Quando falamos de Rian Johnson, a primeira palavra que vem às nossas mentes é polemica, sobretudo em virtude do Episódio 8 de “Guerra nas Estrelas”. Uns gostaram, outros não (me incluo no segundo grupo). O que acabou acontecendo é que Johnson foi retirado da franquia, mesmo ele tendo sido designado previamente para cuidar da nova trilogia nos anos vindouros. Após toda essa decepção, Rian Johnson veio com uma excelente película, daquelas bem arrebatadoras, que é “Entre Facas e Segredos”, uma história policial à moda antiga onde um assassinato precisa ser esclarecido, havendo uma lista enorme de suspeitos além de outros personagens interpretados por um baita de um elenco: Ana de Armas (de “Blade Runner, 2049”), Daniel Craig, Christopher Plummer, Frank Oz, Jamie Lee Curtis, Michael Shannon, Don Johnson, Toni Collette, Chris Evans, M. Emmet Walsh. Esse filme concorreu ao Oscar de Melhor Rpteiro Original. Para podermos falar da película, vamos precisar lançar mão de spoilers.
A trama gira em torno da morte de Harlam Thrombey (interpretado por Plummer), um escritor que conseguiu montar uma fortuna com a venda de seus Best Sellers e uma editora. A policia investiga a morte e o investigador Benoit Blanc (interpretado por Craig) é chamado como consultor. Nos interrogatórios, vemos que filhos, genro, netos, bisnetos, todos têm alguma motivação contra Thrombey mas não a ponto de matar o patriarca na visão da polícia, embora, por meio de flashbacks, percebamos que a coisa podia ser um pouco mais complicada. Uma peça chave na história é Marta Cabrera (interpretada por De Armas), a cuidadora de Thrombey que, acidentalmente, injetou uma alta dose de um medicamento que mataria o idoso em questão de minutos. Este então usou seus últimos minutos de vida para pensar num álibi, bem ao estilo de seus romances policiais, para livrar Cabrera de qualquer culpa sobre sua morte. Mas a história não seria tão simples assim e muitas reviravoltas aconteceriam, envolvendo inclusive, o mal intencionado Ranson (interpretado por Evans), que finge se aproximar de Cabrera. O detalhe cômico aqui é que Cabrera não consegue mentir, tendo um acesso de vômito toda vez que tenta encobrir alguma coisa.
Esse é o tipo do filme que necessita de uma grande atenção do espectador, pois a trama é muito tortuosa e elaborada, mostrando o bom trabalho de Rian Johnson, que assina o roteiro e a direção. O elenco estelar também ajuda muito, pois a gente vê todo um rosário de artistas muito talentosos fazendo os personagens. Outra atração à parte são os muitos plot twists do filme, que parece esclarecer a trama da morte do patriarca antes mesmo da metade da exibição, mas que trouxe muitas viradas e surpresas à medida que a história ia se desenrolando e onde a maioria dos personagens foi relativamente bem usada e tinha a sua importância no desenvolvimento da história.
Dessa forma “Entre Facas e Segredos” é um trabalho que consegue redimir a carreira de Rian Johnson depois da má impressão que ficou dele em “Guerra nas Estrelas”. Se a fórmula usada não foi tão original (já vimos tramas policiais cheias de personagens interpretadas por um grande elenco em outras ocasiões), ainda assim é uma receita que dá certo e é muito bem vinda quando novamente usada. Vale a pena dar uma conferida.
Um filmaço. “Batalha das Correntes” fala da disputa comercial entre Thomas Edison (interpretado por Benedict Cumberbatch) e George Westinghouse (interpretado por Michael Shannon) pelo controle do uso da energia elétrica, algo que provocaria uma verdadeira revolução tecnológica na virada do século XIX para o século XX. Para que possamos compreender melhor o filme, vamos precisar de spoilers.
O que podemos dizer inicialmente é que, em termos de celebridade, Edison era muito mais famoso do que Westinghouse, pois foi atribuída ao primeiro a invenção da lâmpada elétrica. Entretanto, Westinghouse teve o mérito de lançar mão da corrente alternada para levar a eletricidade aos pontos mais distantes das usinas elétricas, embora ela pudesse ser letal em caso de acidentes. Edison, por sua vez, preferia usar a corrente contínua, bem menos perigosa, mas de alcance muito limitado. Revoltado por ver Westinghouse desenvolver sua invenção, Edison o atacava de todas as formas, acusando o empresário de usar uma forma de energia letal. Westinghouse, por sua vez, adotava uma postura bem menos agressiva e até almejava uma parceria com Edison. A grande verdade é que o empreendimento de transformar a invenção da energia elétrica num uso de escala industrial e irrestrita a todos, ricos ou pobres, era algo extremamente custoso que quase levou os dois à falência. E o filme descortina essa competição, com lances inusitados como, por exemplo, usar a eletricidade como uma forma mais humanitária de execução, onde foi criada a cadeira elétrica, em contraponto aos enforcamentos onde o pescoço do condenado ainda tinha que ser quebrado caso ele não morresse de imediato no cadafalso. Nesta questão, Edison foi contra as próprias convicções (não usar suas invenções para provocar a morte de pessoas) em virtude da sua competição feroz com Westinghouse. Mas o filme deixa a entender que o objetivo de se usar a eletricidade de forma ampla foi conseguido, principalmente da ocasião da Feira Mundial de Chicago, toda iluminada com energia elétrica. O desfecho também aponta para um happy end, onde um possível entendimento de Edison e Westinghouse se vislumbrou no ar. No meio desses dois gigantes empresários, também tivemos a presença de Nicola Tesla (interpretado por Nicolas Hoult), que foi o primeiro a pensar o uso das Cataratas do Niágara como força motriz para um motor elétrico, sendo o precursor das conhecidas usinas hidrelétricas de hoje. O desfecho do filme também mostra, com imagens reais, o que aconteceu com os protagonistas. Westinghouse ficou com os méritos do uso de energia elétrica em larga escala com a ajuda de Tesla, mas este terminou a vida quebrado, ao passo que Edison ficou com a fama de ser o inventor do cinematógrafo.
O grande detalhe desse filme é o elenco. É um rosário de atores que fizeram personagens da Marvel. Além de Cumberbatch e Hoult, tivemos também a presença de Tom Holland no filme, interpretando o braço direito de Edison. Mas a grande surpresa aqui foi ver Michael Shannon finalmente não interpretando um vilão. Aliás, se compararmos Edison e Westinghouse no quesito caráter, o segundo era muito mais virtuoso que o primeiro, e é legal ver Shannon escapando do estereótipo do mau.
Dessa forma, “A Batalha das Correntes” é um grande filme que merece a atenção dos cinéfilos, pois ele fala da história real de um passo muito importante da revolução tecnológica da virada do século XIX para o século XX com a ajuda de um bom elenco. Um filme sem mocinhos ou bandidos, mas que ainda assim tem personagens com suas virtudes e defeitos. Vale muito a pena dar uma conferida.
Chegamos ao nono episódio de “Jornada nas Estrelas Picard” com um gosto de cabo de guarda-chuva na boca e uma tremenda cara de anticlímax. Quando esperávamos que haveria um plot mais desenvolvido com a ação final da série mais instigante e distribuída ao longo de um intervalo de tempo maior, tivemos um desenvolvimento de história mais lento e a sensação de que apenas o décimo e último episódio não será suficiente para fechar toda a trama, ficando algumas questões a serem resolvidas numa eventual segunda temporada. Para falarmos desse episódio, os spoilers serão necessários.
O episódio começa com a La Sirena saindo do conduíte de transdobra. O planeta dos andróides é o quarto planeta do Sistema Ghulion. Soji diz que esse planeta se chama Coppelius. Tudo parece muito calmo quando a nave de Narek sai do conduíte e começa uma batalha de naves espaciais. A nave de Narek aparentemente é inutilizada, com o pulso de Narek fraco e Soji sugere que não o ajudem, pois seria um truque (esse é o primeiro sinal do mito de Frankenstein que se avizinha e que veremos pululante ao final do episódio). Picard diz que há uma diferença entre matar um inimigo que ataca e ver um ferido morrer, num dos arremedos de utopia que buscam despistar o mar de distopia da série. Picard pede a Raffi para que Narek seja transportado à enfermaria da La Sirena e, subitamente, a nave do romulano volta a atacar. Ou seja, para cada boa ação, uma punição, bem ao espírito distópico da série. Enquanto a La Sirena está sob ataque, o cubo borg sai do conduíte de transdobra. O cubo carrega suas armas e, subitamente, cinco orquídeas gigantes (?!?!?!) vêm do planeta e envolvem as naves e o cubo. A energia cai na La Sirena, com os tripulantes perplexos com aquelas flores gigantes espaciais. Logo vem uma trepidação e as naves e o cubo caem na atmosfera. Picard parece em transe e possuído por algo, agradecendo aos demais tripulantes por terem vindo. Esse transe ficou somente nisso e não teve mais nenhuma utilidade na história. A tripulação socorre o velho almirante. Começa a abertura. Após a abertura, Picard é acordado por Jurati na enfermaria (isso mesmo, a Jurati que matou Maddox há alguns episódios atrás, está sozinha com Picard na enfermaria!). A nave está sem energia e na superfície do planeta (como o impacto da queda foi atenuado? Alguns estão defendendo que isso foi por obra e graça das orquídeas. Enfim…). Jurati examinou Picard com um tricorder médico antigo e descobriu a doença do almirante, ficando com os olhos marejados perante um Picard cônscio de que descobriram seu segredo. Picard convoca a tripulação para dizer que está entregando Soji aos andróides e irá comunicá-los que os romulanos vêm para atacá-los. Picard ainda fala de sua doença para a tripulação, causando uma comoção geral, isso depois de ser chutado que nem um cachorro morto sarnento por quase toda a série por alguns dos personagens presentes. Pelo menos Picard disse que o assunto de sua doença estava encerrado e que se alguém voltasse a mencioná-lo, o almirante ficaria puto da vida. Há um povoado de andróides a cinco ou seis quilômetros de distância, que Soji diz que viveu por lá por um tempo, embora suas lembranças disso sejam nebulosas. Mas, antes de irem à cidade, eles decidem ir ao cubo borg, que também caiu e miraculosamente não se espatifou (as orquídeas?). Sei não, mas o cubo no solo me remeteu aos restos da Estrela da Morte em Endor no Episódio IX de Guerra nas Estrelas. Enfim… Ao chegarem ao cubo, constataram que o pouso do mesmo não foi tão suave assim, mas encontraram um monte de xBs vivos, sendo que um até chamou Picard de Locutus, provocando um desconforto temporário no velho almirante. Do nada, aparece Elnor abraçando Picard e, depois, Sete de Nove, chutando uns cadáveres para abrir espaço, numa cena de extremo mau gosto. Só se espera que, dentro do espírito de vingança da série, Annika tenha chutado cadáveres de romulanos e não de xBs. Mesmo se isso tenha acontecido, a coisa não ficou bonita, muito pelo contrário. No cubo, a energia funciona e, ao se ligar os sensores de longo alcance, foi descoberto que 218 naves romulanas se dirigem ao planeta. Esse foi um ponto que despertou muita polêmica, pois se a supernova destruiu os romulanos, eles teriam quatorze anos para fazer 218 naves? Outra questão que surgiu é a de que essas naves não poderiam existir antes e evacuar a população? Foi falado que era gente demais para ser evacuada por apenas 218 naves. Mas ainda a questão central permanece: como um império poderoso e vasto como o romulano não teria condições de evacuar apenas dois planetas?
Picard se despede de Elnor e Sete de Nove, recomendando que eles liguem o sistema de defesa do cubo e protejam os xBs. Sete diz para que Picard continue salvando a galáxia e ele retruca que isso agora está nas mãos dela. Gancho para um spin off da Sete de Nove? Muitos falaram sobre tal possibilidade e devem desejar isso. Mas, se for uma série para escrever de forma esculachada a Sete de Nove, eu confesso que prefiro que nem isso aconteça. Ainda, deixxar um gancho para um spin off não significa que ele se concretize. Depende muito do sucesso do que vemos atualmente na tela. E aí…
Picard e sua trupe chegam a cidade dos andróides, um mundo idílico cheio de robôs com direito a voos de borboletas artificiais. Vemos muitos andróides gêmeos. Uma andróide chamada Arcana dá as boas vindas de volta a Soji, que se sente em casa. Arcana reconhece Picard como capitão de Data e diz que essa surpresa é comovente. Soji comunica o iminente ataque romulano e há apenas dez orquídeas para defesa. Um homem de cabelos brancos aparece. É o Doutor Altan Ingo Soong, filho do Doutor Soong, que criou Data. Outra andróide igual Soji aparece. É Sutra, irmã de Jana, por quem Rios havia se apaixonado. Sutra conversou com Picard e este lhe contou sobre a situação de Jurati com a advertência e de como ela matou Maddox por causa disso. Sutra desconfia que a advertência só é tolerável para mentes sintéticas e, como estudiosa da cultura vulcana, sugere fazer um elo mental com Jurati para ter conhecimento da advertência. Aqui é necessário abrir um parêntese. Muitos fãs reclamaram (e com razão, a meu ver) de que um elo mental é uma coisa feita por um vulcano, ou seja, um ser vivo com consciência, algo que seria vedado a um andróide, por se tratar de uma máquina. Sutra é uma andróide ao estilo do Data, não orgânica, e, portanto, menos desenvolvida que Soji. Como ela teria capacidade de fazer um elo mental, uma coisa que tem a consciência de um ser vivo senciente em questão? E, para colocarmos um pouco mais de lenha nessa fogueira, o físico Marcelo Gleiser diz em seus livros que, mesmo que fizéssemos uma máquina com a mesma capacidade de um cérebro humano, ainda assim, não poderíamos dizer que um ser vivo foi replicado mecanicamente, pois há a questão da consciência que é algo que a ciência ainda não entende. Ou seja, fazer um cérebro humano mecânico em sua totalidade não significa que vamos criar um ser com consciência.
Bom,
o elo mental revelou que as formas de vida orgânica buscam a perfeição e, por
isso, criaram as vidas sintéticas, mas ao perceberem que as vidas sintéticas
não envelhecem e se perpetuam, veem as vidas sintéticas como uma ameaça e decidiram
destruí-las e, por isso, destroem a si mesmos. Há uma vida sintética mais
avançada que aguarda o sinal da vida sintética desenvolvida pelos orgânicos.
Uma vez que os sintéticos desenvolvidos pelos orgânicos convoquem a vida
sintética mais desenvolvida, esta virá para destruir os orgânicos. Ou seja,
mais do Mito de Frankenstein que Asimov já rechaçou lá pelos anos 30, 40 com as
suas Três Leis da Robótica, sendo reciclado aqui em pleno 2020. Esse mito acaba
sendo legitimado na série quando Sutra fala “Fascinante” ao ver toda a visão,
sendo uma dolorosa ironia ver essa expressão consagrada por Spock para
ressuscitar uma ficção científica bem distópica pré-Jornada nas Estrelas. Ou
seja, para testemunharmos andróides como máquinas destruidoras da humanidade,
basta ver “Metrópolis”, de Fritz Lang, realizado lá no longínquo ano de 1926.
Jurati
conversa com Soong sobre Maddox. Este diz que a moça tem uma enorme dívida por
ter tirado a vida de Maddox e sugere a ela uma forma de reparar isso. Ele
mostra um corpo de um sintético para Juraati e fala que só faz os corpos mas
tem interesse em estudar a transferência mental. Ou seja, a transferência de
consciência de um corpo para a máquina (algo que, como vimos acima nas
explicações de Gleiser, é impossível por não sabermos o que é uma consciência;
mais uma vez a ficção científica dá um voo mirabolante demais e se aproxima
muito da fantasia). Obviamente, uma consciência vai ser transferida para essa
máquina. Aí as conversas de nosso fandom se abrem a mil especulações. Seria
Data? Seria a forma de preservar Picard, já que ele está doente e desenganado?
Seria Lore, o irmão maligno de Data, agora que o Mito de Frankenstein pulula
alegremente pela série?
Sutra e Soji discutem o que fazer frente a uma possível investida romulana. Soji pensa numa solução que não leve a uma guerra aberta com muitas mortes, mas Sutra não vê outra alternativa e prefere o combate franco e aberto. Nisso, aparece Narek sendo trazido pelos robôs.
Rios fala com Jurati que vai retornar para a La Sirena para tentar religar a nave, pois Picard acha que eles podem ir embora. Rios também diz que não confia nos andróides. Jurati diz que vai ficar para trabalhar com Soong. O mais estranho é que Rios desconfia dos andróides e não faz nenhuma objeção a Jurati ficar, justamente a moça com quem ele tem um caso. Ou seja, mais um furo de roteiro de algo mal escrito. Rios e Raffi vão embora, mas antes Arcana dá uma ferramenta a Raffi que “conserta coisas”. Raffi pergunta como a ferramenta funciona e Arcana diz: “use a imaginação” (mais um flerte da ficção científica com fantasia? Essa afirmação me pareceu “pirlimpimpim” demais). Não podemos deixar passar aqui: Raffi dá um abraço em Picard, diz que o ama e agradece por tudo o que ele fez para ela. Isso depois dela esculachar o almirante por boa parte da série. Bipolaridade, como eu falei quando ela apareceu na série pela primeira vez? É impressionante como a proximidade da morte inverte drasticamente as opiniões e visões de mundo das pessoas.
Picard tenta entrar em contato com a Frota Estelar e relatar o ocorrido requerendo permissão para estabelecer negociações diplomáticas para evitar o ataque romulano. Na prisão, Narek pede para Saga (a irmã gêmea de Arcana) que lhe dê a água que está em sua mochila. A robô disse que nunca tiveram prisioneiros e que não sabem como tratá-los. Mas, vem cá, as orquídeas espaciais não imobilizam as naves invasoras e as pousam sem matar ninguém? É claro que eles deveriam ter um protocolo de como se tratar prisioneiros nesse caso. A robô ia abrir a cela quando Soji a interrompe e diz para não fazer isso. Narek tenta enrolar Soji novamente, mas ela não cai na conversa dele desta vez. Ele então a ameaça dizendo que os romulanos matarão todas as formas de vida do planeta e ela reage dizendo que isso não vai acontecer. Poderia ter sido nesse momento que ela deixou de optar por uma solução pacífica e aderir à visão belicista de Sutra. Mas logo depois Soji vai conversar com Picard e diz que não entende a lógica do sacrifício que Jurati abraçou ao matar Maddox com o intuito de salvar vidas. Picard diz que não gostou da expressão “lógica do sacrifício” e disse ainda que o cálculo da vida e da morte depende de ser você ou não quem segura a faca. Soji ainda se pergunta se pode existir um caso em que matar seja a única garantia de sobrevivência, o que deixa Picard assustado. Pode ter sido aqui que Soji finalmente tenha ficado do lado de Sutra. Esta chega na cela de Narek, dispensa Saga e solta o romulano, deixando implícito que os dois farão um trato.
Enquanto Picard e Soji conversam, eles escutam um grito e correm para a cela de Narek. Lá encontram Saga morta e Soong lamentando isso. Soji lamenta a chance que teve e desperdiçou de matar Narek, deixando bem claras as suas intenções de agora em diante.
Sutra discursa para os robôs, com o aval de Soong, e defende a idéia de entrar em contato com os sintéticos mais desenvolvidos, que possuem uma Federação que tem contato com outras galáxias, para atacar os romulanos e extinguir a vida dos orgânicos. A advertência teria enviado de forma codificada as frequências subespaciais para contactar os sintéticos mais desenvolvidos. E Soong e Sutra criaram um dispositivo para entrar em contato. O discurso de Sutra é o de eliminar todos os orgânicos para evitar que estes destruam os andróides, inclusive a Federação, já que esta aboliu os sintéticos. Piccard contra-argumenta dizendo para Soji que a profecia se cumpre, já que a destruidora finalmente apareceu. Picard então faz um discurso dizendo que tem como proteger os robôs, que vai falar com a Federação para salvaguardar os andróides, suspender a proibição de fabricar andróides, etc. Nisso, o próprio Doutor Soong desmente Picard, dizendo que a Federação não irá ouvi-lo. Além disso, Soong diz que os andróides não entenderam uma palavra do que Picard disse, pois não conhecem os valores de integridade e caráter que existem na Terra e em Picard. Ainda, Soong fala para os robôs que Picard não foi ouvido depois do ataque a Marte e, por isso, não será ouvido agora também. Picard, continua Soong, deverá ser colocado em prisão domiciliar pois, segundo Sutra, o almirante poderá tirar a convicção dos andróides em atacar os sintéticos. Na base da trairagem pura, Soji (por uma questão de sobrevivência) e Jurati (por ter encontrado o seu lugar que é o auge de sua pesquisa científica de uma vida inteira) ficam do lado dos andróides contra Picard depois de, no início do episódio, se emocionarem com a condição terminal do almirante (você acha que isso encaixa, caro leitor? Eu também não). Picard é então levado para sua prisão domiciliar em mais uma mostra de como o protagonista (?) da série é chutado e esculhambado como um cachorro morto. Vemos Sutra com um semblante triunfante e uma Soji com um olhar de dúvida. O episódio termina com a frota romulana se aproximando do planeta em menos de vinte e quatro horas.
Qual é a primeira palavra que me vem à cabeça sobre esse episódio? Decepcionante. Vimos pouco desenvolvimento de história no sentido de desenrolar a parte final. E, ainda mais: surgiu a questão (óbvia, para alguns) de que os andróides assinaram embaixo toda a agressividade despertada na advertência. Sendo óbvio ou não, a ressurreição do Mito de Frankenstein, onde o ser humano é punido por brincar de Deus incomoda, e muito, pois surge como um castigo ao possibilismo da ciência, uma negação do racionalismo que vimos ali na virada do século XIX para o XX, sobretudo em movimentos artísticos mais subjetivistas como o impressionismo, surrealismo, expressionismo, dadaísmo, etc. Como foi dito acima, será Asimov que vai remar na contramão dessa tendência à demonização do robô com as suas Três Leis da Robótica, onde o robô é, antes de tudo, um aliado do ser humano e não o seu antagonista. Data era o ícone máximo disso, mesmo que seu cérebro positrônico não funcionasse segundo as três leis. E o que vemos agora? Esse Mito de Frankenstein voltando com toda força, praticamente um século depois e, por mais perverso que isso possa parecer, a partir de pedaços do finado Data. Quando dizemos que os escritores atuais de Jornada nas Estrelas parecem querer pisar (no sentido de destruir) toda a utopia que a série representava, esse exemplo do Mito de Frankenstein a partir do Data asimoviano parece ser um exemplo paradigmático. É claro que pode haver um grande plot twist no último episódio, mas a mera menção de que os andróides confirmam a previsão da advertência nesse episódio e se tornam uma ameaça aos orgânicos é algo no mínimo perturbador. Ainda, para piorar, Picard será tratado de uma forma altamente desrespeitosa. Apesar de isso ser uma constante em quase toda a série, aqui a situação foi especialmente revoltante, pois a gente vê a condição de todos contra ele, até os seus aliados mais próximos como Jurati e Soji, quem ele salvou da perseguição e morte certa no cubo. O que resta ao velho almirante agora? Rios, Raffi, Elnor e Sete de Nove. Federação como cavalaria? Em guerra contra uma enorme frota romulana que vai se digladiar contra uma espécie de sintéticos desenvolvidos? Parece um final que promete muito. Mas aí vem outra questão: essa série parece ter um baixo orçamento. Criou-se as condições para um final espetacular, regado a muita ação. Mas houve dinheiro para se fazer isso tudo e se contar uma boa história agora no desfecho? Ou a falta de grana vai descambar para um final simplório e aberto para continuar a ser desenvolvido numa eventual segunda temporada? E eu digo eventual, pois será que ela ocorrerá mesmo? E mais: qual consciência irá para aquele andróide construído por Soong?
Mais um episódio pela frente apenas. Depois de nove episódios, alguns com suas virtudes, mas vários com muitos problemas, o saldo dessa série parece não ser muito positivo. Uma história que traz uma boa idéia, só que mal desenvolvida. E que parece ter pouco conhecimento do universo de Jornada nas Estrelas por parte de quem escreve. De qualquer forma, vamos ver o que vai rolar no último episódio.
Mais um filme que concorreu ao posto de finalista entre os candidatos ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “O Paraíso Deve Ser Aqui” é o representante da Palestina e traz a questão palestina sob a ótica do humor. Escrito, dirigido e estrelado por Elia Suleiman, o filme tem sido comparado às películas de Jacques Tati e Charlie Chaplin, já que Suleiman nos traz situações engraçadas e seu personagem é mudo por durante quase toda a película. Para podermos falar desse filme, vamos lançar mão de spoilers.
Do que se trata o plot? Suleiman vive em Nazaré e tem um relacionamento um tanto instável com o seu país. Um dos vizinhos se mete com o limoeiro de outro, a vizinhança não interage muito bem, a polícia israelense achaca os palestinos e por aí vai. Cansado do que vê no seu dia-a-dia em seu país, Suleiman decide sair de lá e tentar a vida, primeiro em Paris, depois em Nova York. O problema é que as metrópoles desenvolvidas também têm seus vícios. Paris está tomada pelo medo do terrorismo, com tanques andando pelas ruas e vários policiais perseguindo velhinhas com bolsas no metrô. Já nos Estados Unidos, o medo do terrorismo também se faz presente, mas a sociedade americana é retratada de forma muito mais irônica, com direito a zoação até com o Actor’s Studio. Mas uma coisa é certa: nosso Suleiman não consegue apoio para fazer seu filme nas duas cidades. Em Paris, seu projeto é delicadamente rejeitado pois ele não se encaixa nos estereótipos da questão palestina pela ótica européia ocidental, ou seja, uma comédia que poderia ser feita na Palestina ou em qualquer outro lugar (como vemos ironicamente no filme). Já em Nova York, a produtora de filmes nem dá confiança para nosso diretor, mesmo com o pistolão de Gael Garcia Bernal (que faz uma ponta na película). Sem perspectivas de encontrar um outro local no mundo para viver, resta a Suleiman retornar à Palestina.
A estratégia da comédia para abordar a questão palestina não é novidade na obra de Suleiman, que já havia lançado mão do ato de fazer rir no ótimo “Intervenção Divina”, de 2002, que segue uma linha bem semelhante, onde o personagem protagonista também nada diz e fica estupefato com a verdadeira ópera do absurdo, onde a arte imita a vida. O medo do terrorismo nas duas grandes metrópoles ocidentais, assim como o choque cultural, seja em Paris, seja em Nova York, são as grandes vedetes do filme. Se o palestino estranha os absurdos do mundo ocidental, o estranhamento do mundo ocidental para com o palestino é também motivo de risos, sobretudo no caso do taxista que leva Suleiman em seu carro e fica maravilhado por ver um palestino pela primeira vez na vida e simpatizar com a causa. Dessa forma, “O Paraíso Deve Estar Aqui” é um filme onde o humorismo se mostra uma arma muito eficaz para chamar a atenção para a causa palestina, onde o estranhamento cultural é o combustível para a comédia. Foi uma boa aposta da Palestina para os finalistas ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e é um programa imperdível
Quando a gente vê o trailer de “O Farol”, já dá para perceber de que se trata de uma coisa diferente. Um filme em preto e branco com Willem Dafoe e Robert Pattinson isolados numa ilha, com o primeiro aos gritos com o segundo, que responde serenamente. A curiosidade logo vem à tona. E, ai, o filme estréia e a gente vai lá conferir. Essa película concorreu ao Oscar de Melhor Fotografia, perdendo para o filme “1917”. Para podermos falar sobre essa película, vamos lançar mão de spoilers.
O plot é muito simples. Thomas Wake (interpretado por Dafoe) e seu subordinado Thomas Howard (interpretado por Pattinson) tomam conta de um farol na costa da Nova Inglaterra no final do século XIX. As condições são extremamente adversas com uma tempestade que impede a vinda de uma embarcação para levá-los de volta ao continente, o que os obriga a viver sob um forte racionamento. É claro que eles vão pirar geral na batatinha a ponto de surtarem violentamente, o que será a ruína dos dois.
Falando dessa forma extremamente simplória, parece que o filme não tem a menor graça. Mas é no processo paulatino de loucura dos protagonistas que a coisa mostra a sua força. Se, em alguns momentos, vemos a coisa com uma certa graça e tons de comédia, na imensa maioria das vezes o desenrolar da insanidade é altamente tenso e destrutivo, agredindo o espectador com maestria pelo inusitado e até pelo escatológico. Mas a grande e grata surpresa desse filme é que ele resgata a boa tradição dos melhores filmes expressionistas alemães da década de 20. Senão vejamos. Do ponto de vista narrativo, temos violentas explosões de paroxismo onde os personagens não poupam o desespero. Se nos filmes expressionistas mudos não se havia a oportunidade de se trabalhar muito os diálogos, aqui a coisa foi muito bem trabalhada, com falas altamente rebuscadas e complexas, beirando o barroco, um estilo artístico que usava com maestria os duplos antagônicos, assim como o romantismo e o expressionismo.
Os dois personagens, o patrão que oprime e o empregado oprimido são também a representação desses duplos que, esteticamente aparecem nos claros e escuros da fotografia preta e branca magistral da película, ambientada sempre em ambientes mais escuros do que claros, o que contribuiu para o clima soturno da coisa. Ainda, no expressionismo era corrente o uso de alucinações dos personagens para expressar estados da alma e externar sentimentos. Aqui isso é usado com muita força, principalmente nas alucinações de Howard com as fantasias sexuais com a sereia, assim como nos pesadelos dos personagens, no fato de um assumir a identidade do outro em alguns momentos e um culpar o outro acusando-o de cometer algo que ele próprio cometeu (por exemplo, Wake destrói o barco que poderia levar à fuga da ilha mas culpa Howard por isso). Todos esses momentos delirantes abordam os estados da alma e o subjetivo, ao bom estilo expressionista.
Dessa forma, se “O Farol” provoca todo um estranhamento pelo agressivo inusitado sobre o espectador, por outro lado podemos dizer que essa película foi a melhor experiência expressionista bem à moda antiga que tivemos nos últimos anos. Tudo isso regado à uma atuação magistral de Dafoe e Pattinson, que roubam a cena, juntamente com a belíssima fotografia. Vale muito a pena dar uma conferida.
Mais um filmaço que concorreu ao Oscar. “Jojo Rabbit”de Taika Waititi, disputou seis estatuetas (Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante para Scarlett Johansson, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Figurino, Melhor Montagem e Melhor Direção de Arte ou Design de Produção). A película ganhou uma estatueta de Melhor Roteiro Adaptado. Esse filme é baseado no romance de Christine Leunens “Caging Skies” e é mais uma película que faz parte do rol interminável de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Para podermos falar do filme, vamos lançar mão de spoilers aqui.
O plot se passa na Alemanha, numa pequena cidade e numa época em que os nazistas já estão perdendo a guerra. Um menininho, Jojo (interpretado por Roman Griffin Davis) faz parte da juventude nazista e está muito antenado com a ideologia do partido, ao ponto de ter o próprio Adolf Hitler como amigo imaginário (interpretado de forma magistral pelo próprio Taika Waititi). Só que ele acaba sendo humilhado pelos nazistas quando se nega a matar um inocente coelhinho, o que lhe rendeu o apelido de Jojo Rabbit. Estimulado pelo seu Hitler imaginário, ele tenta recuperar a honra, e vai à toda para uma ação militar do grupo, se explodindo com uma granada. Ao se recuperar em casa, ele passa um tempo com sua mãe Rosie (interpretada por Scarlett Johansson) e descobre, aos poucos, que ela faz parte da resistência contra os nazistas e esconde uma garota judia em casa, Elsa (interpretada por Thomasin McKenzie). Os dois iniciam uma relação um tanto conturbada que, aos poucos, vai se tornando próxima, amigável e amável, à medida que os horrores da guerra vão destruindo a visão idílica de nazismo que o menininho tinha.
Esse é um filme que desperta vários sentimentos na gente. Inicialmente, rimos muito com as troças que a película faz com a ideologia nazista, mostrando como ela é completamente imbecil e sem sentido, tudo isso regado na visão das crianças que não conseguem enxergar toda a malignidade da coisa e levam tudo isso como se fosse participar de um grande clube ou uma colônia de férias. Mas, aos poucos, o filme vai ficando mais sério, onde o nazismo começa a mostrar sua verdadeira cara, Podemos ver isso na própria sequência do coelhinho onde o instrutor nazista, antes de ridicularizar Jojo, mata friamente o coelho quebrando-lhe o pescoço. Ou no momento em que todos passam a tratar Jojo como algo feio devido às suas cicatrizes no rosto em virtude da explosão. O próprio Hitler imaginário de Jojo num primeiro momento é infantilizado, mas com o passar do tempo, se torna o Hitler agressivo que todos conhecemos. Mas o grande trauma de Jojo acaba sendo o fato dele ver sua mãe enforcada na rua com outras pessoas que lutavam na guerra. Justamente sua mãe que era símbolo de tudo o que o nazismo repudiava. Mesmo com toda essa escalada de violência, a visão infantil com pitadas de humor consegue resistir por toda a película, o que ajuda o filme a fluir com uma certa suavidade, apesar de tudo.
Temos um baita elenco aqui. Scarlett Johansson faz jus a mais uma indicação ao Oscar (ela foi também indicada a melhor atriz por “História de um Casamento” além de ter sido indicada para o Globo de Ouro por esse mesmo filme, nossa Viúva Negra está podendo muito ultimamente). Sua mãe Rosie, que faz de tudo para tirar o seu filho das garras da ideologia nazista, mostrando-lhe um mundo lúdico e buscando superar a perda do marido e da filha, está irretocável e deliciosa, mas foi uma disputa pesada com a vencedora Laura Dern em “História de um Casamento”. Ainda temos Rebel Wilson, na pele de Fraulein Rahm, fazendo um baita papel cômico e responsável, em boa parte, de mostrar como a ideologia nazista é estúpida. E, por fim, Sam Rockwell, que interpreta o Capitão Klezendorf, o responsável pelo acampamento da juventude nazista, e que deixa de forma bem clara que é homossexual, não compactuando em nada com a ideologia nazista, fazendo também uma boa participação cômica no filme (ele irá salvar Jojo e Elsa em mais de uma ocasião).
Dessa forma, “Jojo Rabbit” foi mais um grande filme que concorreu ao Oscar esse ano e merece toda a nossa atenção. Mais um filme de Segunda Guerra Mundial, mas que aborda um tema tão pesado quanto o nazismo e o genocídio, mas do leve ponto de vista da visão infantil, sem, entretanto, mascarar os horrores da guerra. Um filme imperdível.
Nas últimas semanas, os trekkers de raiz assim como os fãs mais novos têm acompanhado com atenção a série Picard na Amazon. Quando vemos uma nova série de Jornada nas Estrelas, a comparação se torna inevitável com o que vimos nas séries mais antigas. Os mais antigos falam que há uma desvirtuação em Picard, que o espírito de Jornada nas Estrelas está completamente subvertido nas séries novas (também não podemos nos esquecer de Jornada nas Estrelas Discovery), etc. Os mais novos (ou menos exigentes) dizem que Jornada nas Estrelas precisa se adequar com o novo e que a reclamação dos mais antigos seria uma “coisa de dinossauro”, para dizer o mínimo dos termos pejorativos. Permitam-me colocar uns dois centavos de opinião nessa discussão.
Quando Jornada nas Estrelas foi criada por Gene Roddenberry na década de 60, o mundo era bem diferente. O medo de uma guerra nuclear e do fim do mundo era mais real do que nunca. A crise dos mísseis tinha colocado o mundo no limiar da Terceira Guerra Mundial e provocou um medo danado em escala global. Uma visão utópica como escapismo àqueles dias sombrios era mais do que necessária, assim como foram os musicais americanos que aliviavam as dores da crise econômica da Grande Depressão ocorrida em 1929. Roddenberry consegue criar uma série de TV que não escapou de uma visão imperialista americana, que teve um apoio ideológico nas noções de fronteira do historiador Frederick Jackson Turner (depois da marcha para o Oeste, da influência imperialista americana na Ásia, e do então futuro desastre no Vietnã, o espaço ainda é a fronteira final), mas que também trouxe uma visão utópica e otimista de mundo, onde a humanidade consegue sobreviver à Guerra Fria e alavancar a exploração espacial, expurgando do planeta Terra a visão belicista e colocando-a nas costas de civilizações alienígenas como os klingons e os romulanos, as metáforas dos inimigos americanos na década de 60. Os terráqueos do século XXIII seriam mais assépticos no sentido da agressividade e do belicismo. A hierarquia militar apresentada dentro da Enterprise é um bom exemplo disso, onde os superiores se referem aos seus subalternos como “senhores” (Senhor Sulu, Senhor Checov, etc.). Assim, essa hierarquia militar que pode até ser questionada numa sociedade utópica, era utilizada justamente para espelhar o contexto dessa utopia. As visões de ciência, ainda que trabalhadas de uma forma um pouco espetaculosa (viagens no tempo, dobra espacial, controle de interação matéria-antimatéria, subespaço, etc.) eram exploradas e levadas ao grande público como nunca havia ocorrido na história da então nascente televisão. E foi, por isso mesmo, que a série inicialmente conquistou os estudantes e cientistas. Mas cairia também nas graças do público nas reprises do “sindication”. Ou seja, Jornada nas Estrelas logo se mostrou que não era uma série apenas para um nicho de público. A série tinha o que dizer para muitas pessoas e se tornou muito popular. Trazia uma mensagem otimista e esperançosa para o futuro, onde o melhor do ser humano era explorado, falava da questão do “outsider”, materializada em Spock, e conquistou os Estados Unidos, assim como os outros países em que passava. Claro que a série não ficou totalmente incólume aos efeitos de seu tempo. Mesmo sendo utópica, abraçando a diferença e lutando contra o preconceito latente da década de 60, ainda vimos alguns vícios da época, como o protagonismo do macho alfa (cujo maior símbolo até hoje é o Capitão Kirk) e um papel da mulher ainda deslocado, com a exploração sexual do seu corpo, à despeito da importância dada a Uhura (a ordenança Janice Rand ainda acabava caindo nos estereóripos femininos da época). Mas, ainda assim, a série tinha o grande privilégio de ser um produto cultural de massa que despertava a reflexão.
O tempo passou, o mundo mudou, a Guerra Fria acabou. Um pouco antes disso, Jornada nas Estrelas retornava ao cinema, depois de um hiato de alguns anos, ainda trazendo um espírito otimista, apesar de um pouco contaminada pelo espírito de violência da década de 80 (vemos isso em Jornada nas Estrelas II, a Ira de Khan e Jornada nas Estrelas III, A Procura de Spock). Entretanto, o mais intrigante aparece em Jornada nas Estrelas VI, A Terra Desconhecida. O filme que levaria o fim da Guerra Fria para o Universo de Jornada nas Estrelas marcando a paz entre a Federação e os Klingons, seria marcado por uma conspiração entre os membros da Federação e os Klingons para manter as hostilidades. Ou seja, esse foi o filme em que, provavelmente, Jornada nas Estrelas flertou com a distopia de forma concreta pela primeira vez. Mas o casamento viria logo depois com Deep Space Nine, onde a Federação, numa zona onde houve uma guerra recente, precisa colocar, diplomaticamente, panos quentes em feridas ainda não cicatrizadas na querela entre cardassianos e bajorianos. Para piorar, a Federação ainda vai ter que encarar uma guerra contra o Dominion do Quadrante Gama. E a famigerada Seção 31 surge fazendo um trabalho de espionagem para lá de sujo. Muitos fãs de Jornada nas Estrelas abraçaram a causa de Deep Space Nine e aceitaram a distopia de bom grado, por gostarem muito dos roteiros dos episódios, realmente muito bem escritos em muitas ocasiões. E, quando percebemos, a distopia já estava instalada em Jornada nas Estrelas. Tanto que em Voyager, a capitã Janeway volta e meia tomava atitudes altamente questionáveis e os entusiastas da série diziam que era algo justificável em virtude do fato de a Voyager estar sozinha no Quadrante Delta, um território desconhecido e de domínio Borg. Mas a distopia não pararia por aí. Em “Insurrection”, vemos o Almirante Dougherty num plano malicioso juntamente com os so’na para retirar os ba’ku de seu planeta e da radiação natural que lhes dava a imortalidade. Coube à Enterprise se rebelar contra essa atitude pouco virtuosa de Dougherty, o braço da Federação na região.
Há, também, distopia na prequel Enterprise, onde o “Zeitgeist”, o espírito da época, teve um papel, digamos, decisivo. Isso fica muito latente no personagem Jonathan Archer, o capitão da Enterprise. Inicialmente, nosso capitão tinha o espírito do explorador e do humanista, que está ávido por estabelecer contato com novas civilizações alienígenas e levar o melhor do ser humano para essas culturas numa interação construtiva ao melhor estilo utópico. Entretanto, logo a série daria os seus sinais de distopia. Tutelados pelos vulcanos, uma espécie mais desenvolvida cientifica e logicamente, estes veem os humanos com um certo desprezo em virtude do seu estágio de desenvolvimento, o que leva a uma certa desconfiança e até a casos onde os vulcanos mentem para os humanos, algo inimaginável na série clássica. Os defensores da série logo diriam que se tratam dos vulcanos do século XXII, com uma visão de mundo diferente dos vulcanos do século XXIII. Mesmo assim, a arrogância vulcana exacerbada do século XXII acabou incomodando um pouco. Mas o divisor de águas da série foi um fator externo, os atentados de 11 de setembro de 2001, que jogaram Enterprise no colo da distopia. A espécie suliban muito se aproximava dos talibans (até na sonoridade das palavras) e Archer deixou de ser o explorador humanista bonachão para, por força das circunstâncias, adotar uma postura mais violenta, chegando até a torturar alguns de seus antagonistas. A coisa caiu muito pesada.
Chegamos a Kelvin Time Line e a J. J. Abrams. Qualquer tentativa de se tornar a série mais reflexiva vai ralo abaixo. Jornada nas Estrelas se torna mais um filme de ação com direito a muita porrada, bomba e tiro, onde alguns fan services e easter eggs ainda amarram essa nova visão ao passado. É o novo, dizem alguns, com o intuito de se aproximar Jornada nas Estrelas das novas gerações, que parecem ter pouca paciência com a reflexão e são bem mais imediatistas, embora não possamos generalizar. Os poucos arremedos de utopia desaparecem e a distopia se encaixa de vez ao contexto, principalmente nas figuras do Almirante Marcus e Krall, além do encaixe, a princípio fora de contexto, da Seção 31. Mas isso seria somente uma prévia para a distopia marcante em Discovery e Picard, na era Alex Kurtzman, onde a coisa degringolou de vez, no que tange à preservação de algum arremedo de utopia e de uma reflexão mais profunda. Em Discovery, na sua primeira temporada, ainda houve a desculpa de que o Universo Espelho estaria metido nessa distopia.
Mas ainda vemos uma Federação no mínimo estranha, que permite a tortura de um tardígrado para acionar um motor de esporos, dada a situação de guerra com o Império Klingon (eivado de um fanatismo religioso que alimentava um código de honra nem sempre respeitado). E o Universo Espelho nada tinha a ver com isso. Outro elemento que muito desagradou aos fãs mais antigos foi o fato de se construir virtudes de personagens novos em cima do desmonte de personagens mais antigos, algo visto também em outras franquias como Guerra nas Estrelas (seria uma manifestação de nosso “Zeitgeist”?). Assim, vimos a exaltação de Michael Burnham, por exemplo, enquanto que personagens clássicos como Christopher Pike e Spock eram desvalorizados, onde o primeiro era desrespeitado por alguns tripulantes em sua hierarquia, e o segundo tornava-se excessivamente emocional, quando justamente a graça da coisa eram os seus lampejos de emoção escondidos sob uma carapaça de lógica, como víamos no Spock de Nimoy. Ainda, ffalando em desrespeito ao Pike, como a hierarquia militar é desrespeitada em Discovery! Justamente essa hierarquia que ratificava uma visão utópica na série clássica da década de 60. Mas, voltando aos personagens, quem escreve agora Jornada nas Estrelas não entende que pode criar personagens novos e exaltá-los sem qualquer problema, mas isso não significa necessariamente desvalorizar os personagens mais antigos. Uma interação criativa e construtiva entre personagens mais antigos e novos é a melhor saída, até para se “passar o bastão” para a geração mais nova, criando uma identificação entre o fandom mais antigo e mais novo. Do jeito que a coisa está, temo muito pelo futuro de Jornada nas Estrelas, uma série que já sobrevive há mais de cinqüenta anos e que, por isso mesmo, deve ser muito difícil de escrever, em virtude do vasto universo de mais de 700 episódios e mais de dez filmes, isso se não contarmos livros, quadrinhos, videogames, etc.
Nos episódios de Picard, vemos ainda uma tendência a uma distopia que consegue chegar às raias do doentio em alguns momentos. A justificativa do Zhat Vash em destruir os sintéticos em função da visão conhecida como advertência, onde nos é mostrado um futuro com os sintéticos destruindo tudo, o que provoca manifestações de horror e suicídio coletivo, ultrapassa os limites da distopia, beirando, inclusive, o mau gosto, de tão agressiva que a advertência é. E o mais interessante é que parece que os roteiristas se dão conta disso, pois eles enxertam um discurso otimista aqui ou ali, embora isso pareça muito pouco para contrabalançar o clima altamente pessimista da série, onde vemos seguidos casos de pessoas no fundo do poço como Rios ou Raffi, além dos dilemas existenciais de Soji ou os fortes abalos sofridos por Jurati pela advertência, a ponto da moça pensar em suicídio. Ou seja, se em Discovery a distopia já cavalgava livre e tresloucadamente (lembrem-se da Seção 31, da Imperatriz e do Controle), em Picard ela atingiu outro estágio de extrapolação, atingindo a alma humana com casos individuais de desencanto, depressão e tendências ao suicídio. Ou seja, temos um quadrante delta de distância entre as utópicas séries das décadas de 60 e 80 (TOS e TNG) e a distopia despropositada da era Alex Kurtzman. Volta e meia, alguns fan services buscam manter o fio tênue de um cordão umbilical que nem parece mais existir entre esses dois pólos. Como se não bastasse esse sério problema, ainda vemos o protagonista da série sendo desrespeitado sistematicamente por personagens e roteiristas o que se encaixa no esquema de valorizar personagens novos desvalorizando personagens antigos como descrito acima. Alguns dizem que é para mostrar a situação do idoso no mundo presente, igualmente desrespeitado. Mas aí fica a dúvida: será que o idoso será desrespeitado assim no século XXIV? A ficção científica realmente reflete a realidade do tempo em que é escrita, ou seja, é uma obra datada. Mas até que ponto esse reflexo é metafórico, sutil, ou é uma mera cópia descarada dos dias de hoje? Até que ponto a gente aceita um século XXIV tão com cara de século XXI, chegando ao ponto de se ver expressões de baixo calão contemporâneas em altos postos institucionais numa civilização do futuro teoricamente mais desenvolvida, algo que soaria mal até nos dias atuais? Uma boa história dá ao espectador a oportunidade de se permear nas entrelinhas e achar as referências. Quando a coisa é evidente demais, é tão jogada na nossa cara, temos o indício de algo mais pobre, trabalhado com menos desenvoltura, ou seja, com mais preguiça.
Por fim, outro problema na era Kurtzman. Uma ficção científica que abusa do uso do termo ficção, aproximando-se do fantástico. A primeira coisa que nos vêm à mente é a rede micelial de Discovery. Imaginar no subespaço um tecido vivo que permite uma viagem em velocidade praticamente infinita, sendo que esse subespaço permeia não somente o Universo, mas o Multiverso, é muito forçado demais. Já que é para chutar o pau da barraca dessa forma, seria melhor colocar a Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo na ponte da Discovery e ela falar “pirlimpimpim”, ao invés de acionar o motor de esporos e torturar o pobre do Stametz (ou o tardígrado). É claro que a ficção mexe com o implausível, mas também sabemos que a melhor ficção científica é aquela que antecipa o futuro. É por isso que escritores como Júlio Verne e Isaac Asimov até hoje são muito celebrados. Ou seja, a ficção científica tem todo o direito de trabalhar com o implausível, mas é recomendado que não se exagere muito, pois há o risco dela cair no insólito, no ridículo até, e deixar de ser uma ficção científica (o grifo meu é importante aqui para lembrar que há alguns limites nessa ficção) para se tornar uma fantasia, onde não há qualquer limite, e cairmos no pirlimpimpim, onde tudo é possível. Outro exemplo dessa ficção científica fantasiosa apareceu em Picard, onde uma civilização antiga altamente avançada colocou oito sóis e um planeta juntos para chamar a atenção para a história pregressa dessa civilização que acabou destruída pelos próprios andróides que criou. Em primeiro lugar, é uma coisa praticamente impossível, por mais nível tecnológico que essa civilização tenha, o ato de deslocar oito estrelas artificialmente, em função do altíssimo campo gravitacional que produzem. Ainda, se é impossível a vida num planeta com duas estrelas próximas, em virtude de toda a radiação recebida, imagine em oito planetas? E mais: um planeta não conseguiria sobreviver próximo ao fortíssimo campo gravitacional de oito estrelas e se despedaçaria. Se a atração gravitacional de Júpiter já consegue fazer isso (é só a gente ver o cinturão de asteróides entre Marte e Júpiter, que pode ter sido originalmente um planeta que se não se formou em virtude da atração de Júpiter) ou de Saturno (seus anéis podem ter sido formados por uma lua ou cometa se que fragmentou em virtude da atração gravitacional do planeta), imaginem oito estrelas puxando diferencialmente o planeta para lá e para cá. Para piorar a situação, a história contada também pode ser implausível. Se os andróides afetaram drasticamente essa civilização hiperavançada, como elas conseguiram montar esse sistema depois do ataque dos andróides? Eles conseguiram se recuperar da catástrofe? Foi algo mal contado e, portanto, mal escrito. Outro problema que vemos nas séries de Kurtzman (e aqui devemos dar o braço a torcer, pois isso também foi visto em TOS) é termos uma estrela que vai se tornar uma supernova orbitada por um planeta que ainda possui uma civilização. Isso é impossível também, pois, nesse estágio de evolução estelar, a vida já é impossível no planeta há muito tempo. Uma estrela, de uma forma em simplificada, é uma esfera de gás com duas forças básicas atuando: a forte atração gravitacional que tende a comprimi-la, e as forças termonucleares, provocadas pela conversão de hidrogênio em hélio em seu núcleo, que tende a expandi-la, o que a deixa em equilíbrio. Quando as reservas de hidrogênio no núcleo começam a se esgotar, as forças gravitacionais ficam mais fortes que a expansão termonuclear e a tendência é o núcleo se contrair. Quando isso acontecer com uma estrela do tipo do Sol, sua luminosidade aumentará em 40%, o que já será suficiente para evaporar os oceanos e tornar a vida impossível na Terra. Se a estrela tem mais massa que o Sol, o núcleo de agora hélio será comprimido a ponto de produzir carbono e oxigênio. Se a estrela tiver ainda mais massa, o núcleo pode ser mais comprimido a ponto de produzir outros elementos químicos, sempre nesse processo de contração e expansão. Se a estrela tem mais de vinte massas solares, esse processo pode se tornar tão violento que a estrela acaba explodindo, configurando-se na supernova e a energia liberada é tão forte que equivale a explosão de um setilhão de bombas atômicas. Para se ter uma idéia, se a estrela Betelgeuse, uma gigante vermelha a quinhentos anos-luz de distância de nós explodir, toda a vida na Terra seria destruída com a radiação. Logo, uma estrela numa iminência de se tornar uma supernova já não tem vida aos seus arredores há muito tempo. E o que vemos em Discovery? Uma jovem Michael Burnham vendo uma estrela na iminência de se tornar uma supernova pelo telescópio, juntamente com os pais numa nave espacial nas imediações da estrela. A impressão que se dá é a de que não há qualquer preocupação com consultoria científica nas séries da época de Alex Kurtzman, preocupação essa que víamos pelo menos nas séries produzidas por Rick Berman e Michael Piller.
Os tempos mudam e as coisas mudam? Sem a menor sombra de dúvida. O problema é como as coisas mudam. Infelizmente, quem está responsável pela franquia Jornada nas Estrelas hoje parece que não está muito preocupado em fazer essa transição de uma forma mais suave e pouco se preocupa com um público que mantém essa franquia viva há mais de cinquenta anos. Choro de dinossauro? Pode até ser. Mas será que as novas gerações vão comprar a franquia do jeito que está hoje e sustentá-la por mais cinquenta anos? Tenho minhas dúvidas. Ainda acho que a passagem de bastão deve ser feita de forma criativa e conciliadora entre essas duas gerações. E aí, a presença de bons roteiros que unam esses dois pólos é fundamental, o que parece não estar acontecendo muito, infelizmente. Não seria o caso de se botar a mão no bolso e procurar o que os fãs escrevem no Universo Expandido, ou melhor, até contratar pessoas que escrevem esse Universo Expandido para escrever? E, principalmente, chamar showrunners que também estão comprometidos com Jornada nas Estrelas como os escritores que não são considerados cânones? Fica aqui a minha pulga atrás da orelha para vocês.