Um filme traumático, que chegou aos finalistas do Oscar e do Globo de Ouro a Melhor Filme Estrangeiro. “Os Miseráveis”, de Ladj Ly, mostra o explosivo ambiente das periferias de Paris de uma forma extremamente crua e sem qualquer filtro para os mais sensíveis. Um filme absolutamente necessário. Para podermos falar desse filme, vamos lançar mão de spoilers.
A película mostra a rotina de três policiais: Ruiz (interpretado por Damien Bonnard), Chris (interpretado por Alexis Manenti) e Gwada (interpretado por Djibril Zonga). Eles são da divisão anticrime e patrulham as periferias de Paris, um verdadeiro barril de pólvora, onde várias etnias vivem numa situação de conflito constante: africanos, muçulmanos, ciganos. Ruiz está no seu primeiro dia de trabalho e veio do interior. Chris e Gwada já têm dez anos de serviço, sendo o primeiro branco e altamente violento, enquanto que Gwada tem descendência imigrante, sendo menos violento, mas igualmente temido. Um menino chamado Issa acaba roubando um filhote de leão de um circo de ciganos, o que provoca a fúria dos mesmos e uma guerra étnica iminente na periferia. Os policiais vão tentar solucionar o caso e conseguem, pela internet, identificar Issa. Eles vão apreender o menino, que estava jogando futebol e os demais garotos começam a apedrejar os policiais. Issa consegue se desvencilhar mesmo algemado e Gwada acerta o seu rosto com uma bala de borracha. O grande problema é que um drone de um garoto apelidado singelamente de Bzz filmou toda a ação policial, o que vai ferrar com a vida de nossos protagonistas. Os três policiais irão, então, correr atrás do menino com o drone e ainda ter que acobertar a besteira que fizeram com Issa, que fica com o rosto desfigurado em virtude da bala de borracha. Para isso, os policiais farão alguns acordos com as lideranças locais do submundo, o que vai despertar a revolta das crianças, que vão reagir de forma extremamente violenta e explosiva.
O que mais chama a atenção no início do filme é que ele começa com o povo comemorando a vitória da França na Copa do Mundo, e o que vemos nas ruas é uma população massivamente mestiça, negra e estrangeira cantando a Marselhesa, com camisas da seleção da França e com bandeiras francesas comemorando nas ruas de Paris. Até o principal jogador da seleção francesa é mestiço. Ou seja, fica bem claro nas intenções do diretor mostrar que a realidade da França agora é, além de branca, também mestiça.
E aí, dentro desse contexto, toda a tensão social da periferia parece ainda mais injustificada. Mas Ladj Ly também faz questão de mostrar a natureza fragmentada dessa periferia, onde o ódio é uma via de múltiplas mãos. Todas as etnias se odeiam profundamente, esperando um pretexto, por mínimo que seja, para explodir tudo e começar uma guerra, numa situação que parece cada vez mais ser um beco sem saída. É assustador perceber como essa realidade se aproxima da realidade das nossas periferias brasileiras, onde a fragmentação também ocorre, dentro de outras perspectivas, e a violência também é muito latente. O mais curioso aqui é que uma das poucas vozes coerentes do filme é justamente a do líder religioso muçulmano, ele mesmo com um passado de crimes e tráfico, mas que agora professa a fé e busca agir dentro de uma ética. Essa é uma atitude muito corajosa de Ladj Ly, ainda mais numa época de muito preconceito contra o islamismo em virtude da onda recente de atentados terroristas na França.
O desfecho do filme é surpreendente, pois a violentíssima revolta das crianças é um reflexo da violência das inúmeras facções mas, principalmente, uma reação à união das facções e dos policiais em acobertar o caso da bala de borracha disparada no rosto de Issa. Não somente a polícia é atacada, mas também o líder comunitário e os traficantes. A cena final, desesperadora toda a vida, e que fica em aberto, é acompanhada por uma citação de Victor Hugo em sua obra “Os Miseráveis”, deixando-nos uma sensação de desalento e, principalmente, desesperança.
Assim, “Os Miseráveis” é um filme que poderia muito bem abiscoitar esse Oscar ao qual concorre, embora pareça que já está tudo engatilhado para o coreano “Parasita” ganhar. Seria uma grata surpresa ver “Os Miseráveis” ser premiado, em virtude de sua gritante denúncia do ódio e intolerância nas periferias, onde países desenvolvidos e subdesenvolvidos se igualam tragicamente. Um filme obrigatório.
Mais um filme baseado numa história real. “O Escândalo” é uma película que trata de um assunto muito delicado, que é o de assédio sexual na rede de TV americana FOX Channel. Esse filme concorre a três Oscars (Melhor Atriz para Charlize Theron, Melhor Atriz Coadjuvante para Margot Robbie e Melhor Maquiagem e Cabelo). A denúncia do caso realmente provocou um escândalo que foi divulgado no mundo inteiro e deixou escancarada a forma como a mulher é tratada como um objeto até nos países mais desenvolvidos. Para podermos entender melhor o filme, vamos precisar de spoilers aqui.
A película foca na trajetória de três personagens principais: Megyn Kelly (interpretada por Charlize Theron), Gretchen Carlson (interpretada por Nicole Kidman) e Kayla Pospisil (interpretada por Margot Robbie), as três funcionárias da Fox, que foram assediadas por Roger Ailes (interpretado por John Lithgow) que, se não era exatamente o dono da empresa, era quem a chefiava e ditava as regras. Para Ailes, todas as funcionárias da emissora deviam trabalhar de saias e seus dotes, digamos, físicos tinham que ser explorados nos programas de TV com o objetivo de aumentar a audiência. E aí, as funcionárias tinham uma reunião privada a portas fechadas com Ailes, onde elas eram obrigadas a exibir o seu corpo para passar pela aprovação do patrão. E a fazerem outras coisas mais depois. Gretchen Carlson foi a primeira mulher a denunciar na justiça a prática, sendo demitida sumariamente. A batalha judicial obviamente foi muito desigual, dado o poder da Fox, mas Carlson e seus advogados não esmoreceram em nenhum momento e lutaram pesado, levando a demissão do patrão pelo dono da empresa.
O mais interessante aqui é que as histórias das três personagens não se cruzam muito. Ou seja, não é aquela história típica de três injustiçadas que se unem na luta contra o patrão inescrupuloso. Há um único e singelo momento em que as três estão juntas… no elevador. Em outros momentos há, no máximo, um ou outro encontro esporádico com duas de cada vez. É interessante também perceber a posição de cada uma na empresa.
Enquanto que Pospisil ainda quer alçar postos mais altos, sonhando em ser a garota do tempo, Kelly já é uma âncora consagrada que bate com Trump de frente, quando este ainda era candidato a candidato à presidência dos Estados Unidos, amplamente apoiado pela Fox, reconhecidamente de extrema direita, o que lhe rendia hostilidades de muitos telespectadores da empresa. Mas será Carlson que vai empunhar a bandeira da briga contra o machismo da emissora e as práticas abusivas do patrão.
Nem é preciso dizer que as atrizes foram muito bem. Theron foi muito bem como a âncora independente que tinha uma relação mais antiga e assentada com Ailes, o que a colocou numa posição de conflito e silêncio iniciais com relação à situação do processo em cima do patrão. Já Robbie foi perfeita como a mocinha doce de família religiosa e conservadora que passa por maus bocados com o assédio recente. Kidman, por sua vez faz a personagem que sabe que, para entrar na guerra, vai ter que lidar com perdas, mas que, mesmo assim, está muito determinada. John Lithgow volta mais uma vez do passado com seu enorme talento e seu Ailes conseguiu ser simultaneamente odioso e humano. O filme ainda tem uma “personagem bônus” muito interessante, Jess Carr (interpretada pela “caçafantasma maluquinha” Kate McKinnon), uma amiga lésbica de Pospisil que trabalha na Fox. E Malcolm McDowell como Rupert Murdoch, o verdadeiro dono da Fox, que muito pouco apareceu, mas botou ordem na casa no momento do escândalo.
Dessa forma, “O Escândalo” é mais um filme de denúncia que o cinema produz, sendo esse um programa obrigatório para entendermos os tempos sombrios pelos quais estamos passando. Uma história que mostra até onde o poder de luta (num país mais justo, diga-se de passagem) pode transformar as coisas, por menores que essas transformações sejam. E um filme que nos ajuda a refletir sendo o filme que estimula a reflexão sempre o mais importante. Vale a pena dar uma conferida.
A série “Jornada nas Estrelas Picard” chega ao seu segundo episódio e temos aqui, depois do ritmo um tanto frenético do episódio de estreia, algo um pouco mais cadenciado. Por um lado, isso foi bom, pois não tivemos as ceninhas de ação regadas a muita luta. Por outro lado, entretanto, alguns problemas um pouco mais sérios apareceram. Para podermos falar aqui do episódio, vamos precisar de spoilers.
O episódio começa com um flashback que mostra o ataque dos “sintéticos” em Marte quatorze anos antes. O andróide F8 começa todo um ataque e acaba dando um tiro em sua própria cabeça. Ou seja, não parece ter feito isso de vontade própria, como se estivesse sendo manipulado por alguém. Somente a título de curiosidade, vemos aqui um certo preconceito dos humanos contra F8 que remete muito ao preconceito contra os robôs visto nas obras de Isaac Asimov, como se fosse uma espécie de homenagem ao consagrado escritor de ficção científica. O episódio, depois da abertura, corta para a vinícola de Picard, que investiga as imagens dos ataques romulanos contra ele e Dahj, e viram que tanto Dahj quanto os romulanos foram apagados das imagens. Laris, que, junto com Zhaban, fazia parte do Tal Shiar, o serviço secreto romulano, diz que isso foi um ato do Zhat Vash, que é uma espécie de outro serviço secreto romulano. Aqui há um exagero. Para que fazer um segundo serviço de inteligência e não aproveitar o Tal Shiar de uma vez? Isso ficou com uma cara de dedo do Alex Kurtzman, que tinha tais exageros em Discovery, por exemplo. Aliás, essa primeira sequência com a fala de Laris ficou um pouco enrolada e complexa de forma totalmente desnecessária a meu ver, o que ajudou a criar um clima de antipatia para o episódio logo em seu início. Toda essa sequência, em suma deixou três coisas claras: o Zhat Vash tentou apagar todos os passos de Dahj, o Zhat Vash tem aversão (não explicada até agora) a sintéticos e, com uma tecnobabble um tanto desnecessária, Laris consegue rastrear ligações entre Dahj e sua irmã que foram feitas fora da Terra. Confesso que respirei aliviado quando essa sequência terminou, pois as tecnobabbles a deixaram muito cansativa, sem qualquer necessidade disso. Muito papo enrolado para poucas afirmações concretas.
No cubo borg (ou artefato, ou seja, um cubo borg “quebrado”, separado da coletividade), Narek deixa a entender a Soji que é um homem cheio de segredos que não podem ser revelados. De volta à vinícola, Picard recebe a visita de Moritz, médico dos tempos de Stargazer e este comunica ao almirante que ele tem uma síndrome incurável que o levará à morte, síndrome essa já citada anteriormente no cânon. Picard agora corre contra o tempo em virtude de sua doença e pede a Moritz que ele dê um parecer dizendo que Picard está apto ao serviço interestelar. Essa síndrome acaba vindo a calhar para a dramaticidade da trama, pois Picard tem 90 anos e essa idade no século 24 não seria um problema no que tange a viver mais (devemos nos lembrar que o Dr. Mc Coy tinha, no episódio piloto de TNG, 180 anos).
Picard vai ao QG da Frota Estelar em São Francisco para falar com a Comandante em Chefe e não é reconhecido pelo recepcionista, algo estranho, pois ele acabou de dar uma entrevista na mídia de grande repercussão. Ele diz a Comandante que suspeita que Bruce Maddox está usando neurônios do Data para fazer andróides orgânicos e suspeita da participação dos romulanos. Ele pede para ser reintegrado para investigar com uma pequena nave de reconhecimento e tripulação mínima, sendo até rebaixado a capitão, se necessário. A Comandante, falando palavras chulas, diz que Picard é extremamente arrogante, como se ele fosse adepto a uma diplomacia de cowboy no passado. Isso foi, a meu ver, totalmente descabido e de uma grosseria irritante, pois Picard jamais foi adepto de uma diplomacia de cowboy na grande maioria das vezes (essa fama cai bem melhor em Kirk, por exemplo). A Comandante ainda falou outros absurdos como a repercussão negativa da entrevista, da tentativa de Picard de ajudar os romulanos e da desistência da Federação em resgatar os inimigos depois de 14 civilizações exigirem que os romulanos não fossem ajudados. Picard retruca dizendo que a Federação não pode escolher sobre a vida e morte de civilizações ao que a Comandante retruca dizendo que a Federação tem esse poder de escolha sim. Aqui há sérios problemas. A distopia que a Federação tem mostrado ultimamente chegar a níveis um pouco exagerados na postura extremamente agressiva e arrogante da Comandante, atacando Picard, acusando-lhe de vaidade e de ir para casa. Alguns argumentos em não ajudar os romulanos também aparecem. Se no episódio anterior, os romulanos não foram ajudados devido ao fato de não haver naves suficientes por causa do ataque em Marte, agora são 14 civilizações que se negavam a dar ajuda aos romulanos, o que ameaçava a coesão da Federação. Parece que quem está escrevendo a série reconhece que o teor distópico da Federação está passando dos limites e arruma uma desculpa nova a cada episódio para não justificar a ajuda da Federação aos romulanos. Ainda, todo esse arco está se assemelhando muito à “Terra Desconhecida”, o que pode ser uma boa homenagem caso o roteiro apresente elementos novos e criativos, ou mais um fan service para inglês ver, se ficar uma cópia muito descarada. E, o que mais se teme: essa distopia excessiva seria o começo do fim da Federação que já se insinua na terceira temporada de Discovery, mesmo que ela ocorra lá no século 31? Um crossover aqui definitivamente não cairia muito bem.
No
cubo borg, fica bem claro que há uma zona cinza ainda com borgs que vão ser
recuperados pelos romulanos. As instruções dizem que essa é uma zona muito
perigosa, embora Narek e Soji não levem muito a sério esse perigo. Na vinícola,
a Dra. Jurati visita Picard (ela folheia um livro de Asimov, um “clássico”) e
confirma as evidências da existência de Dajh e a possível participação de
Maddox na criação das irmãs gêmeas, onde eles se perguntam onde estaria a outra
irmã e se os romulanos já a descobriram. No cubo borg, um borg recuperado tem
os implantes removidos pelos romulanos. Soji nota uma certa frieza e
preconceito por parte dos romulanos contra o zangão que tem sua assimilação
revertida.
A
Comandante que esculachou Picard entra em contato com a comodoro Oh, que não
sabemos se é romulana ou vulcana, só sabemos quea atriz foi par romântico de
Daniel em “Karatê Kid II”, e diz que vai investigar as suspeitas de Picard
sobre Maddox, o sintético orgânico e os romulanos somente por via das dúvidas. A
comodoro chama a tenente Rizzo e fica claro, na fala delas, que elas fazem
parte do complô romulano que matou Dahj e que agora vão tentar liquidar Picard.
Também fica claro que Narek faz parte do esquema, pois Rizzo conversa com ele
(em comunicação por holograma) e fica claro que a aproximação amorosa de Narek
para cima de Soji faz parte de um plano dos romulanos para matá-la. Alías, a
própria Rizzo é uma romulana disfarçada.
Picard
diz a seus amigos romulanos que irá investigar quem matou Dahj e onde está sua
irmã, para desespero de Laris. Zhaban sugere que ele junte a antiga tripulação
da Enterprise, mas Picard não aceita a idéia, pois não quer sacrificar seus
amigos. Então ele procura alguém que o odeia e não tenha nada a perder. Ele vai
para uma região deserta numa nave auxiliar onde está escrito “Taxi” (isso ficou
um tanto ridículo) e é recebida com um phaser por Raffi, que só aceita ele
dentro de sua casa depois que ele fala da questão romulana.
Como
podemos ver, o episódio avançou um pouco mais a trama, trazendo a Comodoro Oh e
a tenente Rizzo como as conspiradoras que têm Narek como o braço direito no
plano de atacar Soji. Elas também vão buscar sabotar Picard. Cheiro de “Terra
Desconhecida” no ar, como já falamos acima. Resta ver como esse plot será
desenvolvido e quais elementos novos aparecerão nele. A distopia da Federação
na figura da Comandante em Chefe mal educada e boca suja pegou um pouco mal.
Essa distopia precisa ser mais sutil e não brucutu ao estilo de um rinoceronte
entrando a toda numa loja de cristais. Tudo isso tem a cara de Alex Kurtzman,
que parece querer colocar a série à sua imagem e semelhança, o que pode
sabotá-la completamente. Alguém amarre e amordace esse homem, pelo amor de Deus!!!
Dessa forma, ainda confio numa boa história para “Picard”, mas confesso que esse episódio me preocupou um pouco. Vamos ver o que vem por aí.
Vamos hoje começar a falar de alguns filmes que concorrem ao Oscar. A produção da Netflix “História de um Casamento”, de Noah Baumbach, concorre a seis estatuetas (Melhor Filme, Melhor Ator para Adam Driver, Melhor Atriz para Scarlett Johansson, Melhor Atriz Coadjuvante para Laura Dern, Melhor Roteiro Original para Noah Baumbach e Melhor Trilha Sonora para Filme), além de ter sido indicado para três Globos de Ouro (Melhor Atriz Coadjuvante em Filme para Laura Dern, que ganhou; Melhor Atriz em Filme de Drama para Scarlett Johansson e Melhor Ator em Filme de Drama para Adam Driver). Ou seja, mais um filme da Netflix que faz parte da boa estratégia da empresa de fazer grandes filmes para ganhar prêmios e elevar a marca. Para podermos falar desse filme, vamos lançar mão de spoilers.
A película fala do doloroso processo de separação de um casal, Charlie (interpretado por Adam Driver) e Nicole (interpretado por Scarlett Johansson). Ele é um diretor de teatro e ela é atriz numa peça dirigida pelo marido. A moça acha que, ao entrar na vida do marido, ela se anulou e ele, em seu egoísmo, não deu espaço para ela crescer de forma autônoma enquanto indivíduo. Os dois haviam combinado que a separação seria amigável, sem advogados. Mas Nicole foi convencida por uma amiga a procurar uma advogada, Nora Fanshaw (interpretada por Laura Dern), que tem uma postura agressiva no seu procedimento profissional e convence a moça a lutar por seus direitos, não dando qualquer margem para Charlie no processo. Charlie, por sua vez, vai precisar contratar outro advogado agressivo, Jay Marotta (interpretado por Ray Liotta). A inclusão desses dois advogados no divórcio somente deixou tudo mais complicado. A vida de Charlie e Nicole ficou totalmente exposta, com os dois advogados expondo de forma muito agressiva, os defeitos de marido e esposa, além do fato de que os dois gastaram rios de dinheiro para pagar os honorários e ficaram numa situação financeira difícil. O grande fator de discórdia é que Nicole queria viver em Los Angeles enquanto que Charlie tinha melhores oportunidades profissionais em Nova York. Para piorar a situação, eles ainda tinham um filho pequeno, onde a guarda dos dois também era disputada.
Ficou-se aqui a impressão de que, se o casal não tivesse colocado os dois advogados no meio e eles decidissem tudo em acordos verbais, teria sido tudo bem mais fácil. O filme provoca uma angústia muito forte na gente, pois sabemos que todo o processo doloroso que vemos é algo bem real e palatável, onde qualquer um de nós pode estar sujeito a isso. Ou seja, a película, ao fim das contas, é um violento choque de realidade do começo ao fim, sem direito a final feliz ou plot twists. Tanto que o desfecho do filme dá a impressão de que a história daqueles personagens não acabou, que somente ela foi contada até um certo ponto e que a vida continua, não sendo mais contada pela película.
Com relação aos atores, Laura Dern tem uma grande participação, sendo que seu Globo de Ouro é indiscutível. Mas esse é realmente um filme dos atores protagonistas, Adam Driver e Scarlett Johansson. Os dois foram simplesmente primorosos, tanto no que tange a levar o processo de forma amigável, passando pelos pequenos conflitos e culminando na catarse da grande discussão que os dois tiveram, onde um disse o que quis na cara do outro, como se purgassem todas as suas decepções ferindo um ao outro o máximo para, depois do paroxismo, pedirem desculpas um ao outro, decidindo o desfecho da relação de forma amigável. Foi pesado e triste, o que atingia o espectador em cheio. O único problema aqui foi que o tempo de tela de Driver pareceu maior que o tempo de tela de Johansson, quando parecia mais justo que os dois tivessem o mesmo destaque no filme. cabe fazer um pequeno destaque para a presença de Mary Wiseman, a Tilly de “Jornada nas Estrelas, Discovery”, como uma das atrizes da companhia de Charlie. Só que ela entrou muda e saiu calada do filme.
Dessa forma, “História de um Casamento”, é mais um grande filme que concorre ao Oscar e que já mostrou sua força no Globo de Ouro. Foi mais uma grande oportunidade que tivemos de ver dois atores de franquias mais pop (Adam Driver e Scarlett Johansson) trabalhando em filmes de drama, mais com os pés no chão, onde o choque de realidade é o grande protagonista. Uma boa aposta na Netflix que vem em peso no Oscar desse ano.
E finalmente temos a esperada série “Picard”. A expectativa nos últimos meses reunia um misto de certo otimismo, desde o último trailer, recheado de fan services, mas também com uma certa apreensão, dados todos os problemas que vimos nas duas temporadas de Discovery. Por isso mesmo, não sabíamos bem o que se esperar de “Picard”. Para podermos analisar o episódio, vamos lançar mão de spoilers.
E o que podemos dizer desse primeiro episódio, “Recordações”? Ainda é muito cedo para se traçar um rumo, mas já dá para a gente fazer algumas observações. Num primeiro momento, parece que temos um bom roteiro. O episódio começa com Jean Luc Picard tendo um sonho onde joga cartas com Data, mas esse sonho culmina com uma explosão de Marte e a destruição da Enterprise D. Quando o almirante reformado acorda, ele se encontra na vinícola da família, o Chateau Picard. A história passa, então, para Boston, no apartamento da jovem Dahj, onde ela conversa com seu namorado. Mas eles sofrerão um ataque de três homens com os rostos cobertos. O namorado de Dahj será assassinado e eles imobilizarão a moça, perguntado pelos “outros”. Dahj estranhamente reage, no que os homens encapuzados dizem que ela “está ativando” e eles são mortos pela moça, em cenas de ação com lutas mirabolantes. Dahj tem uma visão com Picard.
Voltando ao Chateau Picard, o almirante irá dar uma entrevista para a TV e é preparado por seus assistentes Laris (interpretada por Orla Brady) e Zhaban (interpretado por Jamie McShane). Aparentemente, os dois são romulanos, como descobriremos mais tarde. Na entrevista, descobrimos que Romulus e Remus não existem mais em virtude da explosão de sua estrela em supernova (uma referência a Kelvin Time Line). Na entrevista, Picard é questionado se valeria a pena, na época da explosão, o reassentamento de 900 milhões de vidas romulanas, já que eles são os mais antigos inimigos da Federação. Picard, com sua visão humanista, bate na tecla de que salvar as vidas romulanas era o certo a se fazer. A repórter também se lembra de uma rebelião de formas de vida sintéticas (andróides) que destruíram Marte e a frota de resgate. Picard retruca dizendo que não entendeu por que as formas de vida sintética se rebelaram. A repórter quebra um acordo prévio e pergunta por que Picard abandonou a Frota, no que este retruca dizendo que a Frota não era mais a mesma, pois abandonou, de forma criminosa, uma missão de resgate aos romulanos. Irritado com a frieza da repórter em questões de guerra, Picard abandona a entrevista. Enquanto Picard fala, indignado, do abandono, promovido pela Federação, da missão de resgate aos romulanos, Laris e Zhaban dão as mãos, o que é uma evidência de que os dois são romulanos. Dahj vê a entrevista de Picard num monitor de vídeo na rua e decide procurá-lo. A moça o encontra e conta a ele do ataque que sofreu e de como matou todos os três invasores involuntariamente, além da visão que ela teve de Picard. Dahj diz que tem uma lembrança antiga de Picard, mas não sabe como expressá-la. Num dos outros sonhos de Picard com Data, ele vê um quadro que o andróide está pintando. Picard acorda do sonho e vê o mesmo quadro em sua sala. Ainda, vai aos Arquivos da Frota Estelar em São Francisco ver um dos quadros pintados por Data no seu espólio particular. O quadro, o mesmo do sonho, tinha uma imagem feminina com a figura de Dahj. A pintura se chama “Filha”. Dahj, que havia fugido do Chateau Picard, se encontra com o almirante em São Francisco depois de sua mãe a convencer a voltar para Picard (como mãe sabia disso, pergunta Dahj, ficando uma ponta solta). O almirante conta a moça sobre Data, a pintura e o nome Filha. Picard acredita que Dahj possa ser filha de Data, mas esta se mostra cética quanto a isso. Picard e Dahj são perseguidos pelos homens encapuzados e a moça é morta. Um dos capuzes caem e Picard percebe que o homem é romulano. Picard decide investigar quem estava atrás de Dahj para matá-la. Picard vai ao Instituto Daystrom em Okinawa para perguntar se é possível fazer um andróide de carne e osso. A cientista Agnes Jurati diz categoricamente que não e Picard retruca dizendo que conheceu uma andróide de carne e osso. A doutora Jurati diz que o Instituto está proibido de fazer “sintéticos” desde a rebelião em Marte. Jurati mostra a Picard o B-4 desmontado e disse que o Data tentou passar sua rede neural para B-4 e não conseguiu, por B-4 ser inferior. Aliás, ninguém mais conseguiu reproduzir a rede neural do Data. Somente Bruce Maddox chegou bem perto, mas o programa foi abortado em virtude do ataque em Marte. Maddox desapareceu, altamente frustrado. Picard mostra o colar de Dahj para Jurati e esta diz que esse colar é o símbolo de uma clonagem neuronal fractal, ou seja, a idéia de que toda a rede neural de Data poderia ser recriada a partir de um único neurônio positrônico. Dahj poderia muito bem ser a manifestação disso. Mas a cientista ainda disse que esses andróides seriam recriados em pares. Logo, há outra versão gêmea de Dahj por aí. A essência de Data poderia estar preservada nessa outra Dahj. O episódio termina num local reivindicado pelos romulanos, onde Narek conversa com a Doutora Asha, a gêmea de Dahj, e que tem o mesmo colar. Os dois estão dentro de um cubo borg semi-destruído, com várias naves romulanas da época da série clássica voando para lá e para cá.
Como
podemos perceber, parece que temos uma boa história aqui. O problema é como ela
será desenvolvida nos próximos episódios. Ate porque Discovery, na minha
modesta opinião, tinha boas idéias, só que não foram muito bem desenvolvidas.
Quais são as virtudes do primeiro episódio de Picard? Em primeiro lugar, a
visão distópica da Federação, apesar de estranha, é retomada. Já vimos essa
distopia em outros momentos de Jornada nas Estrelas. Ainda no sexto longa da
tripulação clássica, “A Terra Desconhecida”, ela já se apresentava, sendo mais
bem trabalhada em Deep Space Nine, sobretudo com a Seção 31, trabalhada de
forma pouco satisfatória na Kelvin Time Line, e trabalhada de forma exagerada e
descuidada em Discovery. Aqui, vemos uma Federação relutante em ajudar os
romulanos, um plot semelhante à Terra Desconhecida. A grande revolta dos
sintéticos viola um pouco a visão asimoviana das Três Leis da Robótica (que
exalta os robôs) e ressuscita o já batido mito de Frankenstein. Mas vemos aqui
uma ligação entre os romulanos e os “sintéticos’, sobretudo porque são
romulanos que caçavam Dahj. Trazer a “filha” de Data de volta é algo bem
interessante, pois temos uma chance aí de nosso querido andróide não retornar
apenas nos sonhos de Picard. Ou seja, a figura de Data pode ser resgatada a
partir de suas supostas filhas.
Foi muito legal, na minha opinião, ver Picard ter dois assistentes romulanos, cujos atores estavam muito bem em seus papéis, num indício de que toda a questão da evacuação romulana mal sucedida realmente influenciou Picard, a ponto dele trazer romulanos para o seu círculo de convívio íntimo. Houve uma excelente química ali entre os três e espero que isso seja mais trabalhado na série, até para que esses bons personagens romulanos sejam mais bem construídos, algo que não aconteceu, por exemplo, com aquele rosário de personagens da ponte de Discovery.
Outro elemento que chama a atenção é o cubo borg semi-destruído ocupado pelos romulanos com aves de rapina da série clássica em profusão. Se todas essas idéias estiverem bem amarradas e conectadas, creio que teremos uma boa primeira temporada.
Mas esse primeiro episódio também tem seus probleminhas. O primeiro é algo inevitável, já que faz um pouco parte de nosso Zeitgeist: as malditas lutas de caratê que são as cenas de ação indispensáveis nas séries de hoje. Toda aquela coisa baseada em debates e discussões com pouca ação que víamos na Jornada nas Estrelas da década de 90 já não cabem muito aqui. Volta e meia o pau tem que cantar, da forma mais coreografada e acrobática possível, até para atrair um público mais jovem para a franquia. Fazer o que? Paciência. Mas o segundo problema me preocupou mais um pouco, que já apareceu em Discovery e é o de fazer uma ficção científica muito elaborada e ornamentada. Os mais antigos diziam que a boa ficção científica antecipa o futuro, como vimos em Júlio Verne, Isaac Asimov e na própria Jornada nas Estrelas. O problema é quando os voos de imaginação são altos demais e muito escapam da coerência e da realidade. Eu me refiro a isso na sequência da doutora Jurati. Num primeiro momento, ela diz que é impossível fazer um andróide de carne e osso e matriz positrônica igual à do Data, com consciência. Aí, o Picard aparece com um colar que é o símbolo de uma sofisticada clonagem neuronal fractal, onde um andróide do mesmo modelo do Data pode ser gerado a partir de um único neurônio positrônico. Cá para nós, achei essa explicação Mandrake demais. Talvez fosse melhor citar que o Dr. Soong tivesse guardado um back-up da rede neural do Data em algum lugar, pois é algo mais plausível se fazer mil cópias de uma invenção altamente sofisticada para não se perdê-la. E que as memórias do Data conseguissem ficar armazenadas em B-4. Ou seja, não se complicar muito as coisas nessa suposta (esperemos nós) recuperação do Data.
Dessa forma, apesar dos problemas citados, parece que “Jornada nas Estrelas Picard” tem uma boa história sendo gestada pelo que pudemos ver no primeiro episódio. O detalhe será justamente como essa história será desenvolvida. A meu ver a receita é ser criativo sem ser mirabolante. Uma ficção científica enxuta, com uma boa história a ser contada e uma distopia bem construída. Vamos ver o que vem por aí nos próximos episódios.