cair no furo de roteiro. Outra ponta solta ficou por cargo de nosso malfadado Narek. Já ficou de mau tom ele fazer uma aliança com Rios e Raffi, só para colocar os dois personagens da La Sirena de volta no jogo da trama. Isso poderia ter sido feito de outro jeito. Essa aliança provocou uma barriga enorme no episódio com toda aquela conversa ao longo da fogueira sobre Dia do Juízo Final Romulano e as demônias gêmeas. Todo um misticismo bem ao estilo de Alex Kurtzman que encheu o saco ao longo de toda a série e que não podia (mas podia) faltar no episódio final. Essa pequena trupe consegue se infiltrar na cidade dos romulanos para tentar destruir o transmissor e, ainda por cima, fracassa. E aí, o que acontece? Nosso Narek simplesmente desaparece da história. Sumiu, ninguém sabe, ninguém viu. Nesse caso de ponta solta, espero que fique por isso mesmo, pois esse Narek é um personagem muito do mala sem alça, que carrega essa infeliz aura de misticismo que entorpece a série. Mas ele é uma ameaça fantasmagórica que paira sobre a segunda temporada. Ao invés de Narek voltar, teria sido melhor Rizzo ter permanecido viva e ter feito uma aliança com Oh, sendo uma ameaça bem mais concreta. Quem sabe…
Tivemos, ainda, a soneca do Picard, com meio mundo caindo sob a ameaça dos sintéticos exterminarem os orgânicos. Jurati pelo menos deveria tê-lo encontrado acordado arrumando algum meio de sair da sua prisão. Uma pessoa tão obcecada por sua missão, como ele disse ao longo de toda a série, não ficaria ali simplesmente tirando um ronco. Pegou mal, mas foi uma última esculhambada no almirante.
Os sintéticos avançados eram risíveis. Aqueles tentáculos todos, para se dizer que eles eram do mal, ficaram excessivamente caricatos. Quase vi o Alfred Molina ali como o Dr. Octopus do Homem Aranha. Seria melhor ver naves com um visual ainda mais futurista.
O fato da consciência de Picard ser instalada no corpo do andróide foi algo que soou óbvio demais e ainda foi necessário se encontrar desculpas para a aparência do corpo ser de um senhor de 94 anos ao invés de uma pessoa mais jovem para que o Patrick Stewart pudesse estar na segunda temporada. Talvez tivesse sido melhor que o corpo do almirante fosse curado e regenerado, mesmo que fosse por aquele aparelho mágico dos andróides que aproximava a ficção científica da fantasia. Picard agora é um andróide com consciência humana. Sinceramente, você já se acostumou com essa idéia?
Para finalizar, o romance forçado entre Sete de Nove e Raffi. Jornada nas Estrelas sempre foi uma série inclusiva, que privilegiou a diversidade e o respeito às diferenças. Entretanto, a coisa tem que ser feita não de forma forçada, jogada, mas dentro de um contexto. Esse romance poderia ter sido amadurecido e trabalhado ao longo dos episódios da segunda temporada, por exemplo. É a mesma história da cadeira de rodas em Discovery. Uma pessoa paraplégica não quer se ver no século 23 ainda com esse problema, mas sim curada ou bem mais adaptada à vida. Colocar a inclusão como um mero pano de fundo pega mal para a inclusão como um todo. Esse tema tem que ser apresentado e debatido, de preferência, de forma metafórica, já que é uma série que trata do futuro, caso contrário, o século 24 fica com muita cara de século 21. É claro que a ficção científica é um reflexo do nosso tempo, mas um control C – control V também é uma forma pobre de se abordar o tema.
E o que podemos falar da série como um todo? Bom, na minha modestíssima opinião, o saldo foi apenas regular. Claro que houve todo o bom fan service, com as presenças de Picard, Data, Riker, Troi, Hugh, Sete de Nove, Icheb, Maddox. Os melhores momentos da série foram, sem a menor sombra de dúvida, o encontro de Hugh com Picard, de Riker e Troi com Picard e de Picard com Data. Lá, a gente sentia aquele espírito otimista e utópico de Jornada nas Estrelas e dava para muito matar a saudade. Tivemos, também, uma história que nasce de uma boa idéia, a querela entre os robôs e os romulanos, tomando Data como ponto de início. Entretanto, os problemas foram muitos, a começar pelo próprio protagonista da série, que foi sistematicamente desrespeitado em muitos episódios. Uma certa falta de respeito com personagens antigos (as mortes de Hugh e Icheb até agora não foram assimiladas por minha pessoa) com o objetivo de valorizar personagens novos foi também algo irritante. Não podemos nos esquecer aqui de Sete de Nove, que teve todo um processo de humanização trabalhado em Voyager e foi simplesmente jogado fora em Picard, com Annika se tornando uma badass vingativa que saía cometendo assassinatos a torto e direito. Ainda, se a história parte de uma idéia boa, o mesmo não pode ser dito sobre seu desenvolvimento. Barrigas imensas, como o sonolento relacionamento Soji-Narek ou o misticismo romulano, cumpriram pouca ou nenhuma função na história. A distopia exagerada, que mergulhou fundo nos estados da alma de personagens como Rios, Jurati e, principalmente Raffi, contribuiu para colocar um clima muito pesado na série, que muito se espelhava por seu escapismo e utopia. Falou-se, também do excessivo uso de expressões de baixo calão na série, onde a própria comandante em chefe da Frota Estelar era o paradigma máximo, uma coisa que não existe mais no futuro de Jornada nas Estrelas (vide Jornada nas Estrelas IV, a Volta Para Casa, onde Kirk e Spock falam das “metáforas coloridas”). Falou-se, também, do mau tom de consumo de bebidas alcoólicas, fumo e drogas. Tudo isso recai na história de um século 24 com muita cara de século 21, onde as questões de nosso tempo não estão sendo tratadas com a menor sutileza ou alegoria. E numa agenda política demasiadamente forçada que não respeita o cânon e que deveria ser mais contextualizada na série. Volto a dizer que Jornada nas Estrelas é uma série que sempre vai valorizar a representatividade e a diferença, e o fato de ver isso na série sempre é positivo. Entretanto, dependendo da forma como essa representatividade e diferença são abordadas, os efeitos disso podem ser nocivos para a própria representatividade e diferença que se pretende exaltar. Não adianta, por exemplo, colocar mulheres em altos postos de comando, se elas são vilãs ou falam palavrão na cara de personagens que eram considerados antigos machos alfa. Isso acaba se tornando uma espécie de desserviço ao próprio empoderamento feminino.
Isto
posto, podem até me chamar de dinossauro, que não aceito o novo, etc., etc. Mas
também não podemos nos esquecer que Jornada nas Estrela é uma série de mais de
cinquenta anos, onde a atuação dos fãs sempre foi muito importante. Desde o
abaixo assinado para se assegurar a terceira temporada da série clássica,
chegando até todas as séries das décadas de 80, 90 e 2000, onde os produtores
escutavam a opinião dos fãs e era praticamente uma regra geral as séries
melhorarem depois da primeira ou segunda temporada. É claro que o sistema de
séries antigamente, com uma temporada de mais de vinte episódios de cerca de
quarenta e cinco a cinquenta minutos sendo produzidos ao longo de todo um ano,
dava uma melhor oportunidade de ajustes. Do jeito que é feito hoje, no
streaming curto de dez a quinze episódios, onde tudo é produzido previamente, a
coisa fica mais difícil. Mas creio que sempre a boa história pode se adaptar a
qualquer formato de série. E, principalmente, se estar aberto às sugestões e observações
dos fãs, o que parece que os produtores atuais de Jornada nas Estrelas parecem nem
sempre estar dispostos a fazer. Ainda, pode-se estar antenado à realidade
cotidiana sem violar muito o cânon. Isso já foi mostrado nas séries antigas de
Jornada nas Estrelas. Como um exemplo disso tivemos os klingons, produto da
guerra fria e metáfora da União Soviética, que foram, após o fim da guerra
fria, mais voltados, na minha modesta opinião, para a cultura árabe, com a exaltação
dos valores guerreiros, e, posteriormente, para a cultura islâmica, onde
Khaless era o paradigma. Tudo isso numa visão culturalista que ajudava a
diminuir o preconceito contra a cultura árabe e islâmica que grassava no mundo
das décadas de 80, 90 e que volta com força total hoje. Assim, os roteiristas e
showrunners de hoje têm como fazer algo melhor com Jornada nas Estrelas e serem
contemporâneos sim. Basta ter criatividade, que parece ser algo que falta um
pouco a esses senhores e senhoras.
Resta, agora, cruzar os dedos e ver o que vem por aí de Jornada nas Estrelas. Esperemos mais criatividade, aliada ao cânon e à contemporaneidade.
Um documentário perturbador na Netflix. “Indústria Americana” ganhou o Oscar de Melhor Documentário esse ano e revela uma das faces mais cruéis do capitalismo no mundo contemporâneo pós-guerra fria. Um filme que mostra os rumos perigosos que o mundo está tomando e que nos faz refletir, e muito. Esse documentário teve a participação de Barack Obama entre os produtores. Para podermos falar sobre esse filme, vamos lançar mão de spoilers.
O filme começa com o fechamento de uma fábrica da GM em Ohio e a consequente demissão de todos os seus trabalhadores, ficando totalmente desguarnecidos em virtude da crise econômica que aflorou em 2008. Mas, alguns anos depois, um fio de esperança apareceu, pois uma empresa chinesa decidiu abrir uma fábrica de pára-brisas, empregando a mão-de-obra local. Até aí, tudo bem. Mas haveria um primeiro problema nesse aparente feliz casamento entre chineses e americanos: superar as barreiras culturais. O estranhamento se faz inevitável, pois as visões de mundo de americanos e chineses eram muito diferentes e logo entrariam em conflito. Os americanos, acostumados com os direitos trabalhistas e os altos salários motivados pelo “welfare state” não estavam acostumados com a disciplina milenar dos chineses, que pensavam mais no sucesso da empresa do que em ganhar salários. Os chineses achavam que os americanos estavam num patamar inferior, pois não se dedicavam a um maior ritmo de produção. E os americanos reclamavam que os chineses não cumpriam as leis trabalhistas básicas, como a segurança no trabalho. Para colocar um ingrediente nesse conflito, os chineses abominavam a presença do sindicato entre os trabalhadores e fizeram de tudo para dissuadi-los dessa presença. Numa queda de braço desigual, a gente já sabe muito bem quem sai perdendo nessa história e o desfecho do filme não tem nada de esperançoso ou promissor.
O mais irônico aqui é que os chineses, originariamente de um país socialista, agem como se estivessem no capitalismo mais selvagem dos anos iniciais da Revolução Industrial, onde não havia qualquer direito trabalhista. Na fábrica da China, por exemplo, os trabalhadores vão à fábrica aos sábados e domingos e praticamente vivem nela, vendo seus entes queridos uma ou duas vezes por ano, chegando a trabalhar doze horas por dia. No caso dos Estados Unidos, a diretoria da fábrica era dividida entre chineses e americanos. Mas, assim que as metas começaram a não ser cumpridas, os americanos da diretoria foram todos demitidos e os chineses passaram a controlar tudo, o que somente aumentou a exploração sobre os trabalhadores. Os americanos também reclamavam dos baixos salários e do tratamento que recebiam dos chineses. Já os chineses achavam que essa atitude dos americanos era uma consequência da criação de pessoas que foram muito mimadas na infância. As ameaças com quem se ligava aos sindicatos também logo se concretizariam com demissões.
Ao fim das contas, esse filme mostra uma situação que acontece em nível global e que já foi assinalada no bom documentário “Dedo na Ferida”, de Silvio Tendler. Enquanto ocorria a guerra fria e o antagonismo socialismo X capitalismo, as potências capitalistas ocidentais lançaram mão do famoso “welfare state” ou “estado de bem estar social”, ou seja, garantir direitos sociais e trabalhistas para sua população, já que isso acontecia nas potências socialistas, mesmo que houvesse ditaduras. O caso mais conhecido do “welfare state” estava nos países escandinavos, casos de Noruega, Finlândia e Suécia. Com o fim da guerra fria e dos países socialistas, as potências capitalistas não se viram mais obrigadas a garantir o “welfare state” e, consequentemente, os direitos trabalhistas começaram a cair por terra, enquanto grupos de direita avançavam ao poder. Para piorar a situação, as crises econômicas pelas quais o capitalismo passou nos últimos anos ajudaram a aumentar a instabilidade. Então, o que vemos hoje é uma progressiva derrubada dos direitos trabalhistas, do enfraquecimento dos sindicatos e da queda de salários, além do aumento de horas de trabalho. O mais irônico aqui é que é uma empresa chinesa, de um país teoricamente socialista, aplica o capitalismo mais selvagem em trabalhadores de um país que era a Meca do capitalismo, e eles vão precisar lutar por seus direitos e se sindicalizar, numa total inversão de papéis. Some-se a isso a mecanização do trabalho, que é mais um elemento a aumentar o desemprego e temos um cenário muito negativo para o futuro. Esse será um dos desafios que a humanidade vai ter que enfrentar nesse século.
Dessa forma, “Indústria Americana” é um documentário obrigatório, não somente pelo Oscar conquistado, mas pela forma como ele mostra os rumos bem crus que o sistema capitalista toma em todo mundo após o fim da guerra fria. Um filme que nos convida a uma reflexão profunda.
Mais um filme com Catherine Deneuve. Mais um filme dirigido e estrelado por Cédric Kahn. “Feliz Aniversário” repete formulas antigas, sobretudo aquela em que a família se encontra na festa de aniversário da matriarca da família e, ao invés do clima de congraçamento, temos uma sucessão de arranca-rabos e resolução de diferenças e feridas antigas. Embora o filme tenha sido rotulado como comédia dramática e até tenha algumas cenas engraçadas, a coisa parece muito mais com um drama bem pesado.
Andréa (interpretada por Deneuve) recebe seus filhos em casa, cada um com suas manias e se achando supostamente o dono da verdade. Mas o fator maior de desestabilização é Claire (interpretada por Emmanuelle Bercot), filha de Andrea e que estava sem contato com a família há quatro anos (ela estava nos Estados Unidos). Querelas do passado fizeram com que a família devesse a Claire duzentos mil euros e agora ela cobrava essa dívida, o que vai implicar na venda da casa onde mora Andréa. Mas essa é apenas uma das diferenças a serem encaradas por essa família em que tudo parecia ser desentendimento.
Realmente, esse é um filme que não tem a menor graça. Vemos parentes se agredindo mutuamente o tempo todo, num espetáculo que até começa um tanto tragicômico mas que, gradualmente, se torna cada vez mais tenso e chega a um clímax angustiante, com um membro da família (Claire) chegando a explosões de paroxismo onde estava com claros problemas emocionais, o que não foi suficiente para sensibilizar alguns parentes próximos. E ficava até difícil tomar alguma posição, pois a multipolaridade de Claire a tornava, simultaneamente, digna de pena e odiosa.
O elenco correspondeu bem. Além das boas atuações de Deneuve e Kahn, a gente tem que dar destaques para Bercot, que levou com muita competência o papel mais difícil de Claire, o bom ator Vincent Macaigne, que fez o filho Romain e a revelação Luàna Bajrami, que já havia brilhado em “O Professor Substituto” como Emma, a filha de Claire, que não a perdoava por ter ido embora para os Estados Unidos e a defendeu quando a mãe explodiu de forma totalmente descontrolada no jantar da família. É realmente um filme que vale a pena pelas atuações dos atores.
Assim, “Feliz Aniversário”, apesar de ser um clichezão já meio batido, é um filme que se ampara num bom elenco e transita do tragicômico para o angustiante. Uma experiência um tanto dolorosa, mas que vale a pena pelos diálogos e pelas atuações dos atores.