Um filme francês egresso do Festival Varilux. “Um Homem Fiel” é mais uma obra de Louis Garrel, um dos bons nomes do cinema francês contemporâneo. Temos aqui uma espécie de comédia de costumes levinha e um pouco enfadonha, para ser um pouco mais sincero. Para podermos entender um pouco mais esse filme, vamos precisar lançar mão dos spoilers.
O plot é o
seguinte. Abel (interpretado por Garrel) é surpreendido por sua namorada
Marianne (interpretada por Laetitia Casta), que lhe notícia que está grávida do
melhor amigo de Abel e que irá viver com ele, deixando Abel a ver navios. Nove
anos depois, o tal amigo morre e Abel tenta reconquistar Marianne, que tem um
filho de nove anos com o finado amigo. Ao mesmo tempo, a irmã do amigo, Eve
(interpretada por Lily-Rose Depp) é perdidamente apaixonada por Abel e pretende
lutar com Marianne por seu amor. No meio de todo esse turbilhão está Abel, que será
assediado por Eve, cairá nos joguetes de Marianne e ainda terá que lidar com o
filho de Marianne, que insinua que a mãe envenena as pessoas com quem ela se
envolve.
Esse filme até tem uma trama que poderia dar frutos melhores. Mas a coisa foi desenvolvida de uma forma um tanto morna onde nosso personagem protagonista Abel era tratado como um joguete, um fantoche pelos demais personagens, o que é muito pouco para o que o filme pelo menos parecia propor. Os lances mais interessantes da película foram o comportamento travesso do filho de Marianne, que insinuava que a mãe envenenava seus amantes com a pura intenção de afastar os varões que cortejavam a mãe, e a proposta da própria Marianne a Abel de começar um romance com Eve com o intuito de dar a moça o que ela cobiçava para então ela se encher de Abel e liberá-lo para Marianne.
E o filme não foi muito além dessas intriguinhas entre as pessoas, numa reação um tanto letárgica por parte dos personagens, terminando com todos eles em volta da sepultura do amigo, amante e pai. Foi realmente uma pena. Até porque tivemos boas atuações. Garrel foi o perfeito ingênuo e fantoche nas mãos de todos. Casta era a mais maquiavélica (no bom sentido) dos personagens, parecendo um pouco insensível e até um pouco sádica com a forma com que mexia com os sentimentos de Abel. Já Depp fez a jovem frágil e sensível que pouco a pouco se transforma na sua indiferença para com Abel.
Assim, “Um Homem Fiel” é um filme mediano de Louis Garrel, uma comédia romântica que fala um pouco de costumes, mas que não decola, não entusiasma. Já vi coisas melhores de Garrel. Esperava mais e confesso que fiquei um pouco decepcionado, já que gosto muito desse ator e diretor.
Um bom
documentário do crítico Mario Abbade. “Neville D’Almeida, Cronista da Beleza e
do Caos” fala da trajetória do polêmico cineasta, rotulado por muitos como
imoral e pornográfico, que não abriu mão de sua liberdade criativa num período
muito turbulento, que foi a ditadura militar, mas que podemos dizer que também
foi perseguido até em dias considerados democráticos.
É um documentário feito de uma forma bem convencional, com imagens de arquivo, trechos de filmes de Neville e muitas entrevistas. Podemos ver lá todo um ressentimento, bem justificado diga-se de passagem, do diretor, que foi muito perseguido pela censura (a audiência onde se estabelece a proibição do filme “Rio Babilônia” é emblemática e revoltante), mas também pelo boicote que sofreu em dias de democracia, onde seus projetos não conseguiam captar recursos. O forte apelo sexual de seus filmes eram vistos com um preconceito profundo pelos setores mais conservadores.
Mas o documentário, com muita propriedade, consegue mostrar que o conteúdo sexual dos filmes de Neville não era algo chulo ou de baixo nível. Se pegarmos o seu grande sucesso, que foi “Dama do Lotação”, estrelado por Sônia Braga, inspirado na obra de Nelson Rodrigues, vemos uma mulher que lida de forma bem livre com sua sexualidade, não se prendendo às convenções impostas pela sociedade altamente conservadora da época às mulheres. A personagem de Sônia Braga nesse filme é um claro exemplo de empoderamento feminino, décadas antes da cunhagem do termo. Mulher essa que era sim atormentada pelas convenções sociais da época, tentando resolver sua compulsão sexual em sessões de análise, e caindo em desespero ao final do filme. Com essa breve sinopse de “Dama do Lotação”, dá para perceber que esse não é um simples filme de sacanagem, como alguns detratores de Neville rotulam.
Por incrível que possa parecer, Neville só fez duas adaptações de Nelson Rodrigues (sei lá, na minha cabeça, sempre pareceu que o diretor fez mais adaptações de Rodrigues para o cinema). A outra foi “Os Sete Gatinhos”, onde a sensualidade dividiu espaço com uma componente psicológica visceral, numa diversidade de personagens femininas. Aliás, esse é um adjetivo que cai bem na obra de Neville: seus filmes podem ser bem viscerais, não somente no sexo explícito sincero (mas não apelativo), mas também em sequências que podemos classificar como altamente escatológicas, com personagens em decadência mergulhando em poças de lama e esgoto, nem um pouquinho cenográficas. Assim, seu cinema tem algo de psicológico e agressivo, com o objetivo de tirar o espectador de sua zona de conforto. Um cinema feito com muita coragem, sem a intenção de agradar, mas de se dizer o que se sente, sem rodeios ou meias palavras. É claro que, num país com mentalidade tão autoritária e conservadora, um diretor cinematográfico desse naipe é severamente perseguido, pois ele incomoda, vai contra o estabelecido e o inquestionado, tornando-se um perigo para o sistema. E Abbade consegue mostrar em cores vivas como e por que Neville incomodava tanto, dando voz a um artista a quem sempre quiseram calar.
Dessa forma “Neville D’Almeida, Cronista Da Beleza e do Caos” é um documentário obrigatório para aqueles que estudam o cinema brasileiro e querem entender a dinâmica de funcionamento das ideias desse artista transgressor numa sociedade tão autoritária e conservadora como a brasileira. Um documentário que dá voz a um artista compulsoriamente silenciado desde sempre. Um documentário imperdível e fundamental.
Um documentário brasileiro. “Palace 2: Três Quartos Com Vista Para O Mar”, de Rafael Machado e Gabriel Correa e Castro relembra a tragédia do Palace 2 em 1998, quando parte do prédio de um condomínio na Barra desabou, deixando oito mortos e mais de 170 famílias desabrigadas. Esse é mais um documentário sobre a revoltante situação de impunidade que reina em nosso país e é fundamental, pois mostra todo o processo da luta das famílias na justiça contra o deputado Sérgio Naya, que construiu o prédio de uma forma muito irresponsável, praticamente não pagando pelo crime que respondia (o deputado hoje já é falecido e as famílias ainda lutam por seus direitos na justiça, vinte anos depois).
Foi feita uma boa reconstituição de todo o ocorrido, com muitos depoimentos dos moradores, advogados e imagens de arquivo que mostraram todo o sentimento de horror dos moradores do prédio na época e o que aconteceu posteriormente. Após a demolição total do prédio, os moradores, sem ter para onde ir, passaram a morar num hotel, alguns deles por vários anos, para se manterem unidos na luta pela justiça.
Entretanto esse estilo de vida era altamente desgastante e provocou a desistência de alguns moradores em permanecerem unidos naquela situação. Tanta luta até rendeu bons frutos. O deputado foi condenado a pagar a indenização (até ficou preso alguns dias) mas simplesmente não o fez. A multa pelo não pagamento aumentou com os juros e torna-se cada vez mais difícil de pagar a cada dia.
Ao ver toda a
via Crucis dos moradores do Palace, a gente fica com um gosto amargo na alma de
que a impunidade parece não ter solução em nosso país e que podemos ser vítimas
dela a qualquer momento. Isso nos dá um sentimento de impotência e a gente
acaba se solidarizando com os moradores em sua luta altamente inglória e que
parece cada vez mais infrutífera. É por isso que documentários desse naipe
devem ser cada vez mais produzidos e divulgados, onde o cinema cumpre a sua
função social de denúncia.
Dessa forma,
“Palace 2, Três Quartos Com Vista Para O Mar” é um documentário altamente
necessário e obrigatório, apesar de muito doloroso. A única forma de se lutar
contra a impunidade tacanha com a qual somos obrigados a conviver é
denunciando-a o máximo possível. E o cinema é um ótimo veículo para essa
denúncia. Vale a pena ser divulgado aos quatro ventos.
E
estreou o tão esperado “Turma da Mônica, Laços”. A live action dos eternos
personagens de Maurício de Sousa, aquele que nos ajudou a aprender a ler (como
foi meu caso), e que mexe fundo em nossa afetividade foi um presente e tanto. Confesso
que foi um pouco difícil ver a película, pois os olhos marejaram várias vezes. Vamos
lançar mão dos spoilers aqui.
O plot é muito simples (vale dizer aqui que a história de “Laços” vem da Graphic Novel dos irmãos Lu e Vitor Cafaggi). Floquinho, o cachorrinho do Cebolinha (devidamente “pintado” de verde) é sequestrado por um vilão que vende a gordura dos cachorros para uma empresa que produz uma loção capilar. Assim, a turminha se une para procurar Floquinho, encontrando-o preso com outros cachorros num barracão muito ermo, guardado por um feroz doberman e que é trancafiado por vários cadeados. Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali vão ter que quebrar muito a cabeça para tirar Floquinho de lá.
O filme desperta duas impressões. A primeira é que vemos uma historinha em quadrinhos clássica da Turma, com todos os elementos: planos infalíveis, um vilão mau, mas bobão, a Mônica dando coelhadas a torto e direito, um já suposto romance entre a Mônica e o Cebolinha (que se desenvolveria em “Turma da Mônica Jovem”), etc. Mas o filme também tem algo de muito prosaico e idílico: crianças brincando e rindo juntas, um campinho que parece mais uma floresta encantada, casas que parecem ter vindo de subúrbios norte-americanos.
Sentimos algo realmente datado na coisa, do tipo anos 60. Nada mais justo, pois foi mais ou menos nessa época que Maurício de Sousa concebeu seus personagens. Essa parte, digamos, mais “romântica” da história, se afasta um pouco dos quadrinhos tradicionais, mas traz uns elementos interessantes. Vemos, por exemplo, a Mônica reagindo com um choro ao xingamento com Cebolinha, o que deixa ele muito mal com seus amigos, doendo bem mais que uma coelhada, por exemplo.
Ainda, a turma da rua de cima também tem as suas meninas que arremessam bichinhos de pelúcia, botando a Mônica e a turma para correr. Para uma menina que enfrenta com seu coelho surrado desde o Capitão Feio até ataques alienígenas, isso foi realmente uma surpresa. Mas como é dito em música erudita, são variações do tema.
Agora, o que mais chamou a atenção foi o conjunto muito bem feito de caracterizações. Algumas muito boas, outras um tanto regulares, mas nenhuma ruim. As perfeitas foram a Mônica (interpretada por Giulia Benite) e o Louco (interpretado por Rodrigo Santoro, que nos surpreende a cada dia com seus papéis no cinema, tanto aqui no Brasil quanto lá fora).
O Cebolinha (interpretado por Kevin Vechiatto) mostrava bem o espírito travesso e um tanto arrogante do personagem mas esbarrava no obstáculo (intransponível) do estigma dos cinco fios de cabelo. O Cascão (interpretado por Gabriel Moreira) conseguiu roubar as cenas com seu carisma muito forte. Só lamentei o fato de que me pareceu que a Magali (interpretada por Laura Rauseo) tenha tido menos tempo de tela.
Senti um pouco de falta da meiguice e sensibilidade extrema dela, da qual gosto muito. Não sei por que, mas gostei demais da Mônica Iozzi como mãe da Mônica e, principalmente, de Fafá Rennó, como a mãe do Cebolinha. Elas se encaixaram como uma luva no ambiente idílico do filme, exalando uma fofura incontrolável.
Dessa forma, “Turma da Mônica, Laços” já te conquista antes de pisar na sala de cinema. E, lá dentro, te envolve na afetividade que o Universo de Maurício de Sousa sempre nos acolheu desde bem pequenos. Um filme obrigatório. Um filme imperdível. Um filme para ver, ter e guardar.
Um bom filme em co-produção Bélgica/Itália. “Nico, 1988”, dirigido por Susanna Nicchiarelli, conta a trajetória da cantora homônima que fez parte do grupo Velvet Underground e depois seguiu carreira solo. É um filme baseado em fatos reais mas que teve, como é dito ao próprio fim da película, umas dramatizações. Mas isso não piorou as coisas. Mesmo com alguns elementos fantasiosos, deu para se ter uma ideia de como o temperamento da vocalista Nico (interpretada soberbamente por Trine Dyrholm) podia ser muito forte. Vimos aqui uma mulher de composições altamente melancólicas e contundentes.
Sua interpretação altamente visceral em alguns momentos, e muito letárgica em outros, lembra todo o soturno de algo dark, sombrio, o que parecia ser uma marca registrada da cantora. O vício em heroína era outro problema marcante, onde a artista sempre se picava nas canelas, e ela podia ser muito explosiva em crises de abstinência ou quando sua banda tocava do jeito que ela não queria. Um detalhe curioso é que ela sempre tinha um gravador (na época algo um tanto gigantesco) às mãos para gravar sons curiosos que encontrava.
Ainda, ela tinha más lembranças do passado, pois teve um filho e não tinha condições (assim como o pai) de cuidar do menino, provavelmente pelo seu contato com as drogas, obrigando o garoto a viver em orfanatos e, mais tarde, em centros de reabilitação em virtude de suas tentativas de suicídio. Definitivamente, não era uma vida fácil, o que fazia nossa protagonista ser ainda mais rude e dura, tal como se fosse uma espécie de autodefesa.
O filme, então busca traçar uma trajetória dessa artista em turnê pela Europa, no que seria a tentativa de fazer sua carreira decolar. Entretanto, seu temperamento difícil (ela parecia uma Ângela Rô Rô, só que muito mal humorada) atrapalhava um pouco as coisas, e as próprias pessoas de sua trupe tinham um relacionamento difícil com ela. De qualquer forma, Nico (ou Christa, seu nome original) era uma personagem muito magnética em virtude dela ser única, não ter medo de dizer o que pensa e que, por ser alemã, e ter sobrevivido ao bombardeio de Berlim na Segunda Guerra Mundial, torna-a toda especial.
Assim, “Nico, 1988” é um daqueles filmes que é um programa imperdível para quem gosta de rock e dessa parte, digamos, mais soturna e dark, como pudemos atestar no ritmo um tanto pesado e arrastado e nas letras das músicas, que foram sabiamente traduzidas nas legendas (volta e meia sabemos que isso não acontece, o que é estarrecedor na minha opinião). Só é de se lamentar que o filme tenha sido exibido no Estação Botafogo 2, um cinema que tem um som simplesmente horrível (pior lugar para se passar um filme baseado na vida de uma cantora) e em poucos horários, o que faz a gente quase desistir de assistir à película. De qualquer forma, vale a pena a experiência e vale procurar esse filme depois para assistir, embora tenhamos uma história um tanto triste aqui.
Ainda falando dos filmes da Mostra “Imagens Para O Futuro, O Cinema Da Alemanha Oriental”, realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, vamos hoje analisar o interessante “O Coelho Sou eu”, de Kurt Maetzig, realizado em 1965 e de 110 minutos. Esse filme é daqueles que podemos dizer que é bem corajoso, pois enfrentou de frente o autoritarismo do governo da Alemanha Oriental, sendo até banido por isso. Cabe dizer aqui, a título de curiosidade, que todos os filmes banidos pelo governo da Alemanha Oriental em 1965 ficaram conhecidos como “filmes de coelho” por causa de “O Coelho Sou Eu”, que se tornou o ícone dos filmes censurados daquele ano. Mas, por que o governo da Alemanha Oriental classificou esse filme como anti-socialista, pessimista e de ataque revisionista para com o Estado? Para isso, precisaremos de uma sinopse com alguns spoilers.
O filme foca a vida de Maria Morzcek (interpretada pela deslumbrante Angelika Waller) uma jovem de 19 anos que teve o seu irmão Dieter (interpretado por Wolfgang Winkler) condenado a três anos de prisão por comportamentos subversivos. Maria tem o sonho de se aprofundar no estudo do idioma russo para ser intérprete e cursar a faculdade. Mas a prisão do irmão faz com que ela seja segregada na sua escola pela direção e a moça não consegue ingressar na faculdade, restando-lhe trabalhar como garçonete. Ela vai se envolver com um juiz mais velho que ela, Paul Deister (interpretado por Alfred Müller) que mais tarde ela vai descobrir que foi o juiz que deu a sentença de três anos de prisão para seu irmão. Num primeiro momento, isso não afetará o relacionamento dos dois. Maria viverá na casa de campo de Deister para se curar de uma doença e os dois passam os fins de semana juntos lá. Só para não deixar de dizer, Deister é casado. Mas, com o tempo, as coisas vão se complicando. Maria ganha a vida como tradutora de alguns processos em russo para Deister e como garçonete na pequena cidade onde fica a casa de campo de Deister. Um caso de subversão semelhante ao do irmão de Maria aparece na cidadezinha e Deister pressiona o prefeito para julgá-lo. Mas a população local e o próprio prefeito acham que ele não é passível de uma punição mais severa. Isso irrita Maria, que acha que se usaram dois pesos e duas medidas e o relacionamento dela com Deister começa a entrar em conflito. Maria pressiona Deister a rever o caso de seu irmão. Um belo dia, a esposa de Deister, Gabriele (interpretada por Irma Münch) visita Maria e diz que ele tentou cometer suicídio mas não teve êxito. Ele estava deprimido com todas as pressões que vinha sofrendo do caso do irmão de Maria, não somente dela, mas também de seus conhecidos e do próprio sistema judicial. Gabriele pede que Maria pare de pressioná-lo. Mas Deister volta e diz que agora vê as coisas por um outro ângulo e fará de tudo para que Dieter saia da cadeia. Maria viu nisso mais uma preocupação de Deister com a sua própria carreira do que um gesto de altruísmo e encerrou de vez o relacionamento com Deister. De qualquer forma, Dieter saiu da prisão antes do fim da sentença e, quando soube que Maria teve um caso com o juiz que o prendeu, ele a esbofeteou várias vezes. Maria decide recomeçar sua vida, longe dos homens e correndo atrás de suas aspirações, que é estudar russo, entrar para a Faculdade e continuar a se manter como garçonete, sem precisar morar de favor na casa da tia.
A primeira coisa que chama a atenção no filme é o alto tom crítico contra o autoritarismo do governo da Alemanha Oriental, feito totalmente sem medo, dentro daquele espírito alemão de sutileza de um rinoceronte entrando a toda numa loja de cristais. Em nenhum momento, houve um receio de se questionar os rigores da ditadura e é notável que esse filme tenha chegado até nós. A sequência onde Maria visita Dieter na prisão e conversam sob os olhos de um guarda que, além de tirar-lhes completamente a privacidade, ainda se mete de forma ríspida na conversa, é altamente contundente. Tal filme vai muito na contramão de outros filmes da mostra, considerados simplórios demais, tendendo mais para uma leve comédia que nada questiona.
Como se já não bastasse essa grande virtude questionadora do filme, temos também outra característica que salta aos olhos: temos uma protagonista mulher, altamente atuante, com objetivos definidos de vida e que enfrenta o autoritarismo do sistema, além de tentar se impor perante os homens que a cercam. Quando atentamos para esses detalhes, não podemos nos esquecer de que se trata de um filme de 1965, onde a mulher era vista de uma forma bem mais machista que a de hoje, e ainda estamos vendo esse filme sendo produzido num país socialista, onde, teoricamente, a mulher teria uma condição de menor desigualdade perante o homem.
O filme é bem taxativo: enquanto Maria se envolve com os homens, ela sempre quebra a cara e se afasta dos objetivos que traçou para a sua vida. Ao lutar pela liberdade do irmão, ao se envolver com o juiz, a moça se mete em querelas que a transformam num mero joguete das circunstâncias, embora ela sempre tente ter a sua voz atuante e impor a sua vontade. Entretanto, a mensagem ao fim da película é clara: melhor só do que mal acompanhada e ela deve juntar os cacos das decepções passadas, levantar a poeira e dar a volta por cima, sozinha, buscando sua emancipação. Um notável caso de empoderamento feminino, em plenos anos 60, quando essa coisa não era muito vista (se é que era vista) no cinema capitalista do Ocidente, que ainda colocava a mulher muito submissa perante o homem.
Assim, se a Mostra “Imagens Para O Futuro, O Cinema Da Alemanha Oriental” parece ter alguns filmes um tanto enfadonhos, “O Coelho Sou Eu” vai inteiramente na contramão e prova ser uma excelente película, primeiro por desafiar o governo da época e segundo por mostrar o filme do ponto de vista da mulher e da luta por um lugar ao Sol numa sociedade notadamente machista. Era engraçado como, ao fim da película, Maria partia decidida para um novo rumo em sua vida e, enquanto andava pelas ruas, era sistematicamente cantada por todos os homens, dando-lhes um gelo maior que o iceberg que afundou o Titanic. Tais características fazem a gente dar uma atenção toda especial a esse filme e vale a pena ir atrás dele.
Já falamos aqui, em outras ocasiões, da Mostra Nouvelle Vague Soviética, que ocorreu na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em fins de maio e início de junho do ano passado. Foi uma mostra muito boa, que reuniu grandes filmes soviéticos do pós-stalinismo, quando a cultura do país tinha mais autonomia para funcionar sem censuras, até a época de Brejnev, quando as proibições e restrições voltaram com força total. Doze filmes e uma palestra daquela mostra estão resenhados aqui na Batata Espacial. No mês de agosto de 2018, a Caixa Cultural do Rio de Janeiro fez outra mostra intitulada “Imagens Para O Futuro, O Cinema Da Alemanha Oriental”, onde foram exibidos vinte e cinco filmes e tivemos três palestras. Infelizmente, não pude acompanhar mais de perto essa mostra, mas dos poucos filmes que vi, não tive uma impressão muito positiva. Confesso que achei a coisa muito monótona a maioria das vezes e não pretendo falar de todas as películas assistidas. Um dos filmes que merecem atenção aqui é o bom “Os Assassinos Estão Entre Nós”, de Wolfgang Staudte, produzido em 1946 (portanto, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial) e que tem 91 minutos de duração. Vamos analisar o filme aqui com os spoilers de sempre.
E por que tal filme é digno de ser resenhado aqui? Porque é uma película que fala da situação do povo alemão no imediato pós-guerra, quando eram obrigados a viver em condições precárias em cidades que eram pouco mais do que um amontoado de escombros. Um médico de nome Hans Mertens (interpretado por Wilhelm Borchert) anda bêbado pelas ruas, bares e prostíbulos. Ele pega um apartamento abandonado para viver e é mal falado pelos vizinhos. Até que, um dia, uma bela mulher bate à sua porta. É Susanne Wallner (interpretada por Hildegard Knef), que alega ser a dona do apartamento. Recebida de forma grosseira pelo médico, Susanne no entanto aceita que o mesmo viva dentro do apartamento. E assim, os dois começam a estabelecer uma relação que paulatinamente se torna um romance. Mas o problema é que Mertens descobre que um antigo militar que era seu superior no exército nazista, Ferdinand Brueckner (interpretado por Arno Paulsen), vive em uma casa aconchegante, cheio de luxos. Ele, depois da guerra, se tornou um próspero empresário capitalista, ao passo que a grande maioria da população vivia na miséria e fome totais. Brueckner havia ordenado a execução de muitos civis durante a guerra, inclusive mulheres e crianças, o que deixa Mertens com desejo de vingança. Assim, o antigo médico agora busca uma estratégia para executar seu antigo superior nazista.
O grande debate desse filme é se a vingança é algo justificável ou a reparação dos crimes de guerra deve ser feita na justiça. Ficamos seduzidos pela primeira alternativa, quando vemos toda a empáfia e arrogância de Brueckner, sem falar que ele era um nazista e um empresário capitalista inescrupuloso (ou seja, o cão chupando manga dentro dos parâmetros socialistas de uma produção cinematográfica da República Democrática Alemã). Mas o filme não cai em tal armadilha, pois a figura redentora de Suzanne impede que a vingança seja consumada e coloca Mertens nos trilhos, dando ao vilão a punição merecida, dentro do âmbito da lei e da justiça. Parece que tal desfecho era muito importante naquele contexto, pois as pessoas acabavam de sair de um conflito onde tudo, principalmente a vida, era desrespeitado. Seria importante a volta da vida civilizada dentro da lei voltar, depois de anos de sangue e de barbárie.
Outro detalhe que também chama muito a atenção no filme é a redenção do personagem Mertens. Um médico que tinha medo de sangue e que havia testemunhado um massacre, estava totalmente imerso na bebida, no trauma e na desesperança. A figura de Susanne chega na hora certa para salvá-lo. Assim, o médico salva a vida de uma garotinha fazendo uma traqueotomia e se esquecendo de seu medo de sangue, além de não cobrar nada por isso. E, pela figura de Susanne, ele abandona seu projeto sanguinário de vingança e opta pela justiça institucional. Uma verdadeira mudança da água para o vinho. Não é à toa que Wilhelm Borchert, o intérprete de Mertens, foi disparado o melhor ator do filme, dada todas as nuances de sua interpretação (o bêbado rude, o homem atormentado, o melancólico sem esperança, o sedento por vingança, e o racional que abandona a vingança). Já Hildegard Knef teve em suas mãos uma personagem demasiado plana, muito amorosa e de fala suave, não podendo demonstrar todo o seu talento, mas de uma beleza estonteante. Já Arno Paulsen teve o mesmo problema de mostrar um personagem plano, ficando só no terreno da empáfia e arrogância, mostrando mais talento nas cenas de desespero mais ao final do filme, quando é ameaçado pelo revólver de Mertens e depois atrás das grades jurando inocência.
Assim, “Os Assassinos Estão Entre Nós” pode até hoje em dia soar como um filme que nos impõe uma liçãozinha de moral ao final (“a vingança é a arma do otário”), mas ainda assim é um filme que muito nos faz refletir como era a vida das pessoas depois de uma guerra, onde tiveram ainda que viver muitos anos em condições precárias sob os escombros de um país destruído, sendo esse sim um dos grandes filmes dessa mostra aparentemente mediana (seria necessário ver mais filmes para se ter uma melhor impressão da produção da época). Deixo vocês agora com a introdução do filme…
Mais uma produção francesa. “O Poder de Diane” (“Diane a les épaules”) é uma comédia levinha e despretensiosa que tem uma barriga de aluguel, um casal gay e um eletricista. Como eles interagem? A barriga de aluguel é da Diane em questão (interpretada por Clotilde Hesme). Ela engravidou para dar a criança para o casal composto pelos músicos Thomas (interpretado por Thomas Suire) e Jacques (interpretado por Grégory Montel).
Enquanto passa pela gravidez, Diane procura reformar a casa dos avós para poder vendê-la. Para isso, ela vai contar com a ajuda do eletricista italiano Fabrizio (interpretado pelo bom ator Fabrizio Rongioni, de “La Sapienza”). Os dois começam um namoro, com bons e maus momentos, enquanto o casal de músicos está em turnê no Japão. Quando eles retornam, passam a fazer parte do cotidiano do outro casal, o que acrescenta mais alguns elementos meio que tragicômicos à película que se intitula uma comédia, embora o filme tenha mais a cara de um drama leve e uma história relativamente divertida (mas também tensa) sobre relações humanas.
O filme procura adicionar esses elementos (a já citada barriga de aluguel, o casal gay e o eletricista hetero) de uma forma um tanto engraçada, mas a coisa parece não decolar muito. Ou seja, o filme até te entretém e prende sua atenção, mas não apresenta nada de muito espetacular que valha a pena o ingresso. É uma história com suas graças e suas tensões, mas fica somente nisso.
O elenco também tem uma atuação mediana. Clotilde Hesme, que interpreta a protagonista, faz uma Diane meio louca de pedra, meio sensível. O filme acaba girando em torno da moça, mas sem muita convicção. Fabrizio Rongione, talvez o ator mais conhecido do staff, fica um pouco deslocado como o eletricista que pisa em ovos, dada a situação delicada de sua namorada. Já os atores que interpretam o casal gay têm algumas tiradas um tanto cômicas, mas nada além disso.
Como se pode ver, “O Poder de Diane” não é um filme que se tenha muito o que dizer. Uma comédia que tem três elementos (a barriga de aluguel, o eletricista e o casal gay) que poderiam ter sido mais bem aproveitados e interligados. Um elenco cujas atuações foram medianas e um desfecho que poderia ter sido mais interessante se não buscasse uma possibilidade para um “happy end”. Um programa para simples e mero entretenimento. Nada mais.